Um novo desfile e a mesma fantasia

Haja fôlego, paciência, persistência. Há uns 15 anos vem o autor destas linhas transcrevendo periodicamente graves questões levantadas por cientistas, administradores públicos, Tribunais de Contas, a respeito do famigerado projeto de transposição das águas do Rio São Francisco. A todas responde a administração federal – quando responde – com argumentos do tipo “não se pode negar uma caneca de água a 12 milhões de vítimas da seca”. E vai em frente, até que surja uma nova barreira – como foi a greve de fome do bispo dom Luiz Flávio Cappio.

Agora, esquecido o bispo e derrubadas na Justiça medidas liminares, anuncia o Ministério da Integração Nacional que fará imediatamente licitações (no valor aproximado de R$ 100 milhões) para contratar empresas que façam os projetos executivos da obra, orçada em R$ 6,6 bilhões nesta etapa. E o bispo manda nova carta ao presidente, lembrando que o Tribunal de Contas da União diz que o projeto não beneficiará o número de pessoas que se alardeia, que a Agência Nacional de Águas propõe obras em 530 municípios para solucionar os mesmos problemas com metade dos recursos previstos para a transposição e que populações a 500 metros do rio continuarão, apesar da transposição, a sofrer com a falta de água. Já o Comitê de Gestão da bacia (que por 44 votos a 2 foi contra a transposição) diz que esta atende a menos de 20% do semi-árido, que 44% da população do meio rural continuará sem acesso a água – “exatamente os que mais precisam” – e que a revitalização do rio prometida pelo Ministério da Integração Nacional precisa “sair do campo da retórica”. E o Ministério Público volta a recorrer à Justiça, lembrando que nos termos da Constituição, por atingir terras indígenas, a obra precisa de autorização do Congresso Nacional, o que ainda não aconteceu.

Como já foi dito aqui, parece uma assombração que some e reaparece de tempos em tempos. Sem falar no governo imperial, foi no começo da década de 1980, ainda nos tempos do “Brasil Grande” da ditadura militar, que o projeto ressuscitou, para uma vida muito breve. Pouco mais de uma década depois, embora o então ministro do Meio Ambiente Rubens Ricupero dissesse que o São Francisco já era “um rio ameaçado de extinção”, por causa do desmatamento nas regiões onde nascem e por onde passam seus formadores, o Ministério do Interior voltou à carga, com um projeto de transpor 150 metros cúbicos por segundo, a um custo de US$ 1,5 bilhão. Mas ele foi fulminado por um parecer do Tribunal de Contas da União, que mostrava ser um fantasma esdrúxulo, pois o Ministério do Planejamento dele não sabia, assim como os Ministérios da Agricultura (que cuida de irrigação), da Reforma Agrária e da Fazenda (que libera recursos). Além disso, o projeto implicava prejuízos de US$ 1 bilhão anuais na geração de energia, inviabilizava mais áreas para irrigação a montante do que beneficiava a jusante e concentrava os benefícios num pequeno número de grandes produtores rurais.

Foi para o limbo até 1998, quando ressurgiu em nova versão de túneis que levariam água para o abastecimento de cidades, ao custo de US$ 700 milhões. Durou pouco a reaparição. Mas já estava de volta no final de 2000, numa versão em que 127 metros por segundo transpostos beneficiariam 8 milhões de pessoas e o abastecimento de água de 268 cidades, além de irrigar 260 mil hectares. O professor Aziz Ab’Saber, da USP, lembrou na época que os beneficiados seriam menos de um terço das vítimas da seca (27 milhões). A Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) observou que pelo menos 30% da água se perderia por evaporação. E a Cáritas mostrou que a solução para comunidades isoladas está na implantação de cisternas de placa (das quais já há 160 mil), não na transposição, que não chegaria a esses lugares.

Levou algum tempo para recuperar-se o combalido. Mas retornou em 2003. Dessa vez, teve a oposição do Comitê de Gestão da bacia, da CNBB, da OAB, das arquidioceses à beira-rio. Custaria R$ 4,2 bilhões para uma transposição de 53 metros cúbicos por segundo. Vários especialistas (professor Aldo Rebouças, da USP, professor Abner Curado, da UFRN, professor João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, entre muitos) mostraram a desnecessidade: o problema no semi-árido é de gestão, não de escassez.

Mesmo levantando mais de 40 questões, o Ibama concedeu em 2005 licença prévia. Sabendo que 70% da água seria para irrigação e 26% para o abastecimento de cidades, e não para proporcionar “uma caneca de água para as vítimas da seca”. Que não estava equacionada a questão dos subsídios necessários para uma água que poderia custar até cinco vezes mais que a então disponível. Que a maior parte da água transposta iria para açudes onde se perde até 75% por evaporação. Que havia enormes discrepâncias a cada citação do número de beneficiados (12 milhões? 7,24 milhões? 9,02 milhões? 7,21 milhões?) e dos hectares irrigados (161 mil? 186 mil?). Mais grave que tudo: o próprio estudo de impacto ambiental dizia que 20% dos solos que se pretendia irrigar “têm limitações para uso agrícola”; e “somados aos solos líticos, notadamente impróprios, respondem por mais de 50% do total” das terras que seriam irrigadas. Não bastasse, “62% dos solos precisam de controle, por causa da forte tendência à erosão”. Ainda assim, concedeu licença prévia ao projeto, pois as objeções do Comitê de Gestão haviam sido ignoradas pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, onde o governo federal, sozinho, tem a maioria dos votos.

Agora, o velho abantesma retorna à avenida, sem responder a nenhuma das muitas questões levantadas principalmente por cientistas.

E retorna com a mesma fantasia.

Washington Novaes é jornalista
Texto originalmente publicado em "Espaço Aberto" no jornal "O Estado de São Paulo"

De volta, as velhas assombrações

Dizia o grande escritor Pedro Nava – tantas vezes citado aqui – que a experiência é como o farol de um automóvel virado para trás: ilumina o trajeto percorrido, mas não aclara o futuro. A cada dia, a realidade se encarrega de mostrar com que freqüência ele está certo. Neste momento mesmo, três megaprojetos brasileiros são a evidência disso: transposição das águas do Rio São Francisco, usina nuclear Angra 3 e grandes hidrelétricas na Amazônia – todos às voltas com complicados processos no Judiciário, além de contundentes questionamentos que emergem de vários pontos. São uma espécie de assombrações que ressurgem no panorama brasileiro de tempos em tempos, como se os questionamentos houvessem sido afastados, mas exibindo a um olhar mais atento as mesmas feridas.

Mais uma vez, anuncia-se que o governo federal, paralisado por 12 ações em tramitação na Justiça, agora vai lançar um edital de licitação "só para os projetos executivos" da transposição, e não para as obras dos dois canais (622 quilômetros ao todo), 35 reservatórios, 5 estações de bombeamento, 5 aquedutos, orçadas em R$ 4,5 bilhões. Parece esquecido da experiência de ver o projeto fulminado ao longo dos anos por tantas demonstrações de sua inadequação. A começar por um parecer demolidor do Tribunal de Contas da União (TCU), ainda no governo Fernando Henrique.

Pois agora outro parecer do mesmo TCU mostra que não serão 12 milhões de pessoas beneficiadas, "às quais se levará uma caneca dágua", como alardeia o Ministério da Integração, e sim alguns milhões menos; que o custo previsto de R$ 4,5 bilhões desconsidera o investimento necessário em redes de captação, tratamento e distribuição da água; que, se a transposição estivesse feita hoje, apenas 22% dos municípios previstos teriam condições de usar a água; que as tarifas de água encarecerão. Pior que tudo, que nos Estados receptores as perdas de água nas redes públicas são imensas: 55,7% em Pernambuco, 49% no Rio Grande do Norte, 66,6% no Ceará, 40% na Paraíba. Confirmando o que tantos especialistas têm dito: o problema na região não é de escassez de água, é de má gestão. Mas quem pagará os R$ 466 milhões já gastos com o projeto nos últimos dois anos (Folha de S.Paulo, 7/11) ou os R$ 90 milhões que se pretende gastar com os projetos executivos (Valor Econômico, 6/11), se as obras não forem licenciadas?

Já o projeto de Angra 3, que teve o processo de licenciamento ambiental suspenso pela Justiça Federal – porque não tem leis federais que autorizem a construção e determinem o local da usina, exigidas pela Constituição -, parece agora estar acompanhado de outras assombrações, os projetos de mais algumas usinas do mesmo tipo, planejadas pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Continuam de pé e sem resposta todos os questionamentos: é uma energia mais cara que as outras; o risco de acidentes é alto; não há destinação para o lixo nuclear; 82% dos brasileiros são contra (pesquisa do Iser para o Ministério do Meio Ambiente). Mas quem ouve vozes como a de Mikhail Gorbachev, ao manifestar-se contra a energia nuclear ("Eu sei do que estou falando, tive que enfrentar o custo da explosão do reator de Chernobyl")?

Também as velhas assombrações das megahidrelétricas dos Rios Xingu e Madeira voltam à pauta, todas questionadas na Justiça. As do Madeira, agora confrontadas também pela Bolívia, já que parte da bacia está em seu território. As do Xingu, com as demonstrações de que sua produção cairá brutalmente durante a seca e só se viabilizará por completo com outras usinas rio acima, para "regularizar" o curso do rio – tudo com graves custos sociais e ambientais. E, no caso do Rio Madeira, com perguntas sem resposta, como a de quanto custarão as linhas de transmissão (fala-se em mais R$ 20 bilhões), pois não haverá consumo para toda a energia nas áreas próximas.

De que adiantam estudos como os da Unicamp/WWF, mostrando que o País pode economizar até 30% de seu consumo de energia, com um programa de eficiência e conservação? Que pode economizar ainda mais, e a custo muito menor, se fizer repotenciação de usinas antigas? Ou a demonstração de que os Estados Unidos, entre 1973 (segundo choque do petróleo) e 1988, viram seu produto bruto crescer quase 40% sem aumentar um só kilowatt no consumo, com programas de conservação, eficiência, substituição de equipamentos obsoletos?

Seguimos aferrados à tese de que sem essas megaobras não haverá crescimento econômico, correremos risco de "apagões" – esquecendo-nos de que investimentos economizados numa área podem deslocar-se para outras carentes (educação, saúde); que o "crescimento" não pode dar-se à custa da depleção de recursos e serviços naturais, já em situação grave.

Parece inútil argumentar que as dificuldades de licenciamento ambiental se devem quase sempre à insuficiência de estudos de impacto ambiental – muitas vezes feitos mais para ocultar problemas do que para evidenciá-los -, e não à inadequação das leis ou à lentidão dos processos. Como também parece inútil lembrar o estudo do Ipea (Estado, 14/11) segundo o qual as taxas de crescimento econômico só aumentarão em 2017, e dependendo da queda da taxa de juros e da carga tributária – e não de novas regras para o licenciamento ambiental, como as que se anunciam.

Teremos de esperar outras greves de fome por bispos brasileiros, para chamar a atenção de novo para as graves questões da transposição? Ou que surja outra índia encostando o facão no pescoço de um dirigente do setor elétrico?

Washington Novaes é jornalista
Texto originalmente publicado em "Espaço Aberto" no jornal "O Estado de São Paulo"