Seca na Amazônia: alguma coisa está fora da ordem

A Amazônia vive hoje a pior estiagem dos últimos 50 anos. Fotos estampadas na mídia mostram cenários desoladores na região que detém mais de 20% da água doce da Terra. São igarapés secos, barcos encalhados em bancos de areia de rios, mortandade de peixes, populações isoladas sem ter como se locomover e sem ter o que comer. São mais de 250 mil pessoas atingidas nos estados do Amazonas e do Pará.

Cautelosos, cientistas e pesquisadores falam na possibilidade de que o aumento do calor no planeta, provocado pela emissão de gases de efeito estufa tenha começado a potencializar eventos climáticos extremos, mas avaliam que ainda não é possível estabelecer uma relação direta com o aquecimento global.

Entretanto, as evidências vão se acumulando. Exemplos disso são as enchentes que têm ocorrido com freqüência ao redor do mundo como as que ocorreram na China recentemente, furacões como o Katrina, que devastou a região de Nova Orleans (EUA) em agosto passado, e o Wilma, que ameaça e destrói, neste momento, a região do Golfo do México.

No caso específico da seca que castiga a Amazônia, no entanto, a comunidade acadêmica concorda quanto a algumas ameaças que poderão se concretizar no futuro. Uma delas é a “savanização” da maior floresta tropical do mundo, um processo de perda de biodiversidade causada por alguns graus centígrados a mais no termômetro planetário e pela perda de umidade. Vegetação típica da África Central, a Savana é o outro nome utilizado para definir o Cerrado brasileiro, ambiente mais pobre em diversidade biológica que a floresta amazônica. Também são fortes as evidências de que o desmatamento e as queimadas podem potencializar os efeitos da seca na região.

A maior seca da Amazônia Ocidental em 102 anos

"No oeste da Amazônia, no Acre, por exemplo, pelo menos pelos registros mais confiáveis que temos, esta é a seca mais forte em 50 anos. Já o rio Negro na região de Manaus, esteve tão baixo apenas quatro ou cinco vezes em 102 anos de registros", avalia o pesquisador Carlos Artur Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ele explica que a causa principal do fenômeno seria um aumento entre um e dois graus das águas do Atlântico, ao norte da América do Sul, o que acarretaria uma grande concentração de chuvas nesta região. O resultado seria um movimento descendente do ar em regiões próximas, como a Amazônia, e, conseqüentemente, a diminuição da formação de nuvens.

Nobre mantém a cautela em relação a estabelecer neste momento algum tipo de relação direta entre o aquecimento global e a falta de chuvas na região, que usualmente detém os maiores índices pluviométricos e mais de 20% da água doce do planeta. Para o especialista, o fenômeno pode ser considerado uma “variabilidade natural” do clima. Mas admite que o desmatamento e as queimadas também podem contribuir parcialmente para a seca. E lembra que existem trabalhos científicos que indicam que a fumaça das queimadas também pode dificultar a formação das nuvens. "Essas são sugestões teóricas que ainda carecem de uma comprovação, mas também não podem ser eliminadas e têm de ser levadas em conta. [O desmatamento e as queimadas] não são o motivo principal, mas podem ser fatores que intensificaram, na minha opinião, um pouco, a seca".

Para o ecólogo Paulo Moutinho, coordenador de Pesquisa do Programa de Mudanças Climáticas da organização não-governamental Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), "no caso específico da Amazônia e dessa seca, você tem, sim, um agravante que é o desmatamento". Ele aponta que, a grande ameaça para a floresta é a conjunção entre fatores climáticos planetários e os problemas locais, como a derrubada indiscriminada das árvores.

Moutinho explica que quase 50% das chuvas que caem sobre a região vêm da chamada "evapotranspiração" da própria floresta, ou seja, do vapor de água expelido pelas árvores para a atmosfera. "Se você remove a floresta e substitui por pasto, por exemplo, essa capacidade de abastecer a atmosfera com o vapor que alimenta as nuvens é bastante reduzida. Portanto, em eventos globais como este, em uma Amazônia cada vez mais desmatada, estes eventos tornam-se ainda mais intensos".

Estudo do Ipam

O Ipam é uma das organizações responsáveis por um dos maiores estudos já realizados na Amazônia sobre mudanças climáticas. Seus pesquisadores cobriram com painéis um hectare de terra em uma área localizada em Santarém (PA), a 930 quilômetros de Belém, para limitar a oferta de água às árvores no período de chuvas mais acentuadas. Iniciado no ano 2000, o trabalho ainda não está terminado, mas conclusões preliminares permitem afirmar que a resistência da floresta tem limites e que as mudanças climáticas podem causar prejuízos irreversíveis.

Secas prolongadas podem iniciar um ciclo vicioso capaz de fragilizar a floresta até extremos perigosos. O desmatamento e as queimadas diminuem a evapotranspiração, que diminui a intensidade das chuvas, o que, por sua vez, torna a vegetação mais seca e suscetível às queimadas. Novos incêndios florestais produzem fumaça, que dificulta a formação de nuvens. Durante o processo, a taxa de mortalidade das grandes árvores, as principais responsáveis pela manutenção da umidade no interior da floresta, pode aumentar e, com isso, diminuir sua capacidade de regeneração.

A imensa maioria dos grandes e pequenos produtores rurais na Amazônia usa a queimada para preparar a terra. De acordo com o Ipam, quase a metade dos incêndios em florestas na Amazônia são involuntários, causados pela propagação acidental do fogo a partir de uma área já desmatada que estava sendo limpa.

Problema político

"O que aconteceu agora é mais ou menos o que está previsto pelos modelos climáticos. Daí a tentativa de associar esses episódios com as mudanças climáticas. Mas não há comprovação”, avalia Moutinho. Ele considera que, no mínimo, a seca que está ocorrendo na Amazônia é um indício bastante forte e um alerta para o problema do aquecimento global. O pesquisador lembra que, hoje, há 30% mais gás carbônico na atmosfera, o principal causador do efeito estufa, do que existia antes da Revolução Industrial, no século XVIII. Nos últimos cem anos, a temperatura média da Terra aumentou em 1 grau centígrado, o suficiente para causar várias alterações no clima.

Paulo Moutinho é um dos autores, com Márcio Santilli, do ISA, e com Carlos Nobre, do Inpe, de uma proposta para incluir metas de diminuição do desmatamento no Protocolo de Kyoto, o tratado internacional que entrou em vigor, neste ano, e traz metas para a diminuição das emissões de gases poluentes causadores do efeito estufa. Os responsáveis pela proposta consideram que, mesmo sem a comprovação científica de que a ação do homem já esteja influenciando nas mudanças climáticas, é preciso realizar imediatamente todos os esforços possíveis para evitá-las e mitigá-las.

O secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo, o físico José Goldemberg, uma das maiores autoridades brasileiras em questões energéticas e nucleares lembra que a Convenção do Clima, de 1992, declara em um de seus artigos que a ausência de uma certeza científica completa não deve impedir medidas de mitigação. "O que ocorre é que apesar da prudência de meus colegas cientistas em afirmar a existência de uma relação de causa e efeito entre o aquecimento global e o Katrina, as enchentes na China, a seca na Amazônia e por aí afora, não há a menor dúvida de que esse eventos climáticos extremos estão aumentando e são interpretados como as primeiras indicações do efeito estufa, as primeiras pegadas. Essas evidências estão se acumulando. Há um grande número de cientistas que acredita nessa correlação. Ela não pode ser demonstrada matematicamente ainda, mas vai nessa dire

ção" (veja entrevista com José Goldemberg abaixo).

Márcio Santilli cita o chamado princípio da precaução, consagrado em vários tratados ambientais internacionais, que afirma que quando não há certeza científica sobre a segurança para o meio ambiente e para os seres humanos de um produto ou de uma atividade, eles devem ser controlados ou mesmo proibidos. O representante do ISA considera que as mudanças climáticas precisam ser encaradas como um problema político e que é preciso uma mobilização planetária para tentar frear o ritmo das emissões de gases poluentes. "Não há prova, mas evidências de sobra, da correlação entre as coisas. E, em legítima defesa da espécie, devemos cobrar providências imediatas”, defende.

As conseqüências da seca

No dia 10 de outubro, o governo estadual decretou estado de calamidade pública em todas as 61 cidades do Amazonas. No Pará, onze municípios já decretaram estado de emergência e dois estão em situação de alerta. Por causa da diminuição do volume dos rios e da contaminação provocada pela morte de toneladas de cardumes de peixes, mais de 167 mil amazonenses e 92 mil paraenses estariam sendo afetados pela falta de água potável, comida e transporte. As informações são do Ministério da Integração Nacional e do governo do Pará. Mais de 25 mil pescadores, cerca de 20% do total, estão sem trabalho e 600 escolas já fecharam as portas no Amazonas.

Na quarta-feira, dia 19 de outubro, o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, sobrevoou as comunidades mais afetadas no Estado e anunciou a liberação pelo governo federal de R$ 30 milhões, 50 mil cestas básicas, 130 kits de medicamentos e 18 toneladas de hipoclorito de sódio para tratar a água. O governador amazonense Eduardo Braga (PPS) admitiu à imprensa local estar preocupado com o abastecimento de água para Manaus e disse que os efeitos da seca também deverão chegar ao Baixo Amazonas, sobretudo nos municípios de Maués, Boa Vista do Ramos, Nhamundá e Silves, atingindo mais 87,5 mil moradores nestes locais.

Contribuição do Brasil é reduzir desmatamento

Confira entrevista com o secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo, o físico José Goldemberg, uma das maiores autoridades brasileiras em questões energéticas e nucleares.

Como o senhor avalia a posição brasileira em relação às mudanças climáticas?

José Goldemberg – O Brasil, excluindo o que se passa na Amazônia neste momento, é um emissor pouco importante de gases de efeito estufa. Se fizermos uma lista dos maiores emissores de gases que provocam o efeito estufa, o Brasil ocupa a décima oitava posição. E as emissões de gases de efeito estufa são aproximadamente 1% do total mundial, apesar de a população brasileira representar 3% da população mundial. É um emissor pequeno. Isso foi refletido no Protocolo de Kyoto, em que países em desenvolvimento como Brasil, Índia e China foram excluídos das obrigações de reduzir as suas emissões. Assinado em 1997, o protocolo entrou em vigor em 2005, portanto com atraso de 8 anos, e há dúvida se os compromissos assumidos pelos países de primeiro mundo vão ser cumpridos. Ou seja a situação não é boa. E devido ao que está ocorrendo na Amazônia [desmatamento e queimadas], o Brasil passa para o 4º lugar na lista dos maiores emissores de gases de efeito estufa. Assim, a contribuição que o País pode dar para a redução dos problemas globais gerados pelo efeito estufa seria reduzir o desmatamento da Amazônia.

Que outras medidas podem ser tomadas?

José Goldemberg – O Estado de São Paulo, por exemplo, adotou duas medidas que não vão resolver o problema da Amazônia mas vão ajudar. A primeira é que em todas as concorrências públicas exige-se que se a madeira vier da Amazônia, deverá ser certificada. A segunda medida é a decisão de intensificar a fiscalização para combater a entrada de madeira clandestina no Estado por meio de ações da polícia. Mas são coisas pequenas comparadas com o que está acontecendo na Amazônia. Afora isso, o que se pode fazer é tentar melhorar a produção e o consumo de energia. Isso não é o dominante – porque o dominante é o que está ocorrendo na Amazônia –, mas está sendo feito em parte. Há um esforço de usar energia com mais eficiência porque à medida que isso ocorre é preciso construir menos usinas. Quando o sistema brasileiro era basicamente hidrelétrico, a construção das usinas não criava problemas para o efeito estufa. Acontece que agora, o sistema energético brasileiro de produção de eletricidade está se movimentando para fontes térmicas, que são o gás natural e o carvão, que contribuem para o efeito estufa porque emitem gases. Além disso, acho que se pode aumentar a cobertura florestal fora da Amazônia. Não resolve o problema, mas compensaria um pouco a perda da cobertura florestal lá.

O Brasil tem estratégias voltadas para as mudanças climáticas?

José Goldemberg – Não. A estratégia fundamental para isso tem de ser centrada em torno de ações na Amazônia. É a grande contribuinte. O resto do sistema é relativamente adequado. Ocorre que o governo federal jamais aceitou limitações nas emissões brasileiras, se escudando nas resoluções de Kyoto. Em dezembro, haverá a conferência internacional da ONU sobre mudança climática em Montreal, no Canadá, que vai rever o estado da aplicação do protocolo. A proposta que o governo de SP vai levar por meio de seus representantes, e eu serei um deles, será de que apesar de o Brasil não ter obrigações de reduzir suas emissões, que a conferência de Montreal tome a decisão de renegociar o Protocolo de Kyoto. De modo que sejam criados mecanismos pelos quais países como o Brasil, China e Índia adotem medidas para reduzir suas emissões de gases de efeito estufa. Mesmo que elas não sejam obrigatórias, os países adotariam métodos voluntários. Nossa proposta é de que os grandes bancos internacionais de fomento negociassem com estes países no sentido de adotarem metas voluntárias de redução. Então, essas instituições financeiras estabeleceriam programas de estímulo à realização de outras atividades que, no caso do Brasil, não provocassem o desmatamento da Amazônia. Na nossa proposta, o Brasil se disporia a fazer, voluntariamente, um grande esforço para reduzir o desmatamento, estabelecendo metas. Por exemplo, 10% no ano que vem, 20% no outro. E os bancos internacionais colocariam recursos para programas de desenvolvimento da Amazônia que não envolvessem o desmatamento, encorajando atividades mais industriais. Sob esse ponto de vista, acho que a Zona Franca de Manaus é algo que protege a Amazônia. Atividades industriais em Manaus atraem a força de trabalho para a cidade. De fato, o estado do Amazonas é o que menor índice de desmatamento registra entre todos os outros da região porque a população não está se deslocando para o interior para trabalhar em atividades como as que ocorrem em Mato Grosso e outros estados.

A quem cabe discutir o tema das mudanças climáticas no País?

O Brasil tem uma Comissão Interministerial de Mudanças Climáticas, que é secretariada pelo Ministério de Ciência e Tecnologia. E o que tem feito é apreciar projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Exerce um trabalho basicamente burocrático, que não é ruim, é bom, mas não propôs até agora políticas mais abrangentes.