Quinta-feira, 24/05/2001

Último dia no Xingu, marcamos de ir bem cedo para a aldeia Yawalapiti com a pretensão de aproveitar ao máximo o dia. Acordamos atrasados e corremos para pegar carona com a caminhonete do Posto.

Por volta das oito horas chegamos à aldeia e sentamos no centro, como sempre fazemos, para conversar com Aritana, Aiupú, Tapi, Aumaury e os outros homens da tribo. No dia anterior, havíamos combinado de emprestar nosso telefone Globalstar para que Aritana pudesse ligar para a casa do Orlando Villas Bôas. Tudo funcionou perfeitamente, conversamos com o Orlando e sua mulher, Marina. Foi muito legal fazer este tipo de interação direto de uma aldeia, no meio do Xingu. Eles adoraram e elogiaram a qualidade da transmissão.

Depois, decidimos ir garantir o almoço com uma pescaria. Saímos acompanhados da meninada Yawalapiti e começamos a remar, subindo o Tuatuari. Seguindo a orientação dos meninos, Fernando e Fábio provaram ser exímios remadores. Em poucos minutos, pegamos um canal do rio muito raso, que passava entre uma vegetação densa cheia de jacarés. Não entendendo muito bem aonde íamos, continuamos para onde apontavam.

Abandonamos o remo e começamos a tomar impulso nas árvores que nos cercavam. Em determinado momento, foi necessário deitar dentro da canoa para passar por baixo dos galhos. O cenário era lindo e impressionante: vimos morcegos, jacarés e muitos pássaros. Finalmente, as plantas se descortinaram numa pequena e calma lagoa.

Encostamos de canto numa moita. O Paroí e o Guilherme, únicos com anzol, começaram a pesca. A primeira vítima do Guilherme foi uma piranha. Isto, somado aos jacarés que pescavam calmamente, serviu como um alerta para considerarmos a área como imprópria para o banho. Alimentando os mosquitinhos, ficamos mais de uma hora para conseguir o seguinte menu para o almoço: três pintados pequenos, duas piranhas e três mandis.

Na volta, os homens nos esperavam com beiju e o fogo aceso. Sentindo muita fome, devorei os pintados com vontade. Depois, fomos comprar um pouco de artesanato, como redes, cerâmicas, e os famosos colares de caramujo xinguanos. Estes colares funcionavam no passado como a principal moeda de troca entre as tribos do Xingu. Ainda hoje, eles têm alto valor de troca entre todas as aldeias da região e com os caraíbas (não-índios).

Já sentindo um pouco de saudade, pegamos a carona de volta na carreta improvisada do trator da tribo. O detalhe é que, além de não contarmos com air bag e nem barra de proteção lateral, o carro está com a direção quebrada. Zig-zageando pela estrada, numa das curvas seguimos reto, mata adentro. Fomos assim, nos agarrando ao antigo chassi, elevado à condição de carreta, até o Posto Leonardo. Foi muito divertido.

De noite, paramos para arrumar nossas coisas. Amanhã acordaremos às cinco da manhã para enfrentar seis horas de barco e outras três horas na caçamba da caminhonete até chegar a Canarana – MT. Avisamos desde já e pedimos desculpas aos nossos milhões de leitores, mas a atualização de amanhã está comprometida.

Como sempre, nossa estada aqui passou muito rápido, mas de uma forma muito intensa. Ao mesmo tempo em que estamos satisfeitos por termos completado esta etapa do trabalho e aproveitado ao máximo a oportunidade, estamos todos tristes de ir embora. Nosso contato com as pessoas daqui foi muito bom. Em pouco tempo, nos apegamos a algumas das criancinhas que ficam se dependurando na gente o dia inteiro e também podemos dizer que começamos a fazer verdadeiros amigos por aqui. Portanto, fica nosso agradecimento especial ao Aritana, que mal nos conhecia e nos recepcionou tão bem. Ao Kokoti, chefe do Posto Indígena Leonardo Villas Bôas, que nos deu todo apoio para realizar o trabalho. Além deles, poderíamos continuar fazendo uma longa lista que sempre seria incompleta: Travi (cozinheiro), Autucumã, Jaílton (professor), Kapi, Ualá, Camila, Afukaká, Jacalo, Leo, Marina e muitos outros.

Agora, nosso próximo passo é visitar as reservas dos Xavantes, o primeiro povo indígena contatado pela Expedição Roncador-Xingu.

Inté,

Fernando

Quarta-feira, 23/05/2001

EXPEDICIONÁRIO DA ROTA BRASIL OESTE NÃO TEME ONÇA

Quarta feira, 23 de maio.

Ficou marcado para irmos para a aldeia Yawalapiti, cerca de sete quilômetros do Posto Indígena Leonardo. Na saída, por algum mal entendido, o motorista da Toyota saiu e não levou o Fábio, que ainda tinha ido arrumar seus apetrechos de desbravador (cantil, faca, etc). Inconformado, não entendendo porque não o esperaram, chegou a dizer:

– Não me esperaram, mas eu queria ir, não sei porque não me esperaram. Mas eu vou de qualquer maneira, nem que tenha que enfrentar onça (…)não aguento ficar mais aqui sem fazer nada!!!!

– É assim mesmo…, pode ir, mas toma cuidado (…)

Não vi mais o Fábio.

Na noite caindo, ainda claro, em frente à casa do Posto Indígena, a mesma que Orlando Villas Boas residiu durante anos, um índio Aweti, Tucumã, começou a contar:

Cadê aquele maluco? Nós vinha de carro, voltando da aldeia Yawalapiti, já lá pertinho das roças, naquela reta, e o motorista disse: – quem é aquele doido? E quando ele olhou, lá vinha o Fábio, com um pau (burduna) no ombro e uma faca na mão, andando.

E os índios riram, o que ele está fazendo? Será que está doido?

Chegando perto pararam, e riram muito.

O Fábio tinha encontrado pegadas de onça pelo caminho e, na dúvida, sem saber se voltava ou continuava, prá que lado corria, acabou seguindo, valente, com burduna e faca na mão, para enfrentar a onça, caso aparecesse.

Os índios riram. Mas o valente Fábio, mesmo com medo, enfrentou o perigo de sua própria ignorância ou será teimosia!!!

É isso aí Fábio. Coragem, para seguir seu caminho…

Mas tomar cuidado é bom, não esqueça.

Guilherme Carrano

Terça-feira, 22/05/2001

Noite passada, uma onça andou passeando aqui pelo Posto Leonardo. Logo após uma apresentação de uns índios Guaranis, de São Paulo, que vieram conhecer o Xingu, ficamos conversando com o pessoal que trabalha aqui no posto. Às 11h e pouco, desligaram o gerador, nossas únicas fontes de luz ficaram sendo um lampião e uma lanterna com as pilhas fracas, ou seja, não dava pra enxergar muito longe. Bem, não sei se a escuridão deu asas à imaginação, mas o Fernando e uma colega, a Danuzia Maria, garantiram que ouviram um esturro perto de onde estávamos. Na dúvida, cada um pegou o rumo de suas respectivas casas. No caminho, o Pedro apontou a lanterna pro mato e viu uns olhos brilhando. Na hora ele duvidou que fosse alguma coisa, mas hoje de manhã o assunto não foi outro. Ficamos sabendo que encontraram pegadas de uma onça perto dos alojamentos e que, de manhã bem cedo, uma indiazinha viu o bichano à beira do rio, que não fica a 20 metros de onde estamos dormindo.

Por aqui, onça é um perigo real. Ninguém tem medo de piranha, jacaré ou cobra, mas a onça todos respeitam. Já ouvimos mil histórias e os índios do posto dizem que já apareceu onça na porta de casa, às 10h30 da noite e com o gerador ligado, para tentar comer um cachorro. Sair pra pescar ou caçar a noite desarmado é loucura. Por aqui, o apagar do gerador é um toque de recolher.

Outro perigo de verdade é sucuri. Não faz um mês que uma indiazinha foi pega por uma perto da aldeia Waurá. Por sorte um menino estava por perto e teve coragem pra dar uma paulada na cabeça da cobra, que largou a garotinha e fugiu. A proximidade da sucuri faz parte do cotidiano das aldeias. Nos Yawalapiti, por exemplo, os jovens mais corajosos atiçam a cobra para que ela os morda e cortam seu rabo, que é um símbolo de coragem e usado em vários rituais da tribo.

Pedro e Fábio

Segunda-feira, 21/05/2001

Aproveitamos o dia de hoje para fazer uma pequena viagem, fomos conhecer o Narro na aldeia Kuikuro. Com mais de 90 anos de idade, ele foi o primeiro índio xinguano a falar português, servindo de intérprete logo que a Expedição Roncador-Xingu chegou aqui. Muito velhinho, porém lúcido, ele tem sérios problemas de audição.

O caminho até lá foi bem cansativo, navegamos cerca de duas horas, aportamos, e andamos mais uma hora até a aldeia. Chegando lá, atravessamos um pântano com água até a cintura. Sem enxergar o chão, fomos tropeçando em paus e pedras. Enquanto tentávamos afastar o pensamento no que mais poderia estar nadando ali embaixo, ficamos apreciando um pouco da natureza do lugar, em especial as plantas aquáticas. Na volta, o Pedro até viu um pouco da fauna local, uma cobrinha que passou à nossa frente nadando.

Fomos recebidos na casa do cacique Kuikuro, chamado Afukaká. Explicamos nosso trabalho e conversamos um pouco com ele sobre a chegada dos não-índios e a situação atual da comunidade. Depois, seguimos para nos encontrar com o Narro. Por causa do problema de audição, não foi possível conversar com ele como queríamos. Mesmo assim, batemos um longo papo com seu filho, Jakalo.

Voltamos ao barco por volta das 15h, atravessando o mesmo caminho num sol ainda mais quente. Chegamos ao Posto Leonardo só no início da noite. Por isso mesmo, decidimos publicar hoje apenas este diário de viagem.

Fernando Zarur

PS – Ontem o Pedro Ivo foi, sozinho, visitar a aldeia Kamaiurá. Voltou besuntado de urucum, com a pele ridiculamente vermelha. Por falar em rubro e negro, o papo na aldeia Yawalapiti foi que o Parú (colega flamenguista) teve uma premunição espiritual do final do jogo e ficou triste ainda no primeiro tempo. Eu faço minhas previsões otimistas para semana que vem, Flamengo 3 X 0 Vasco.

Domingo, 20/05/2001

Leitores,

Hoje vou escrever para todos os que conheço, mas principalmente para os colegas da Comunicação, professores e alunos.

Primeiro queria contar que – não sei se já escreveram antes – a estadia aqui no parque é muito interessante, reveladora. Só para ter uma idéia: para chegar na aldeia Iaualapiti, nós pegamos carona no barco do cacique Aritana, dirigido pelo seu filho, Ualá, de 14 anos. Até aí, tudo bem, mas existe algo que, para mim, é extraordinário: o garoto dirigiu o barco à noite, sem nenhuma iluminação, por quase seis horas. E conseguiu a proeza de não bater em nenhuma pedra ou galho. Imagino como está São Paulo sem luz ou se eu tivesse de dirigir para casa só com a luz das estrelas, sem nem mesmo o clarão da lua. Algo bucólico e desastroso…

Outra lembrança interessante: conversei um tempo com o pai do Aritana, o rezador e raizeiro Parú. Novamente: até aí, nada demais. Mas o velho já vivia aqui antes de qualquer contato com o branco, e já se virava muito bem no mato, sem machado de metal, espingarda ou lanterna. ‘Ora, índios vivem no mato, sem nenhum problema, já há muito tempo’, muitos devem pensar. É, mas já escrevi, ele é raizeiro, e para conseguir raiz, tem de se embrenhar no mato por dias, muitas vezes sozinho. Complicou um pouco… Ainda mais se acrescentar um perigo que parece distante, mas aqui é real e incomodamente comum: ataque de onças. Bem, para encurtar a história: Parú, que já foi também Tapiruatá e Okanato (abandonou os nomes para passar aos netos primogênitos de cada filho), nunca foi atacado, pois faz reza que afasta onça. Difícil de acreditar, não é, mas como explicar?

Também têm as crianças (que merecem muito mais do que um parágrafo, mas, infelizmente, é só o que posso dar hoje). Resumindo: elas são completamente independentes, sempre – não sei como, se descobrir, aviso – risonhas e alegres, e têm um senso de união, de coletivo, que dá inveja a qualquer político ou governo.

Mas não é sobre isso que queria escrever, e sim sobre a experiência que tive esta noite, junto com o Fernando. Fomos à casa do chefe do Posto Leonardo, o Kokoti Aweti, e lá tinha uma TV (embora passe a idéia de um lugar distante e inóspito, o que não deixa de ser verdade, em todo o Parque do Xingu você encontra energia elétrica, seja de gerador ou célula solar). E ela estava ligada na Globo, que transmitia o principal veículo de informação do nosso país, o mais acessível em cerca de 97% do território brasileiro, o esperado Jornal Nacional.

A matéria que passava era sobre o efeito negativo do racionamento de energia na indústria da construção civil, segmento da economia com faturamento de bilhões todos os anos, grande empregadora da massa ignorante que habita esta terra abençoada por Deus. No meio da reportagem aparecia o depoimento de um empresário que havia investido R$ 500 mil na obra de um conjunto de lojas, mas estava impedido de negociar seu investimento enquanto durar o racionamento, pois novas ligações elétricas estão proibidas.

Logo depois, começaram os comerciais e vimos uma loira bem formada nos oferecer uma Skol gelada, seguida por uma galera-jovem-muito-divertida-que-agita-todas-e-se-diverte-a-valer-bebendo-um-(também)-gelado-e-saboroso Guaraná Antarctica.

Somente um comentário: absurdo.

Estranho, mas a alteridade (papo chato e academicista espalhado como panacéia no Departamento de Antropologia) e toda a crítica a cultura de massas (praga na Comunicação…) pode adquirir algum sentido prático.

Bem, era isso.

Bruno Rocha Radicchi

PS: o Fernando assistiu um pedacinho da novela das seis e se recusa a escrever, pois só comentaria o assunto em porta de banheiro.