Comunidades têm de ser consultadas sobre grandes projetos, exige Abril Indígena

Os grandes projetos de infra-estrutura e a ausência de consulta às populações indígenas sobre eles estão entre os principais temas em debate nesta edição do Abril Indígena. Há algumas semanas, o governo encaminhou ao Congresso o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), conjunto de dezenas de grandes obras que vem sendo apresentado pelo Planalto como solução para o desempenho medíocre da economia – a transposição do Rio São Francisco, as usinas de Belo Monte (PA) e do rio Madeira (PA), por exemplo. O problema é que várias delas têm grande impacto sobre as Terras Indígenas e, nesses casos, a Constituição e normas internacionais ratificadas pelo Brasil exigem que as comunidades indígenas têm de ser consultadas antes que elas sejam implementadas.

“A transposição do Rio São Francisco vai atingir 26 povos indígenas e eles ainda não foram consultados. Não vamos aceitar isso”, advertiu Neguinho Truká, uma das lideranças do povo Truká, de Pernambuco. Ele argumentou que existem alternativas já comprovadas por estudos à transposição e que as obras previstas no projeto de revitalização do São Francisco – saneamento básico e construção de casas, por exemplo – são obrigação do governo. “Isso não pode ser usado como moeda-de-troca com as comunidades”.

Para Roberto Smeraldi, da Ong Amigos da Terra, muitas vezes, o problema não é a obra em si, mas o pacote que vem junto com ela: os impactos dos canteiros de obras e da valorização das terras. Smeraldi, que fez uma análise sobre o PAC, lembrou que projetos de infra-estrutura acabam estimulando a criação de municípios e movimentando a economia local. “Por isso a pressão pelas obras vem muitos mais dos políticos e empresários regionais do que dos próprios consumidores.” De acordo com ele, sem planejamento e sem a presença do Estado, o processo também gera desmatamento e grilagem. “Se essa nova ‘geografia dos supercanteiros’ se confirmar, teremos mais pecuária e mais pressões sobre as TIs já demarcadas e ainda a demarcar”. Smeraldi lembrou que o estímulo à produção dos biocombustíveis pode ser outro grande fator para interiorizar a grande produção de gado na Amazônia.

Segundo Raul Silva Telles do Valle, do Instituto Socioambiental (ISA), as comunidades indígenas têm de exigir um plano de consulta tão bem estruturado quanto o próprio projeto das obras. “Isso não é nenhum favor. Está na Lei”. O advogado avaliou que a maneira como o governo vem anunciando e encaminhando as obras, por si só, já é uma forma de pressão política indevida que não considera os interesses dos povos indígenas. “Não interessa ao governo e a muitos empresários realizar essas consultas, porque algumas comunidades não querem essas obras”.

Ontem, 16 de abril, índios paralisaram a rodovia Belém-Brasilia, em protesto contra a construção da Usina do Estreito, entre o Maranhão e Tocantins, porque não foram ouvidos sobre o projeto. O bloqueio de dez horas provocou um congestionamento de cerca de dez quilômetros. Os índios montaram um acampamento em frente ao canteiro de obras da hidrelétrica e dizem que ficarão lá por tempo indeterminado. A principal reivindicação é que o projeto seja suspenso. Os manifestantes alegam que não houve uma discussão séria e profunda sobre os impactos ambientais da obra. A ação faz parte do Abril Indígena. Participam povos do Tocantins – como os Apinajé, Javaé, Krahô, Karajá e Xerente – e diversos povos do Maranhão Gavião, Krikati.

Em audiência na Procuradoria-geral da República, como parte de um seminário realizado em julho do ano passado, lideranças indígenas afirmaram que suas comunidades não vinham sendo consultadas sobre empreendimentos que afetariam suas terras. Na ocasião, o subprocurador Eugênio Aragão, integrante da 6ª Câmara do MPF (de Índios e Minorias), comprometeu-se a centralizar o trabalho de cobrar do governo uma lista com todos os projetos de infra-estrutura que afetassem as TIs e cobrar o encaminhamento das reivindicações dos índios. A lista não foi entregue até hoje.

O Abril Indígena é o conjunto de manifestações e protestos do movimento indígena que marcam o mês de abril já pelo terceiro ano consecutivo. Neste ano, o acampamento em Brasília está reunindo cerca de mil indígenas, de mais de cem povos diferentes. Até quinta-feira, devem ocorrer plenárias, debates, atividades culturais e manifestações para propor soluções aos principais problemas das comunidades indígenas e denunciar as agressões aos seus direitos. Serão discutidos demarcação e proteção de terras indígenas, políticas de saúde e educação, a participação dos povos indígenas nas políticas públicas, um novo Estatuto para os Povos Indígenas e a vinculação ao estatuto de temas como a mineração em terras indígenas.

Diálogo

O novo presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira, esteve no acampamento e anunciou para quinta-feira, Dia do Índio, a instalação da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI). O colegiado, que será integrado por 20 lideranças indígenas, irá discutir as políticas indigenistas nacionais e é uma antiga reivindicação do movimento indígena. Meira disse o diálogo com os povos indígenas será a principal marca de sua gestão à frente da Funai. “Daí a importância da comissão. Ela não é uma dádiva do governo, mas uma conquista das organizações indígenas e um marco histórico”. Meira também informou que foram corrigidos e remetidos novamente ao Ministério da Justiça todos os processos de terras indígenas que tinham sido devolvidos ao órgão indigenista pelo ministério. Ele se comprometeu a ir às assembléias regionais das organizações indígenas.

“O Abril Indígena servirá para testar o novo presidente da Funai e sua disposição de estar ao lado dos povos indígenas”, respondeu Jecinaldo Cabral Sateré-Mawé, coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Jecinaldo disse esperar que a CNPI possa suprir a falta de uma política integrada do governo. "Tem alguns setores favoráveis, mas o governo Lula nunca teve uma política indigenista coordenada. Sempre ficamos ali no campo social e em segundo, último plano".

Saúde

A saúde indígena também foi um tema do primeiro dia acampamento. Durante a entrevista coletiva, Lea Aquino, Kaiowá Guarani, lembrou que a mortalidade infantil tem relação direta com a falta de terra. “As nossas crianças passam fome não por que não trabalhamos, mas por que não temos terra. E as nossas terras, não são nossas, por que estão demarcadas, mas não nos deixam morar nelas”.

“Os Yanomami estão morrendo de malária de novo. Estamos muito preocupados com a situação”, alertou Davi Kopenawa, presidente da Hutukara – Associação Yanomami. Ele também denunciou a presença de garimpeiros na TI de seu povo. “Há quatro anos que a Funai não toma nenhuma providência em relação a isso”. Davi disse que o novo presidente da Funai não pode ficar apenas em seu gabinete em Brasília, mas tem de ir às aldeias, conhecer as comunidades e seus problemas.

Também estão presentes no acampamento 15 lideranças do Vale do Javari, onde 24,9% dos indígenas estão contaminados pelo vírus da Hepatite Delta, a forma mais perigosa da doença, e 85,11% dos índios examinados pela Funasa já tiveram contato com o vírus da hepatite. Clovis Marubo, coordenador do Conselho Indígena do Vale do Javari (Cijava), relatou na entrevista que “os técnicos de saúde falam que os povos do Javari vão acabar em 20 anos se nada for feito em relação a eles”. Ele também mostrou muita preocupação pelos povos sem contato que vivem na região, por conta do trânsito de madeireiros na área.

De acordo com as lideranças do Abril Indígena, a crise na saúde tem como uma de suas causas principais a deturpação do modelo original de atendimento, que pr

evia a autonomia política, administrativa e financeira dos Distritos Especiais de Saúde Indígena (DSEIs). Na prática, vem acontecendo o atrelamento aos interesses políticos partidários, com o constante loteamento de cargos dentro da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), responsável pela saúde indígena. Para o movimento indígena, é necessário garantir a autonomia dos DSEIs, o fortalecimento do controle social, o estabelecimento de critérios para preenchimento de cargos que contemplem conhecimento e o compromisso com a questão indígena, além da capacidade de gestão e de diálogo com o movimento indígena.