Igreja culpa a ausência do Estado e o poder do agronegócio pelo assassinato da irmã Dorothy

De janeiro a setembro de 2004, em todo o País, teriam ocorrido 53 assassinatos de trabalhadores rurais. Dados parciais para o ano de 2004 apontam 12 mortes só no Pará. Também no ano passado, foram registradas 161 ocorrências de ameaças de mortes, sendo que, somente no estado, elas foram 40, incluindo aquelas feitas contra a freira missionária. Governo decide enviar tropa do Exército à região.

Em uma entrevista coletiva realizada ontem, dia 16 de fevereiro, em Brasília, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Prelazia do Xingu – órgãos ligados à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – relacionaram o assassinato da freira missionária Dorothy Stang à ausência do Poder Público no Pará e ao avanço do agronegócio sobre a floresta amazônica e sobre as terras dos trabalhadores rurais. Dorothy foi morta, no sábado, dia 12, em Anapu (PA), em virtude de denúncias feitas contra fazendeiros e grileiros de terra.

“O que está acontecendo em Anapu e em outros lugares do Pará, como a Terra do Meio, é que o crime tornou-se um Estado paralelo”, denunciou Dom Tomás Balduíno, presidente da CPT. Ele acusou o governo e a polícia estaduais de serem coniventes com os bandidos. “O crime organizado englobou o Pará e começa a invadir as instituições. Os criminosos são os financiadores das campanhas eleitorais”.

Dom Tomás também não poupou a administração federal. Ele afirmou que falta vontade política para resolver o problema fundiário e qualificou as políticas sociais do governo Lula como um “fracasso”. “Não existem recursos, o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] não tem estrutura, temos notícias de que Polícia Federal estaria fazendo as investigações usando serviços de moto-táxi e carros de amigos dos investigadores”, afirmou.

“Existem provas científicas de que, onde existe o agronegócio e o latifúndio, a violência é maior”, argumentou D.Tomás. Ele fez questão de deixar claro que, apesar de não se opor à presença do Exército, a ação do Estado na região deveria priorizar a mudança do modelo produtivo e políticas sociais efetivas, em especial, para a reforma agrária. “Se querem insistir na lógica da exportação do agronegócio, então vamos continuar exportando mogno, por exemplo. Mas quantas Dorothys isso vai nos custar?”, questionou.

A CPT e a Prelazia insistiram no fato de que a morte da irmã Dorothy é resultado da luta dos trabalhadores pela terra. Em nota divulgada durante a entrevista, a comissão aponta que o assassinato acabou se tornando uma denúncia contra a absurda concentração de terras no Brasil. “Fazendeiros, madeireiros, plantadores de soja, acobertados pelo discurso da produtividade, avançam sobre as terras públicas, sobre territórios ocupados por populações tradicionais – indígenas, ribeirinhos, posseiros e muitos outros”, critica o documento.

O texto exige ainda que o governo “rompa o acordo feito com madeireiros, suspendendo todos os planos irregulares de manejo florestal”. No último dia 3 de fevereiro, a administração federal concordou em liberar planos suspensos e em prorrogar a operação de outros projetos em 2005 (confira). Para D. Tomás Balduíno, o acordo também significou complacência com os grileiros de terras, o que estimularia o clima de impunidade na região.

Durante a entrevista, a CPT também divulgou os números de assassinatos e ameaças de morte realizados contra trabalhadores rurais, sindicalistas, lideranças e agentes da própria igreja. Segundo a CPT, de janeiro a setembro de 2004, em todo o País, teriam ocorrido 53 assassinatos. No governo Lula, teriam acontecido 125 assassinatos no campo em todo o território nacional. Só no Pará, em 2003, as mortes teriam saltado para 33, enquanto que dados parciais para o ano de 2004 apontam 12 mortes. Entre 1985 e 2003, 1349 pessoas teriam sido mortas no campo em todo o Brasil.

Ainda segundo as informações divulgadas, foram registradas pela comissão, apenas em 2004, 161 ocorrências de ameaças de morte, sendo que, só no Pará, foram 40, incluindo aquelas feitas contra a irmã Dorothy.

Aumenta o número de mortos

Segundo dados publicados pela imprensa, desde sábado, dia 12, já teriam ocorrido sete mortes no interior do Pará. Para integrantes de organizações civis que atuam nas cidades da região, é comum haver dois ou três assassinatos por final de semana. Há informações de que ameaças de morte a trabalhadores e sindicalistas continuam sendo feitas.

A polícia trabalha com a hipótese de que cinco dos crimes estariam diretamente relacionados a conflitos de terra. Além da irmã Dorothy, também em Anapu, no domingo, dia 13, foi encontrado o corpo do agricultor Adalberto Xavier Leal, que teria trabalhado para o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, suspeito de ser o mandante do assassinato da missionária. Na terça-feira, Daniel Soares da Costa Filho foi assassinado em Parauapebas. Ele era integrante do sindicato de trabalhadores rurais da cidade. No mesmo dia, mais dois corpos foram encontrados. Cláudio Matogrosso, assentado que havia participado de protestos contra a invasão de grileiros e o desmatamento ilegal, foi achado a 30 km do local onde a Irmã Dorothy foi morta. O cadáver de Olisvaldo Morais de Lima foi encontrado em uma estrada de terra do assentamento Mandacari, no município de Pacajá, a 28 km da sede de Anapu.

A motivação dos outros 2 assassinatos ainda não foi confirmada. Na segunda-feira, um corpo ainda não reclamado e identificado foi achado em uma fazenda, em Ipixuna, no oeste do estado. Na terça-feira, André Barbosa, um comerciante de Marabá, também foi morto.

Além de Vitalmiro Bastos de Moura, a polícia já pediu a prisão preventiva de outros três suspeitos do assassinato da irmã Dorothy: José Maria Pereira e Uquelano Pinto, que seriam pistoleiros, e o suposto intermediário, Amauri Cunha. Os quatro estão foragidos.

Rigor e medidas de proteção ambiental

O aumento no número de casos de mortes confirmados obrigou o governo a enviar ao Pará um contingente de 2 mil soldados do Exército para reforçar a segurança. Além disso, está sendo cogitada a adoção de um pacote de medidas para pôr fim à violência no campo. O governo estadual também prometeu aumentar o número de policiais militares e civis na região.

Ontem, o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, reafirmou a pretensão do governo federal de manter "uma postura firme de repressão ao crime e à ilegalidade na região do Pará e da Amazônia". De acordo com o ministro, não haverá impunidade no que se refere às mortes de líderes populares e pessoas ligadas a trabalhadores rurais. Dirceu disse também que o governo não pretende recuar das ações de regularização fundiária e proteção ambiental no estado.

Na terça-feira, dia 15, depois de uma reunião com vários ministros e com o governador paraense Simão Jatene (PSDB), o governo federal havia afirmado que o crime contra a irmã Dorothy teria sido uma “reação” às medidas que já estariam sendo tomadas na região. Nenhum pacote de medidas estaria sendo elaborado uma vez que as ações necessárias ao controle dos conflitos de terra e ao combate da criminalidade no campo também já estariam sendo implementadas. "O governo não vai anunciar pacote, não vai organizar força-tarefa porque a questão é permanente, não é conjuntural. O que nós precisamos é ir consolidando a política de zoneamento do estado", afirmou Dirceu.

Na reunião que antecedeu a entrevista, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, por sua vez, sugeriu que fossem reforçados os programas de Combate ao Desmatamento da Amazônia e para o Desenvolvimento Sustentável da Área de Influência da BR-163, a instalação de bases do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) na região, a regularização fundiária e a parceria da Polícia Federal e do Exército para o c

ombate à ilegalidade em toda a Amazônia. O assunto deve ser debatido nesta quinta-feira, durante encontro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Segundo Marina, nos próximos dias será implementada uma série de áreas protegidas, somando mais de quatro milhões de hectares, na região conhecida como Terra do Meio, entre os rios Xingu e Tapajós, no Pará. Além disso, o governo paraense se comprometeu a aprovar na Assembléia Legislativa do estado e a enviar ao Congresso Nacional o plano estadual para zoneamento ecológico-econômico.

Conforme Simão Jatene, o zoneamento dividirá os 1,25 milhão de quilômetros quadrados do Pará em quatro grandes regiões: uma de proteção integral, uma de uso restrito, outra de uso intensivo e, por fim, uma de recuperação. Segundo o governador, o projeto poderá ser aprovado já na próxima semana. "O ordenamento territorial é fundamental para que se minimize a grilagem", disse.

STF concede liminar a Mozarildo Cavalcanti e adia homologação

A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Ellen Gracie suspendeu, na última segunda-feira, dia 3/1, a portaria 820/98 do Ministério da Justiça que oficializou a demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima. A decisão liminar atendeu a uma Ação Cautelar ajuizada pelo senador Mozarildo Cavalcanti (PPS-RR) e volta a impedir a homologação em área contínua da TI, pelo menos até que os outros ministros do tribunal opinem sobre a questão, o que pode ocorrer em fevereiro. Há ainda a possibilidade do relator do caso, ministro Carlos Aires Britto, cassar a deliberação de sua colega.

Em sua decisão, Gracie argumenta que a TI não poderia ser homologada antes do julgamento de mérito da ação impetrada por alguns fazendeiros contra a portaria 820 ou antes de uma outra decisão do STF, esta sobre a Reclamação 2833 da Procuradoria-Geral da República (PGR) que, por sua vez, questiona um suposto conflito federativo entre a União e o estado de Roraima na mais recente batalha judicial envolvendo o caso.

No último dia 15 de dezembro, Britto havia suspendido as liminares que impossibilitavam a homologação em área contínua. Com isso, a medida voltara a depender apenas da assinatura de um decreto pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva. Informações divulgadas pela imprensa nos últimos dias davam conta de que o governo estaria fazendo os ajustes finais no texto do ato e pretendia publicá-lo até o final deste mês.

“É a demora do governo que está permitindo todas essas reações, tanto as ações judiciais quanto os atos de violência”, aponta Joênia Wapixana, advogada do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Ela refere-se, em especial, às agressões promovidas por produtores rurais, no final de novembro passado (confira). Joênia alerta que a última decisão do STF pode estimular novos atos de violência. “O governo e o Ministério Público Federal têm de tomar providências urgentes, precisamos garantir a segurança da comunidade”.

Procurada pela reportagem do ISA, a Advocacia-Geral da União(AGU) informou que ainda está estudando a possibilidade de recorrer da decisão de Ellen Gracie.

Há mais de 20 anos, as comunidades indígenas Ingarikó, Macuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana lutam pelo reconhecimento definitivo da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, mas somente em 1998 o Ministério da Justiça publicou a portaria que oficializou a demarcação em área contínua, totalizando um território de 1,67 milhão de hectares. Em 1999, com o apoio de políticos, de empresários e do governo estadual, fazendeiros da região impetraram uma ação popular contra a portaria (foi esta última ação que havia sido suspensa por Britto, no dia 15/12).

Argumentos antigos

Em seu pedido de liminar, Cavalcanti repete os argumentos já utilizados na ação popular que originou o processo da Raposa-Serra do Sol. Entre eles, o de que a homologação em área contínua “importará na retirada de milhares de pessoas” e no acirramento dos conflitos na região.

“Quando o território foi demarcado não houve aumento dos conflitos, esse discurso é usado para tentar assustar e constranger a sociedade”, rebate Joênia. Para ela, é a desinformação e a indefinição da situação que vem provocando insegurança na área. “Em outros lugares já foram feitas homologações em condições semelhantes e cada parte encontrou alternativas adequadas”.

A advogada também contesta a idéia de que a homologação em área contínua trará transtorno e mudanças abruptas para as populações não-indígenas. “O processo deve ser gradual, feito dentro da lei e seguindo um plano de retirada que disponibilize novas terras para essas pessoas. O governo diz que tem esse plano e temos informações de que o Incra estaria estudando o caso”.

Ao dizer que a demarcação proposta pelo MJ "abrange três municípios" e que a homologação "importará na retirada de milhares de pessoas" o pedido de liminar superestima a ocupação de não-indígenas na região. Na verdade, apenas a sede do município de Uiramutã está dentro do território demarcado – sua população estimada é de 6,3 mil pessoas, sendo que, de acordo com dados do CIR, cerca de 700 são não-indígenas. A cidade foi criada em 1996, após a identificação da TI.

Cavalcanti também volta a apontar um suposto prejuízo econômico ao estado em virtude da desativação das plantações de arroz existentes na área. A quase totalidade do rebanho bovino e da produção agrícola da região, no entanto, está hoje nas mãos dos próprios índios. Além disso, sabe-se que a frente agrícola mais dinâmica em Roraima está no sul do estado e não na parte abrangida pela Raposa-Serra do Sol.

Um senador contra a causa indígena

Mozarildo Cavalcanti só pôde sair vitorioso na última decisão do STF sobre a Raposa-Serra do Sol porque requereu e conseguiu ser admitido como “terceiro interessado” na Reclamação 2833 da PGR, depois de já ter conquistado a mesma competência na ação popular que originou todo o processo.

O senador tem se mostrado um fiel aliado dos grupos que se opõem à demarcação das TIs em Roraima. Com a apresentação de projetos e a coordenação de investigações parlamentares, ele se destacou, nos últimos anos, como uma das principais vozes dos setores antiindígenas brasileiros no Congresso Nacional, embora se auto-intitule defensor dos interesses dos índios.

Cavalcanti foi eleito para o Senado em 1998, depois de exercer o mandato de deputado federal por duas vezes (1983-1987 e 1987-1991). Atualmente, é líder do Partido Popular Socialista (PPS) e presidente da Comissão Temporária Externa que analisa a questão indígena e fundiária nos estados de Roraima, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia e Rio Grande do Sul. No ano passado, a comissão apresentou o Projeto de Lei (PLS) 188, que, ao alterar o procedimento para a demarcação, cria uma série de dificuldades para a criação de novas TIs, entre elas, institui o controle do Senado sobre o processo.

Em 2001, o senador já havia sido responsável pelo requerimento para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre as demarcações de áreas indígenas na Amazônia. Na prática, a investigação acabou tentando atingir os processos relativos às TIs Raposa-Serra do Sol e Yanomami(RR/AM).

O parlamentar também é autor da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 38/99, que limita a 50% do território de cada estado a área total passível de ser reconhecida como Unidade de Conservação (UC) ou TI.

Cavalcanti exerceu ainda a presidência da CPI destinada a investigar a atuação das organizações não-governamentais, mas que, na verdade, ficou marcada pela tentativa de criminalizá-las. No ano passado, ele conseguiu aprovar no Senado o Projeto de Lei 07/03, que impõe restrições ao direito de livre associação e cria uma série de controles burocráticos para restringir a ação das ONGs.