Entrevista: Celestino Xavante, 91 anos

Por Cid Furtado – originalmente publicado na revista Brasileiros de Raiz.

Integrante de uma geração antiga de lideranças indígenas do País, Celestino Xavante, 91 anos, tem poucas ilusões sobre a possibilidade das comunidades indígenas nacionais conseguirem preservar suas culturas e modos de vida tradicionais, ante a pressão crescente sobre as suas comunidades e seus territórios.

Celestino Xavante
Aos 91 anos, Celstino Xavante ainda é uma liderança ativa na luta política pelos direitos indígenas. Foto: Janine Moraes (Jr/ABr)

Conhecido por sua luta pela demarcação das terras Xavante, ele está preocupado: “Os jovens não vêm a Brasília. Se ficarem no mato ninguém vai considerar o que querem e precisam. Eles têm que vir lutar pelos seus direitos.

Apesar de preocupado com o futuro, o peso dos anos não lhe tirou o espírito combativo e, frequentemente, abandona o conforto e a tranqüilidade da aldeia Parabubure para se juntar a outras lideranças na luta pelos direitos das comunidades Xavante e direitos comuns dos indígenas.

Vida de luta

A história de Celestino no movimento indígena começou na década de 60 junto com os então jovens líderes Xavante, como os caciques Aniceto, Samuel e muitos outros. Lutavam pela demarcação das terras indígenas em todo o País. Correndo atrás primeiro, da demarcação da terra indígena Sangradouro; depois, da criação da área de Parabubure.

À época a luta era para retirar as fazendas que invadiam as terras Xavante, incluindo a área da fazenda Xavantina onde Celestino nasceu. A luta se deslocou para Brasília. Na Capital foram travadas importantes batalhas. Os Xavante venceram e passaram a ser exemplo de luta para outras comunidades indígenas.

Da década de 60 aos dias de hoje,lá se vão mais de 40 anos de luta e atuação política. Independente e orgulhoso, até hoje, Celestino prefere falar em sua língua materna e contar com a ajuda de um tradutor, apesar de entender o português.

Suas preocupações, anseios, caminhos e recados você confere nesta entrevista exclusiva a Brasileiros de Raiz.

Qual a realidade das comunidades Xavante hoje?

Nossa realidade é muito fraca. Todas as coisas estão mudando, mudando muito. Temos de continuar lutando para manter nossa vida e cultura do mesmo jeito. Mas sinto que estamos enfraquecidos.

Nosso povo está crescendo mais e tendo que lutar para ter apoio da FUNAI, do Governo. Esse presidente da FUNAI não quer entender nossos problemas. Ele acabou com a FUNAI. Precisamos ampliar a aldeia “terebe” onde pai e meu bisavô faleceram. O presidente da FUNAI prometeu e não cumpriu a promessa de ampliação da área. Diz que está fazendo uma reestruturação. A terra lá não serve mais para a comunidade, está pequena, é preciso ampliar. Nós estamos fazendo um movimento pra trocar o presidente e para pedir que os índios mesmos assumam a FUNAI. Apoiamos o advogado Arão Guajajara para assumir a presidência.

E qual o principal problema das comunidades Xavante?

Principal problema é que não há mais assistência: falta para o idoso, na alimentação, na compra de ferramentas, sementes, objetos, gado, na preparação de projetos. Ainda precisamos da ajuda e apoio do Governo e da FUNAI para o desenvolvimento de nossas comunidades.

Como preservar a identidade e sua cultura Xavante ante a cultura branca e do contato com a sociedade?

Para a sociedade dos brancos, a cultura Xavante ainda é muito atrasada. A mudança virá aos poucos até convivermos de forma igual. É muito complicado para mudar rápido, mas isso já está começando a acontecer.

Temos que estudar, do jovem à nossa bisavó. Temos que estudar mais, entrar na política, na prefeitura, na polícia, no governo. Só depois que entendermos isso tudo, vai ficar mais fácil para a gente ver a nossa realidade preservada, assim, convivendo com os brancos. Temos que fazer isso (conviver) para ter como preservar nossa cultura.

É possível juntar essa tecnologia que vive o mundo hoje sem perder a identidade indígena?

Tem que ser assim mesmo. Unir essas coisas com a preservação da nossa cultura. Temos que ter computador e essas coisas todas. Mas temos que ser nós mesmos, preservar a identidade e a cultura indígena. Os jovens cada dia estão se interessando mais por isso, pelas coisas do branco, da cidade. Desde o contato com o povo Xavante muita coisa já aconteceu. Conhecemos muitas coisas do branco e precisamos dominar isso tudo pra aprender como conviver com o branco.

Quais os caminhos pra sobreviver, pra conviver com o branco e garantir o futuro do povo Xavante?

Ainda estamos conseguindo segurar a nossa realidade de cultura. Temos nossa pintura, nossa língua. Não podemos perder nossos clãs individuais para casar, não podemos fazer uma mistura, assim, tem que ser preservado nosso jeito de viver. Precisamos manter a nossa tradição com a língua, os casamentos na família, as pinturas, o corte de cabelo. O caminho é brigar para manter isso assim. Os velhos e jovens tem que se unir por isso.

Nesse caminho também precisa do saber. Temos que estudar. Mas ainda é um caminho longo para encontrar o jeito certo para garantir o futuro do povo.

Pra nós índios é muito longe e muito difícil ainda encontrar esses caminhos.

Como o senhor vê a pressão do desenvolvimento econômico em terras indígenas?

Hoje já não tem terra suficiente pra nós. Os fazendeiros não podem querer tomar a terra indígena. Vamos defendê-las contra os fazendeiros para não haver novas invasões, porque hoje não tem a FUNAI, não tem IBAMA. O IBAMA não entra em defesa das comunidades e aí é a comunidade mesmo que tem que decidir o que vai fazer. Tem uns que pensam em deixar as terras indígenas em arrendamento, para ver se vai dar certo, ou não. Outros querem brigar com os invasores, temos que pensar muito no que fazer, antes de tomar uma decisão sobre as formas de desenvolvimento do nosso povo.

De uma forma geral, as pessoas, o governo, fazendeiros e empreiteiros que têm projeto dentro de área indígena, sempre acusam o índio de atrapalhar o desenvolvimento do Brasil. O que o senhor acha disso?

Eu já ouvi falar mesmo que estamos atrapalhando, que estamos ocupando as terras e que não trabalhamos. Mas porque o governo não nos ajuda? Por que não compra os maquinários para nos ajudar a trabalhar como os fazendeiros?

Aí sim, ia ficar mais fácil. Mas quem tem que nos ajudar, a FUNAI, não cumpre o que promete: fazer projetos, os plantios com os tratores e máquinas. Nós queremos produzir, comprar o gado, comprar os maquinários para plantar, mas o Governo não dá o apoio que as comunidades indígenas precisam. É muito complicado.

Os jovens guerreiros ainda têm vontade de ser índio ou querem vir para o mundo do branco se integrar à sociedade?

Hoje boa parte dos jovens que largam as aldeias e vão para a cidade preferem ficar lá, se casar, assim, desse jeito mesmo. Já estamos achando que o futuro pode mudar o índio Xavante. Precisamos que os jovens retornem à aldeia mesmo depois de estudar e viver na cidade, continuar mesmo como índio, com suas tradições. Ao mesmo tempo, muitos de nossos jovens falam que é muito difícil se misturar com o branco, que não respeita o índio, e por isso tem gente querendo ficar e gente querendo voltar pra aldeia, voltar a ser índio. Acho que as coisas são assim mesmo. Estão voltando, do mesmo jeito, como índio, porque têm muitas dificuldades para viver do jeito do branco.

Depois da luta pela demarcação, que aconteceu nos anos 60, 70 e 80 parece que o movimento indígena diminuiu, reduziu um pouco. Não estão surgindo novas lideranças?

Antigamente, na década de 70, o cacique, todos os caciques velhos, todos foram lutar para fazer a demarcação de nossas terras. Lutaram para ampliar essas áreas. Todo mundo unido. Toda aldeia participava das conversas à noite, e agora os jovens caciques, não se reúnem mais para discutir.

Não está tendo união mais. Isso não ajuda a conhecer novos líderes. São os velhos ainda que vêm tentando ouvir os mais novos, chamando eles para o centro da aldeia, pra conversar e buscar a união e pra conhecer os novos líderes, pra eles falarem.

Qual vai ser o futuro do povo Xavante?

O futuro? Acho que não vai ser bom.

Os velhos falam que os índios vão morrer, acabar. Não vamos continuar.

Os jovens vão virar brancos. Esse vai ser o futuro dos bisnetos, de toda a comunidade. Vamos perder a nossa cultura, artesanato, as coisas para as festas, os cantos. Ninguém vai dirigir nossa cultura, que é muito complicada.

Até hoje são os velhos é que estão ainda segurando a cultura para nós. Agora quando nós vamos nos acabar,não dá pra dizer, mas vai ficar difícil. Vai ficar só um restinho de cultura, poucas danças, quase nada da cultura Xavante.

Que recado gostaria de dar aos os jovens xavantes?

O que vocês vão ser quando eu morrer? Como vão continuar as lutas que temos?

Temos que perguntar isso para a comunidade. Sei que é complicado para os jovens, e ninguém pergunta essas coisas porque é complicado para eles. Os jovens e os adultos ainda não vêm para Brasília para conhecer reunião, conhecer o debate. Se ficarem no mato ninguém vai considerar o que o índio quer e precisa, eles têm que vir pra lutar pelos seus direitos.

E o que diz para o povo branco hoje?

Hoje já tenho idade alta e mesmo assim ainda não vejo o branco respeitando os índios, os mais velhos.

Daqui pra frente os jovens é que vão assumir como chefia, aqui em Brasília e nas aldeias, e são eles que vão ter de continuar lutando para o povo indígena ser respeitado. Peço que o branco respeite mais o índio.

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Brasileiros de Raiz

Única revista nacional especializada em questão indígena, Brasileiros de Raiz tem como objetivo recolocar a história em seu trilho, dar voz e informações atualizadas e verdadeiras sobre povos indígenas. Para saber mais, entre em contato. [/box]

Sinal vermelho para o Xingu: sob protestos, governo inicia obra de Belo Monte

Por João Alberto Ferreira – originalmente publicado na revista Brasileiros de Raiz.

Mapa do desmatamento na região do rio Xingu até 2007
Mapa do desmatamento na região do rio Xingu até 2007 (fonte: Yikatuxingu.org.br)

Visto do alto, por imagem de satélite, o Rio Xingu, de sua nascente, em Mato Grosso, até desaguar no Amazonas, mais de dois mil quilômetros depois, é um paraíso intocado. Toda essa imensa região, habitada por mais de 25 mil indígenas de 24 etnias, milhares de ribeirinhos, populações extrativistas, agricultores familiares e quilombolas destacam-se de seu entorno por um fato muito simples: continua verde enquanto tudo a sua volta é vermelho.

Nas legendas para as cores apontadas pela imagem do satélite, segue a tradução: verde significa flora e fauna abundantes; vermelho, desmatamento.

São os índios e as populações que ali vivem quem protege esta rica região que abriga o maior mosaico de áreas protegidas do Brasil, combinando terras indígenas e áreas de conservação, parques nacionais e reservas extrativistas.

Na área em vermelho vive o não-índio.

A região é de tal forma preservada que só recentemente foram localizadas duas áreas, onde índios ainda vivem isolados. Tão rica do ponto de vista cultural que guarda em seus limites três dos quatro troncos macrolinguísticos de onde se originam as mais de 180 línguas indígenas faladas no Brasil.

De Altamira até desaguar no Amazonas, abriga várias comunidades quilombolas. “É uma terra indígena por excelência, perfeitamente combinada com comunidades tradicionais e unidades de conservação, uma imensa biodiversidade, patrimônio de todos brasileiros e do mundo”, descreve a professora Sônia Magalhães, da Universidade Federal do Pará (UFPA), integrante da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e profunda conhecedora da região.

Por água abaixo

Overview of the dam complex.
Área de construção de Belo Monte (Image via Wikipedia)

Justamente neste local privilegiado, o governo federal planeja fazer uma das maiores intervenções já produzidas pelo homem em terra indígena. Construirá, na Volta Grande do Xingu, bem no coração da terra de índios Araras e Jurunas, a terceira maior hidrelétrica do mundo – Belo Monte.

O local foi escolhido porque o regime de águas do Xingu complementa as bacias do Paraná e do São Francisco, onde estão localizadas Furnas, Chesf e Cemig. Assim, quando os reservatórios da região sudeste começarem a baixar, como costuma acontecer nos meses de março, a vazão de Belo Monte virá em seu socorro. A Eletrobrás calcula que a usina será capaz de garantir em torno de 4.500 MW médios.

Belo Monte é um dos projetos mais ambiciosos do PAC 2, a segunda etapa do Programa de Aceleração do Crescimento. O governo espera concluí-lo até 2015.

Belo Monte também fará submergir sob um reservatório de 548 km², parte da floresta, onde vivem índios Jurunas, na Terra Indígena (TI) Paquiçamba, de 4.348 hectares, e secará a Volta Grande onde vivem índios Araras, na TI Arara da Volta Grande do Xingu, de 25.500 hectares.

Em ambas as áreas, separadas pelo rio Xingu, Jurunas e Araras convivem harmoniosamente com populações ribeirinhas e extrativistas. Praticamente todo o fluxo das águas em direção à Volta Grande, no Baixo Xingu, será desviado, aproveitando a queda de 96m entre o município de Altamira e a Volta Grande.

Belo Monte Dam
Ilustração de como será a barragem de Belo Monte quando finalizada (image via Wikipedia

Serão três barramentos. O principal, localizado em Pimental, terá o maior vertedouro. Formará um reservatório cujas águas serão reguladas pela barragem de Bela Vista. Daí correrão outros até a barragem de Belo Monte, onde será construída a principal casa de força, responsável por 11.000 MW dos 11.233 MW que o governo calcula produzir com a usina. A média estará em torno de 4.500 MW.

Há um agravante. Conforme aponta o Instituto Socioambiental (ISA) em seu Atlas de Pressões e Ameaças às Terras Indígenas na Amazônia Brasileira, de dezembro de 2009. Este “importante conjunto de áreas protegidas conectadas (situado ao longo do Vale do Rio Xingu, do nordeste do Mato Grosso ao centro do Pará, perfazendo 264,7 mil km², 73% formados por terras indígenas e quase 25% por unidades de conservação) tem papel estratégico para a conservação por ser uma ligação entre os dois maiores biomas nacionais: a Amazônia e o Cerrado”.

Quando hospedou na Universidade de Brasília (UnB) o seminário A Hidrelétrica de Belo Monte e a Questão Indígena, promovido pela ABA, em 7/2, em parceria com o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e a Fundação Darcy Ribeiro, o reitor José Geraldo de Sousa Junior fez uma descrição precisa da situação. “Nitidamente, temos de um lado quem defende o modelo da matriz energética adotado pelo governo brasileiro e de outro quem acredita que este modelo é desumanizante. Seria possível construir outro modelo energético?”, questionou.

 

De um lado, o Governo aposta sua força em Belo Monte.

“Sem ela o País não teria outra fonte de energia capaz de garantir 4.500 MW médios, além de térmicas a óleo combustível. Poderia mesmo entrar na conta um pouco de energia eólica, solar e biomassa, mas jamais chegaríamos aos 4.500 MW necessários”, afirmou então o presidente da Eletrobrás, José Antonio Muniz Lopes, no início de fevereiro.

Cada ponto percentual de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, que vem se acentuando nos últimos dois anos, representa um aumento de 1,7% no consumo de energia. A atividade econômica brasileira deve entrar em uma trajetória de expansão mais branda a partir dos próximos meses e registrar uma taxa de expansão em torno de 4,5% a 5% nos próximos anos.

Do outro lado, o cacique kayapó Raoni Metuktire.

Français : Raoni place des droits de l'homme a...
Cacique kayapó Raoni Metuktire (Image via Wikipedia)

Um dos líderes indígenas mais respeitados no Brasil e no exterior, apoiado pelas mais expressivas lideranças indígenas do país, ambientalistas, universidades e movimentos sociais, Raoni foi mais longe e mais claro que Lopes. Mais longe quando afirmou aos secretários executivo da Secretaria Geral da Presidência da República, Rogério Sotili, e de Ativação Social da mesma Secretaria, Paulo Maldus, em reunião no Palácio do Planalto, em 8/2, que haverá uma guerra se as obras forem iniciadas. Mais claro, quando garantiu:“Se a obra começar, eu vou morrer, empreendedor vai morrer. Vai ter morte lá”.

No centro de tudo está a questão: o crescimento econômico – reconhecidamente responsável pela geração de emprego e distribuição de renda, que reduzem desigualdades sociais – necessariamente deve vir acompanhado por um pesado custo ambiental e social ou há meios sustentáveis para atingí-lo?

No encontro com Raoni e outras nove lideranças indígenas, que originalmente fora solicitado para ser com a presidente Dilma Roussef, Sotilli recebeu as 604 mil assinaturas com o resultado final das petições contra Belo Monte organizadas pela Avaaz (comunidade global de mobilização online) e Movimento Xingu Vivo para Sempre. Também foi entregue o documento de denúncias e reivindicações do Xingu Vivo, que, além de exigir o cancelamento da obra, exige participação efetiva da sociedade civil nos processos de definição da política energética nacional.

Sotilli disse que se “sente muito triste” com as críticas ao governo; reafirmou que a presidente Dilma Roussef aprofundará a interlocução com os movimentos sociais, mas não deixou dúvidas sobre a firmeza da decisão governamental de construir Belo Monte: “Dilma fará o que tem que ser feito. A presidente tem que pensar o Brasil como um todo”.

Uma demonstração cabal de que o governo federal não teme a ameaça de Raoni, as obras de acesso ao local onde será instalado o primeiro de dois canteiros de obras para a construção de Belo Monte tiveram início em plena segunda-feira de Carnaval, 7/3. O engenheiro José Biagioni, da Norte Energia, consórcio responsável pela obra, disse à Agência Brasil que esta fase se refere aos trabalhos autorizados na licença de instalação concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Uma semana depois, em 14/2, no Dia Internacional de Luta contra as Barragens, veio uma primeira resposta: mais de 200 pescadores de Altamira, Vitória do Xingu, Belo Monte, Senador José Porfírio e Porto de Moz, no Pará, manifestaram-se contra a construção da usina. Fizeram uma romaria fluvial até Altamira. Em frente à sede da Eletronorte, foram recebidos por suas mulheres e filhos que teciam, redes de pesca para simbolizar a unidade das populações ameaçadas pela hidrelétrica.

A guerra de Raoni

Estas são apenas as primeiras escaramuças da guerra declarada unilateralmente por Raoni. Seu principal campo de batalha terá lugar no sítio Pimental, a 40 quilômetros de Altamira, sede deste primeiro canteiro de obras. A data para acontecer é até o final de abril. Segundo o ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, este é o prazo máximo para o governo não perder a janela hidrológica necessária ao início da obra sem atrasos.

A vontade de Lobão não será suficiente. A vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, informou que “o BNDES (que banca o financiamento da maior parte da obra) trabalha com uma condicionante: o licenciamento ambiental definitivo. Por quê? Do contrário seria um risco”. O que existe hoje é uma licença parcial, concedida pelo Ibama, autorizando o início das obras do canteiro.

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) concedeu um empréstimo-ponte de R$ 1,1 bilhão à Norte Energia exigindo, no entanto, que ela não faça qualquer intervenção no “sítio”. Só que as árvores do “sítio”, na previsão de Lobão, começarão a ser derrubadas a partir da licença parcial concedida pelo Ibama. Texto do documento do BNDES ao Ministério Público Federal informou que na minuta do contrato “figura a obrigação explícita para a beneficiária de não efetuar qualquer intervenção no sítio em que está prevista a construção da usina sem que tenha sido emitida a licença de instalação do empreendimento como um todo”.

Ainda assim, Pirakuman Yawlapiti, irmão de Aritana, cacique geral do Xingu e da comunidade Yawalapiti, situada ao sul do Parque Indígena do Xingu, disse que Araras e Jurunas, as etnias mais prejudicadas, mantém sob observação o local escolhido para o canteiro. Ao menor sinal do início do desmatamento dos 450 hectares necessários para abrigá-lo, convocarão todas as grandes lideranças e etnias do Xingu. Pirakumã, que esteve na reunião do Planalto, advertiu que a guerra anunciada por Raoni se estenderá por quantas batalhas forem necessárias, durante o tempo que durar a obra (quatro anos, segundo o governo).

Planejamento energético sem planejamento humano

Quando planeja geração de energia, tradicionalmente o governo brasileiro coloca o mapa hidrográfico do país sobre a mesa, estuda a abundância das bacias hidrográficas, seus milhares de rios e não tem dúvida: escolhe as hidrelétricas como caminho mais viável. 73% de toda energia produzida no Brasil em 2007 se originou nestas usinas. Um mapeamento da energia produzida no país feito pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) em 2007 dimensionou esta preferência. O PAC 2 confirma.

O PAC 2 prevê a construção de 54 hidrelétricas – 44 usinas convencionais, que vão gerar 32.865 MW e dez das chamadas usinas plataformas, que vão gerar outros 14.991 MW e prevêem seu isolamento logo após a construção, de modo a evitar o crescimento populacional desordenado em seus arredores. Prevê ainda a construção de 71 centrais de energia eólica, localizadas principalmente no nordeste e no sul do país. Somadas terão capacidade para gerar 1.803 MW. Também estão incluídas três usinas termoelétricas movidas à biomassa para gerar 224 MW.

A vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, acusou Belo Monte de não contemplar um estudo de impacto ambiental que trate do componente humano. Ela explicou que a resolução 001 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de 1986, portanto, bem anterior a Belo Monte, foi visionária ao estabelecer a forma como deveria se dar o processo de licenciamento ambiental, principalmente o estudo de impacto ambiental, contemplando os meios físico, biótico e antrópico.

A ordem estabelecida não é aleatória. “Exatamente porque o homem é o centro das preocupações é que se vai analisar primeiro qual é o impacto no meio físico, como isso vai repercutir entre os animais, entre a vegetação e depois qual é a soma de todas essas repercussões na vida dos homens”, disse.

Rio Xingu
Rio Xingu (Blog do Mílton Jung via Flickr)

Duprat taxou de farsa o processo de licenciamento de Belo Monte. “Se as pessoas não sabem como vão ser atingidas, como vão fazer a crítica?”, questionou. Para ela, os índios foram mal estudados, enquanto os outros grupos não foram sequer analisados. “Nas audiências públicas, não havia um estudo de impacto ambiental porque não havia um estudo sério e consistente sobre o meio antrópico”, completou.

Ela explicou que, apesar de não ter estudo de impacto ambiental que trate do componente humano, passou-se para outro momento, como se fosse possível pular em um empreendimento o estudo de impacto ambiental e passar a colocar questões humanas como condicionantes para as próximas licenças. Conforme lembrou, isso foi sendo arrastado para um momento posterior até chegar, agora, à construção de um canteiro central, trabalhando basicamente com a teoria do fato consumado, sem minimamente saber qual vai ser o impacto na vida de todos.

Duprat também criticou a afirmação de que as hidrelétricas representam a energia limpa. “Como é que pode ser limpo um empreendimento que provoca degradação [ambiental], fim de relações de compadrio, fim de relações de amizade e desestrutura culturalmente um grupo? Considerar isso uma energia limpa é considerar o meio ambiente absolutamente dissociado das pessoas”, declarou. De acordo com ela, isso está em contrariedade à Constituição, que é antropocêntrica e tem como grande princípio norteador o da dignidade da pessoa humana.

O lado sujo das hidrelétricas

De fato, a construção de hidrelétricas causa um estrago e tanto. Na área que recebe o grande lago que serve de reservatório da usina, a natureza se transforma: o clima muda, espécies de peixes desaparecem, animais (os que conseguem) fogem para refúgios secos, árvores viram madeira podre debaixo da inundação, entre outros impactos.

O homem, como observou Duprat, vive bem no meio de toda essa transformação e é o maior atingido por ela. Milhares de pessoas deixam suas habitações e têm que recomeçar sua vida do zero em outro lugar.

“Em casos como esse, já testemunhei trabalhadores que viviam tradicionalmente do cultivo de sua terra perambulando e dependendo de cestas básicas doadas por empresas”, denunciou o deputado petista maranhense Domingos Dutra, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal.

Dutra se referia à hidrelétrica de Estreito, inaugurada no início deste ano na divisa do Tocantins e Maranhão. Sua construção deslocou, forçadamente, cerca de duas mil famílias da região. Estreito é a sétima hidrelétrica no Rio Tocantins. Ainda estão previstas outras três usinas ao longo do rio – a barragem de Marabá, prevendo o deslocamento de 40 mil pessoas, entre elas do povo indígena Gavião, e a de Serra Quebrada, que inundará parte da terra dos Apinajé.

A Usina de Itaipu, marco do Brasil Grande pregado pelos militares nos anos 1970, desapropriou 42.444 pessoas, 38.440 delas trabalhadores e trabalhadoras do campo, que só em 1993 viram um primeiro acordo de indenização. Mas aí já era tarde. Muitas famílias migraram, outras se perderam pelo caminho, outras se separaram. Enfim, famílias que perderam não somente suas terras, mas, senão toda, ao menos parte de sua história no fundo do reservatório da segunda maior usina hidrelétrica do mundo.

Principais impactos do desalojamento de populações atingidas por barragens

  • Interfere em bens de valor afetivo, cultural e religioso
  • Inunda sítios arqueológicos
  • Desaloja populações nativas e aldeias indígenas
  • Inundação das terras agrícolas torna as pequenas propriedades inviáveis economicamente
  • Cria dificuldades de circulação e comunicação entre cidades vizinhas
  • Desestrutura as famílias de origem rural que, às vezes, são transferidas para áreas muito distantes
  • Condiciona a concentração fundiária onde predominam as pequenas e médias propriedades rurais
  • Cria um falso pico de desenvolvimento local que tende a esgotar-se com o término da construção e entrada em operação

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Brasileiros de Raiz

Única revista nacional especializada em questão indígena, Brasileiros de Raiz tem como objetivo recolocar a história em seu trilho, dar voz e informações atualizadas e verdadeiras sobre povos indígenas. Para saber mais, visite: http://brasileirosderaiz.com.br [/box]