O que significa mais de 26 mil km2 devastados na Amazônia

O governo divulgou anteontem mais um índice anual de desmatamento na Amazônia produzido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe): entre agosto de 2002 e julho de 2003, 24,6 mil km2 de florestas foram suprimidos, mais do que os 23,7 mil km2 que haviam sido estimados no ano passado. Divulgou, ainda, a estimativa oficial de que outros 26,1 mil km2 teriam sido desmatados entre agosto de 2003 e julho de 2004, a ser confirmada até o final deste ano. O índice de 2003 só é inferior ao pico histórico de 29 mil km2 ocorrido em 1995, ano de implantação do Plano Real, mas, caso se confirmem as estimativas, o índice de 2004 ocupará o seu lugar, representando um aumento de cerca de 6% em relação ao índice anterior.

A média do desmatamento durante os anos 90 havia sido de 16,8 mil km2 anuais. Aquele patamar já havia sido considerado mundialmente extravagante e colocado o Brasil como foco principal das preocupações sobre o futuro das florestas tropicais do planeta. Já o destacava como recordista entre outras graves situações, como a do sudeste asiático – Indonésia e Malásia, principalmente – fortemente impactado pela gula japonesa em consumo de madeiras tropicais. O país assumia, então, um papel destacado entre os maiores emissores atuais de gases estufa, sendo que apenas o desmatamento na Amazônia representou a liberação de cerca de 200 milhões de toneladas (líquidas) de carbono por ano na atmosfera terrestre. Em 1994, o desmatamento na Amazônia já respondia por mais de 70% das emissões brasileiras destes gases, segundo o inventário nacional de emissões divulgado pelo governo brasileiro no ano passado. Um perfil de emissões invertido em relação à composição das emissões globais, já que ¾ destas estão associados à queima de combustíveis fósseis – petróleo, carvão e gás natural – e apenas o quarto restante decorre dos desmatamentos e usos inadequados do solo.

No entanto, o início do novo século vem dando lugar à exacerbação da extravagância. Entre agosto de 2000 e julho de 2001 o índice já passava dos 18 mil km2 desmatados, subindo nos anos seguintes para 23,1 km2 e 24,6 km2, seguidos agora da estimativa de 26,1 km2 anunciada para 2004, numa tendência contínua de aumento de cerca de 6% a cada ano. No ano passado, quando os dados anteriores do Inpe haviam sido divulgados (os 23,1 km2 referentes a 2002 e a estimativa, agora revista, de 23,7 km2 para 2003), generalizou-se a impressão de que se havia alcançado um novo patamar histórico, mas os dados anunciados anteontem mostram que o que há é uma curva ascendente, indicando uma situação fora de qualquer controle. Significa dizer que, a cada ano, nos últimos três anos, o Brasil vem acrescentando umas 18 milhões de toneladas de carbono a mais à atmosfera, em relação ao nível já escandaloso do ano anterior. Com isto, o país poderá alcançar rapidamente a condição de terceiro maior emissor mundial atual de gases estufa, superando a Rússia, a Alemanha e a Índia, para ficar atrás somente dos EUA e da China.

Expansão Geográfica

Outro aspecto importante dos dados divulgados refere-se ao aumento da participação do Mato Grosso na composição do índice geral da Amazônia. Este estado, que já lidera há anos o avanço do desmatamento, passa a responder por mais de 48% do desmatamento havido, aumentando a sua extensão desmatada em 20% em relação ao ano anterior, quando respondia por 43% da composição do índice geral. O expressivo crescimento do PIB agropecuário do estado nos últimos anos é, sem dúvida, um indicativo importante para explicar o seu lugar de líder do desmatamento. Mas, enquanto o crescimento deste PIB vem ocorrendo há uma década, o estado, que já havia conseguido reduzir o ritmo de aumento do desmatamento através da implantação de um sistema de licenciamento ambiental de grandes propriedades rurais, voltou a apresentar índices alarmantes a partir de 2002, o que demonstra que, além da contínua expansão agrícola, fragilizou os seus instrumentos de controle.

Vários estados amazônicos conseguiram reduzir significativamente os seus índices: Amazonas, Tocantins, Maranhão e Acre. Enquanto o índice do Pará permaneceu estável, Rondônia e Mato Grosso empurraram o índice geral da Amazônia pra cima. Significa dizer que se a responsabilidade política pela extravagância é do Brasil e da Amazônia como um todo, são estes últimos os principais responsáveis pela sua atual exacerbação. Os mais de 12 mil km2 desmatados em 2004 só no Mato Grosso, indicam claramente que a expansão do agronegócio ocupa um papel crescente na conversão direta de áreas de floresta em plantações, além da influência indireta que exerce, dada a sua maior rentabilidade, empurrando outras atividades potencialmente predatórias, como a pecuária, para dentro da floresta amazônica.

Significa dizer que o combate ao desmatamento não pode ser concebido linearmente, pois há estados e atividades econômicas que têm maior responsabilidade que outros no incremento do desmatamento. Portanto, os esforços do governo federal para tentar reduzir o desmatamento precisam incorporar a fixação de metas de redução por estado, de modo a estabelecer incentivos para aqueles que cumpram essas metas, e penalidades para os que as descumpram, em relação ao volume de investimentos e de repasses de recursos federais para os estados. Da mesma forma, instrumentos de política econômica precisam incorporar fortemente a variável do desmatamento, cerceando a expansão da fronteira agrícola em regiões de florestas, priorizando a ocupação de áreas já desmatadas e que estão improdutivas e, sobretudo, valorizando economicamente os recursos florestais e, portanto, a floresta em pé. E, ainda, deveriam ser estabelecidos critérios mais rigorosos para a abertura de novas estradas na região amazônica, ou mesmo a mudança da matriz de transportes para priorizar as ferrovias, já que a maior extensão desmatada se situa nos cem quilômetros às margens das rodovias.

Fragmentação Florestal

Outro aspecto extremamente preocupante quanto à expansão geográfica diz respeito ao chamado “arco do desmatamento”, historicamente formado pelas frentes de ocupação que tornaram o sudeste do Pará, o norte do Mato Grosso e a região central de Rondônia num contínuo de áreas críticas que perfaz este “arco”. Os dados agora divulgados reforçam a constatação que já vinha sendo feita de que novas frentes de desmatamento tendem a se desgarrar do “arco” histórico. É o caso do eixo da BR-163 – Rodovia Cuiabá – Santarém, cuja pavimentação, anunciada mas ainda não iniciada pelo atual governo, desencadeou um processo caótico de grilagem de terras e de especulação imobiliária antes mesmo da execução da obra, transformando o antigo arco numa espécie demoníaca de tridente.

Este quadro está se agravando ainda mais diante de novas frentes de grilagem na chamada “Terra do Meio” (centro-sul do Pará) e na região de Humaitá (sul do Amazonas), que tendem a ligar transversalmente os dentes do tridente. Além disso, o Ministério dos Transportes vem anunciando, irresponsavelmente, o início da pavimentação da BR-319, Rodovia Porto Velho – Manaus, para o que foram alocados cerca de 100 milhões de reais no orçamento da União para este ano. Significa que, antes mesmo de iniciar a pavimentação anteriormente anunciada da BR-163, onde os danos ambientais já progridem geometricamente, fomenta-se a expansão de um novo eixo de ocupação desordenada e de expansão do desmatamento, agora cortando a região central da floresta amazônica. Rumo ao quarto dente.

Essa multiplicação das frentes de desmatamento, por sua vez, aponta para a fragmentação definitiva da floresta amazônica – a maior massa contígua de florestas tropicais existente no mundo – em blocos estanques de remanescentes florestais. É previsível que este processo crie obstáculos crescentes às trocas genéticas entre as diversas regiõ

es amazônicas, com impacto sobre a sua biodiversidade. E não se sabe se impacto também haverá sobre o complexo regime de chuvas da região, que vão se alimentando e realimentando da costa atlântica para o interior do continente. Pode ocorrer uma redução da umidade em áreas diversas da Amazônia, para o que já contribui o aumento da intensidade e da freqüência da ocorrência do chamado “El Nino”, fenômeno climático, associado ao efeito estufa, que provoca alterações no clima de várias regiões da Terra em decorrência do aquecimento das águas do Oceano Pacífico.

Lula, Campeão do Desmatamento

Se o que os últimos três índices anuais divulgados pelo Inpe indicam é uma curva ascendente de desmatamento da ordem de 6% ao ano, a partir do patamar escandaloso de 23 mil km2/ano, o período de mandato do Presidente Lula poderá vir a ser o recordista histórico neste ramo.

Os índices anuais do Inpe são medidos de agosto a julho porque se fundamentam na interpretação de fotos de satélite obtidas na estação seca, em que há menor ocorrência de nuvens. No entanto, sabe-se o desmatamento costuma ser mais intenso no primeiro semestre – até agosto – quando se prepara a abertura de áreas que serão ocupadas naquele ano, sendo que a massa florestal derrubada será parcialmente queimada no auge da seca, permitindo o plantio no início das chuvas.

Sendo assim, poder-se-ia atribuir os 24,6 mil km2 apurados entre agosto de 2002 e julho de 2003 a desmatamentos ocorridos, na sua maior parte, no período de mandato do Presidente Lula. Mesmo que se debite ao primeiro semestre de 2003 apenas a metade dessa extensão, e se se confirmar a estimativa dos 26,1 mil km2 para os doze meses seguintes, projeta-se um desmatamento médio anual superior a 25 mil km2 para o primeiro ano e meio de mandato presidencial cobertos por levantamentos do Inpe.

O pico histórico do desmatamento ocorreu entre agosto de 1994 e julho de 1995. Pode-se atribuí-lo, pela mesma lógica, ao mandato do Presidente Fernando Henrique e à euforia criada pelo Plano Real (que já vinha sendo implementado no decorrer de 1994). Assim, a média anual de desmatamento na Amazônia durante o seu primeiro mandato chegou a 19,4 km2/ano, já bem acima da média dos anos 1990 e um pouco acima dos primeiros dados colhidos pelo Inpe ainda nos anos 1980. A média anual do seu segundo mandato é de 19,2 mil km2/ano, mas terminou descrevendo uma tendência de crescimento expressiva entre 2001 e 2002 (de 18,1 mil para 23,2 mil km2).

No entanto, os números agora divulgados mostram que essa herança maldita está superada pelo incremento de 6% ao ano, nos últimos dois anos. O governo Lula terá que fazer um grande esforço político no ano e meio de mandato restante para evitar o vexame de ser recordista histórico em desmatamento. Para tanto, terá que haver uma redução expressiva no ritmo do desmatamento, de modo a transformar a média projetada de 25 mil km2/ano para algo inferior aos 20 mil km2/ano. Ademais, a tendência de fragmentação da floresta contínua, que também já se esboçava antes, tenderá a se consolidar durante o atual mandato presidencial, especialmente em função da maneira rocambolesca como se anunciam obras de pavimentação de extensas rodovias em regiões sensíveis de floresta.

Ao anunciar os novos dados do Inpe, a Ministra Marina Silva ressaltou que no período coberto pelos novos números (até julho de 2004), ainda não vinha sendo plenamente implementado o Plano de Combate ao Desmatamento na Amazônia do governo federal. Ela mencionou um conjunto de medidas – combate à grilagem de terras, aumento das operações e autuações da fiscalização do IBAMA, implantação de bases em áreas com notória ausência do estado, criação de áreas protegidas, funcionamento pleno do novo sistema para monitoramento em tempo real do desmatamento e outras – que só teriam se intensificado a partir do segundo semestre do ano passado. Assim, ela espera uma redução expressiva na estimativa para 2005, que deverá ser anunciada até o início do próximo ano, expectativa esta que parece corroborada pela provável redução da expansão da fronteira agrícola em função da queda nos preços internacionais da soja e de outras comodities agrícolas.

Que Deus lhe ouça! Porém, os indícios que vêm do chão ainda seguem sendo preocupantes. De agosto passado a esta data não parece que o ritmo do desmatamento tenha se arrefecido. Os ministérios do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário intensificaram – de fato – a sua atuação em regiões críticas da Amazônia, mas outros, poderosos indutores de desmatamento, como Agricultura e Transportes, seguem se comportando como se nada tivessem a ver com o problema. Há indicações de que novas técnicas, já dominadas pelo setor mais dinâmico do agronegócio, estão permitindo desmates extensos em meses de chuva, o que teria ocorrido com mais intensidade em fevereiro deste ano, no Mato Grosso. Também se fala estar se esboçando um novo arco do desmatamento acima da calha do Rio Amazonas, entre o sul do Amapá, norte do Pará e sul de Roraima. Não há dados a respeito, mas são informações preocupantes. A expectativa da Ministra dependerá, fundamentalmente, do que vai acontecer daqui até o final de julho.

O Brasil e o Mundo

Mais preocupante que o placar do governo Lula em relação aos seus antecessores, é a situação do Brasil frente à comunidade internacional. Da assinatura do Protocolo de Quioto (que estabeleceu uma meta de redução de emissões para os países desenvolvidos correspondente a 5,2% em relação aos níveis de 1990), em 1997, até 2004, o Brasil já acrescentou umas 300 milhões de toneladas de carbono à atmosfera a mais em relação aos volumes que emitiria caso mantivesse a já elevada média de desmatamento dos anos 90. A prosseguir nesta escalada, o desmatamento na Amazônia poderá, por si só, comprometer boa parte dos esforços internacionais para redução de emissões mesmo sendo cumpridas as metas de Quioto. As emissões brasileiras evoluem de 3 para 4% do total das emissões mundiais atuais. Não se pode comparar a responsabilidade do Brasil com a dos países desenvolvidos, que vêm poluindo a atmosfera há mais de 150 anos, na produção do efeito estufa. Mas não se pode mais negar a sua absoluta responsabilidade em relação aos esforços atuais e futuros para se tentar mitigar as conseqüências do efeito estufa.

Significa dizer que, para além dos efeitos nocivos que provoca para o país e para os brasileiros, desperdiçando recursos florestais, reduzindo sua biodiversidade e os recursos hídricos, afetando as condições climáticas locais, aumentando as doenças respiratórias e gerando passivos crescentes para as futuras gerações, o desmatamento na Amazônia tem impacto crescente sobre a situação do clima mundial.

A diplomacia brasileira teve um papel importante nos avanços até agora conseguidos internacionalmente no combate ao efeito estufa. A Convenção sobre a Mudança Climática da ONU foi assinada no Rio de Janeiro, em 1992. O Brasil esteve ativo na formulação do Protocolo de Quioto e uma sua proposta levou à instituição do MDL – Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. Estivemos entre os primeiros países a ratificar Quioto e a realizar o seu inventário nacional de emissões. Porém, a opção política de excluir o tratamento das emissões oriundas de desmatamento do escopo dos acordos internacionais (e do MDL, em particular), deixou o país sem instrumentos para trabalhar, neste âmbito, o seu principal fator de emissões.

O crescimento no ritmo do desmatamento significa, portanto, que estamos contribuindo como nunca para a deterioração do clima mundial, e que estaremos expostos, inevitavelmente, a crescentes e justificadas pressões internacionais. Além de incrementar as providências internas de combate ao desmatamento, o governo Lula deveria rever a postura de retranca da diplomacia no tratamento do tema no plano internacional, buscando apoio concr

eto da comunidade internacional para compensá-las. Afinal, fatores mundiais de mercado e o próprio efeito estufa contribuem para o desmatamento na Amazônia, e a sua eventual redução seria muito relevante para mitigar a crise climática mundial. Muito pior será sofrer pressões sem dispor de instrumentos para compartilhar e compensar os esforços em busca das soluções.