Líderes guarani-kaiowá enviarão carta a Lula para pedir homologação de terra indígena

Uma carta endereçada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, reivindicando a homologação da terra indígena Nhanderu Marangatu, foi um dos resultados da Aty Guasu (Grande Reunião), encontro realizado este final de semana entre lideranças indígenas de mais de 20 aldeias dos guaranis-kaiowás do sul de Mato Grosso do Sul.

A Aty Guasu é a mais importante articulação política entre os líderes dessas etnias. O evento começou a ser realizado em 1984 como reação ao assassinato do líder guarani Marçal de Souza, em virtude de disputa com fazendeiros pela área Piraquá, hoje homologada. "Começou como uma reunião dos líderes religiosos, que passaram a chamar os líderes mais ligados à política", explica o antropólogo Levi Marques Pereira, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

O evento contou com a presença de representantes do Ministério Público Federal no estado, de uma representante do gabinete da senadora Fátima Cleide (PT-RO) e do deputado estadual Pedro Kemp (PT-MS). Kemp integra a Comissão Parlamentar de Inquérito criada pela Assembléia Legislativa do estado para investigar os casos de mortes de crianças indígenas relacionados à desnutrição.

Atualmente, um grupo de mais de 500 índios Guarani-Kaiowá vive em pouco menos de 100 dos 9,3 mil hectares da área indígena Nhanderu Marangatu, no município de Antonio João (450 km a sudoeste de Campo Grande). A terra já foi identificada por antropólogos da Fundação Nacional do Índio (Funai) e sua demarcação já foi publicada em Diário Oficial, mas a posse definitiva por parte dos índios ainda depende da homologação, que precisa ser assinada do presidente da República.

Atualmente, além disso, uma ação na Justiça Federal concede a reintegração de posse da área a fazendeiros, e, caso não ocorra a homologação da terra ou a derrubada dessa ação na Justiça, os índios deverão ser retirados de Marangatu depois do dia 31 deste mês.

Segundo o líder kaiowá Sílvio Paulo, presidente do Conselho de Direitos Indígenas, o objetivo do documento que será encaminhado ao presidente Lula é chamar a atenção do governo para a situação na região. "Nós fizemos uma reunião de três dias lá. Tem que homologar essa terra porque ela é terra do índio. O índio está encurralado, sofrendo e chorando. Então, está na mão do governo. É só pegar a caneta e assinar. É isso que a gente está esperando."

Silvio Paulo informou que a carta também será entregue a parlamentares e ministros, para que eles interfiram junto ao governo em favor dos índios de Marangatu.

De acordo com o analista em Antropologia do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, Marcos Homero Lima, ainda não há previsão para o envio da carta ao presidente.

Colaborou Spensy Pimentel

Hospital que vai atender crianças guarani quer dar tratamento humanizado aos pacientes e familiares

A criança está doente e é internada, mas, no município onde mora, não há tratamento adequado. Os pais, assustados com a situação, acompanham-na, mas não têm dinheiro para comer nos restaurantes próximos do hospital e nem têm onde dormir, porque estão longe de casa. Para complicar, não falam direito o idioma dos médicos e enfermeiros que estão tratando seu filho, nem se vestem ou se comportam como eles – por isso, sentem que são tratados com desdém e preconceito.

Essa era a situação enfrentada até agora por pais de crianças guarani-kaiowá que são trazidas dos mais de 30 municípios de toda a região sul do Mato Grosso do Sul para tratamento médico em Dourados. A cidade, com cerca de 150 mil habitantes, é a segunda maior do estado, e um pólo regional reconhecido pelo Sistema Único de Saúde. A situação de emergência criada pelas recentes mortes de crianças indígenas internadas por problemas relacionados à desnutrição na cidade acelerou várias medidas destinadas a mudar esse quadro.

Desde 2003, vem sendo implantado o primeiro hospital totalmente público de Dourados, destinado a atender apenas pacientes do SUS, o Hospital Universitário de Dourados. Nesta segunda-feira, a Fundação Nacional de Saúde e a Prefeitura Municipal inauguraram a ala pediátrica da unidade, que inclui seis leitos de uma Unidade de Tratamento Intensivo para crianças – única em toda a região.

Segundo a diretora superintendente do hospital, Diraci Marques Ranzi, a obra custou R$ 26 milhões e receberá repasses mensais da prefeitura, estado e União no valor de R$ 1,2 milhão. Até abril, serão 104 leitos no HU, que, como conta Diraci, já está sendo implantado, desde o início, nos moldes da nova Política de Humanização do SUS, elaborada no Ministério da Saúde. "Estamos enfrentando as resistências da iniciativa privada na região, além dos profissionais que não acreditam nas inovações, mas os desafios são estimulantes", conta Diraci, que, antes de trabalhar no HU, era administradora de hospitais privados na região. "Nada mais justo que este hospital seja público e não repassado a uma entidade filantrópica, como queriam alguns. Afinal, os recursos para construí-lo foram todos público."

Entre as novidades que pretendem beneficiar não só os indígenas, mas toda a população da região, ela conta que haverá acomodações e refeições para os acompanhantes das crianças internadas. Além disso, a Funasa vai fornecer treinamento específico para os funcionários atenderem a população indígena, e um agente comunitário de saúde ficará permanentemente ali para atuar como intérprete – é comum, principalmente nas aldeias mais remotas, que as pessoas em geral, e principalmente as crianças, só falem o guarani.

Antropólogos ajudam governo a planejar soluções para os Guarani-Kaiowá de MS

Os antropólogos Rubem Thomaz de Almeida e Fábio Mura estão entre os maiores conhecedores no Brasil da cultura, da realidade e dos problemas enfrentados pelas comunidades Guarani kaiowá de Mato Grosso do Sul. Esta semana, a convite da Fundação Nacional do Índio (Funai), eles estiveram na capital federal para atuar como consultores dos diversos órgãos de governo que mantêm projetos junto a esses índios.

A repercussão na imprensa das recentes mortes de crianças kaiowá por desnutrição em Dourados (MS) levou o governo federal a intensificar suas ações na região. Há dois anos, Almeida e Mura já estão envolvidos num processo sistemático de levantamento das áreas originais de ocupação guarani e kaiowá no sul de MS, promovido pela Funai. Agora, auxiliam com sua experiência outros órgãos do governo, mas lembram que o problema fundamental a ser atacado é mesmo a falta de terras para os índios.

Almeida trabalha com os Guarani-Kaiowá desde os anos 70, quando, inspirado em projetos paraguaios de desenvolvimento local para comunidades indígenas, surgiu o PKN, Projeto Kaiowá Nhandeva, uma organização não-governamental que dava apoio a projetos de agricultura desses índios. Foi a partir das reuniões do PKN que as lideranças guarani-kaiowá e guarani-nhandeva passaram a se articular para a reação à perda de suas terras, que vinha se intensificando desde os anos 60, com a instalação da agricultura extensiva no sul de Mato Grosso do Sul.

Mura é italiano e também trabalha com os Guarani-Kaiowá desde 1991, em parceria com Almeida em diversos projetos. Os dois antropólogos são formados pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, ambos também são professores na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

Leia a seguir a íntegra da entrevista, concedida nos estúdios da Rádio Nacional da Amazônia, em Brasília.

Agência Brasil – A mídia brasileira tem ecoado várias hipóteses sobre a origem do problema da desnutrição indígena em MS. Algumas chegam a aventar uma suposta "tradição cultural" dos guarani de descuidar-se das crianças, comer antes dos filhos, já que as cestas básicas do Fome Zero são levadas para lá desde 2003… O que está por trás dessa desnutrição, dessas mortes?

Rubem Thomaz de Almeida – Isso é bastante importante: dizer que os pais se alimentam antes dos filhos é totalmente desprovido de sentido. Para os Guarani, qualquer povo indígena, qualquer povo no mundo, a prioridade que se dá às crianças, aos filhotes, é muito importante.

O que está por trás dessa história da desnutrição é uma coisa histórica, é um fenômeno que está ocorrendo nos últimos 100 anos ou até mais, de espoliação da terra dos índios – enquanto os índios, por sua vez, tentam, num esforço bastante organizado, recuperar essas terras.

O que me parece mais importante de se levar em conta é a ausência de terra, porque é na terra que a gente pode plantar, e os guaranis são agricultores tradicionais, gostam muito da terra. Na medida em que eles não têm terra onde plantar, que a terra é retirada da mão deles por parte dos brancos, a colonização toma conta do estado, fica muito difícil para eles produzir seus alimentos, e as cestas básicas não estão dando conta do problema.

Agência Brasil – Como aconteceu essa perda de terras, essa expulsão dos Guarani da sua terra tradicional?

Fábio Mura – Podemos fazer uma retrospectiva. Atualmente, temos 35 mil guaranis, entre Kaiowá e Nhandeva, no Cone Sul do estado do Mato Grosso do Sul. Esses 35 mil têm uma posse, neste momento, de aproximadamente, somados todos os pedacinhos, 40 mil hectares.

Se consideramos que o Cone Sul de MS era todo território tradicional deles, com uma superfície de aproximadamente 3 milhões e meio de hectares, podemos perceber claramente a desproporção. Houve um processo lento de expulsão dessa população, e progressivamente esses índios foram sendo conduzidos para dentro de reservas.

O governo, por meio do órgão indigenista da época, que era o Serviço de Proteção do Índio (SPI), instituiu oito reservas na região entre 1915 e 1928. Só que, até a década de 70, existia muita floresta ainda. Os índios continuavam sem querer se assentar, mantendo o modo tradicional de ocupar o espaço.

Depois dos anos 70 é que nós temos um inchaço dessas reservas, justamente porque se desmata tudo na região, se destrói a situação local, criando outra extremamente negativa. As famílias que antes viviam pelas florestas se vêem obrigadas a ir para dentro dessas reservas demarcadas pelo SPI.

Isso criou situações como as que vemos agora: famílias inimigas colocadas sem critérios dentro das reservas, resultanto em situações hierárquicas, exclusão social etc. Um dos seus efeitos é o que estamos vendo ultimamente, a desnutrição das crianças.

Agência Brasil – Apesar de todas essas mortes, a população indígena tem crescido no país e mesmo lá na região, não?

Rubem Thomaz de Almeida – Sem dúvida, não só crescido, como tem uma organização social, política, econômica, absolutamente especifica. Quanto mais próximos do branco, mais eles querem mostrar que são diferenciados, insistem nisso. De fato, imaginava-se nesses últimos 100 anos, que os índios iam desaparecer, então toda política, todo tratamento dado aos índios foi como se eles fossem desaparecer. Isso, absolutamente, não é verdadeiro, muito pelo contrário.

Esses índios têm aí pelo menos 3 mil anos, e eu tenho absoluta segurança de que vão continuar mais 3 mil anos como Guarani Kaiowá, Guarani Nhandeva, e vão manter a sua identidade étnica. Há um esforço notável deles de manter a identidade étnica, isto é, manter-se como índios, apesar dos pesares, apesar do que acontece com eles.

Agência Brasil – Como está a organização dos Guarani e Kaiowá? Tem avançado, como em outras partes do Brasil?

Fábio Mura – Não só avançou como está cada vez mais, digamos, volumosa. Tem uma especificidade sobre os Guarani, eles têm uma organização que não é centralizada, não há alguém na frente das estratégias. Cada comunidade local se organiza politicamente, a luta desse povo não é simplesmente uma luta política, é uma luta político-religiosa para recuperar a terra.

Não se trata de recuperar simplesmente um espaço onde se podem desenvolver atividades econômicas. Para eles, recuperar a terra significa poder manter o equilíbrio no mundo. Não só o mundo para eles, o mundo para nós também.

Há convergências entre as várias comunidades, que criam todo um fermento. Está muito enganado quem pensa que tem alguém manipulando, tem alguém que está induzindo, tem algum índio espertalhão que consegue a terra para depois poder negociar com o fazendeiro, isso é absolutamente desprovido de sentido. Todas essas comunidades que estão em luta são guiadas por xamãs, pessoas de grande respeito, isso tem que ser levado em conta.

Agência Brasil – De onde surge essa mobilização?

Rubem Thomaz de Almeida – Trata-se de um movimento político, uma tentativa de que o Estado os reconheça como população indígena, trata-se de algo absolutamente legítimo. A gente ouve lá na região que eles estão seguindo o MST (Movimento dos Sem Terra), como se o movimento deles fosse instigado.

Absolutamente não: é algo realmente legítimo e me parece que tem dado conta do problema. Eles têm conseguido grandes avanços e, nos últimos 30 anos pelo menos, mais de 20 áreas foram conquistadas, apesar de não estarem regularizadas. Isso mostra como eles são organizados, como eles pensam, como eles conseguem, portanto, avançar na sua tentativa de recuperação de terras que foram perdidas para as fazendas.

A morte anunciada da menina Caiuá

Publicado originalmente em 13/02/2005 este artigo de Marcelo Beraba, ombudsman do jornal Folha de São Paulo, descreve a situação de calamidade na qual se encontram as comunidades indígenas guaranis em Mato Grosso do Sul e a falta de atenção da imprensa para o assunto. Acompanhe o texto original:

A Folha perdeu nesta semana uma ótima oportunidade para destacar um drama que deveria provocar em todos inconformismo e indignação. Refiro-me à morte, em Dourados (Mato Grosso do Sul), de uma menina índia de três anos e 11 meses por desnutrição.

É inacreditável que no país dos obesos e do Fome Zero, num Estado enriquecido com a agricultura e a pecuária, uma criança morra de fome. E é inacreditável que este fato não provoque uma comoção nacional. Apenas a sucessão cotidiana e interminável de fatos escandalosos pode explicar a aparente letargia que volta e meia nos domina.

A Folha previu a morte da menina, mas não soube expô-la como devia.

O correspondente do jornal em Campo Grande, Hudson Corrêa, fez a primeira reportagem, publicada no dia 25 de janeiro. Seu texto informava que "27% das crianças indígenas de Mato Grosso do Sul de até cinco anos estão desnutridas e que em 2004 a mortalidade infantil chegou a 60 por mil nascidos vivos, quase o triplo do índice verificado entre a população brasileira". A Folha publicou a reportagem sem destaque.

No sábado, 5 de fevereiro, o jornal editou novo relato do mesmo jornalista, "Verba do Fome Zero para índio fica parada". O texto mostrava que o governo de Mato Grosso do Sul tinha deixado de aplicar cerca de R$ 1 milhão recebido do governo federal para o programa Fome Zero na área indígena. Estávamos, portanto, diante de uma grande tragédia: crianças desnutridas e sem amparo.

No dia 8, terça, morreu a menina Caiuá de três anos e 11 meses. O jornal publicou apenas uma nota perdida no meio do noticiário político. Era a segunda criança indígena anônima que morria neste ano, de acordo com o relato do correspondente. A outra, um bebê de oito meses, morrera em janeiro. Quinze crianças morreram em 2004.

O jornal tinha a obrigação de levar seus leitores para o meio da tragédia, de transformar os números em rostos e nomes, de abandonar a notícia fria da morte por um relato local, que mostrasse as condições de vida daquelas famílias que estão perdendo crianças por falta de alimento em pleno século 21.

O jornal tem agora o dever de iniciar uma investigação séria: para onde vão de fato os recursos empregados em tantos programas sociais dos governos federal, estadual e municipais? Se a Funai e os governos conhecem o problema há tanto tempo, se o problema está limitado a um grupo social e a uma região demarcada, por que não conseguiram impedir as mortes?

Este, infelizmente, é um grande caso para os jornais. O correspondente da Folha em Campo Grande teve sensibilidade para perceber a relevância do drama. A Redação em São Paulo não soube, no entanto, dar ao caso a dimensão que exigia.

Questionei o jornal e recebi o seguinte depoimento do editor de Brasil, Fernando de Barros e Silva: "Difícil dizer que o assunto foi desdenhado. Noticiamos na edição de quinta a morte da menina com razoável destaque. E na sexta voltamos a mostrar que o governo agiu tardiamente em relação ao problema, ampliando o Bolsa-Família já com o estrago consumado. Mostramos ainda que entidades ligadas aos índios vêem a medida como um "paliativo cínico" e criticam a ausência de medidas estruturais para ao menos equacionar o problema a médio prazo.

Isso posto, acho não só legítimo como razoável que o ombudsman veja no episódio uma oportunidade jornalística mal aproveitada. Não vejo assim, mas a discussão é relevante. São tantos e tão cotidianos os escândalos sociais no Brasil que acabamos todos, de alguma forma ou em algum momento, reagindo de forma apática ou anestesiada a muitas coisas intoleráveis".

Artigo reproduzido sob autorização do autor

Governo estuda ações de segurança alimentar para populações indígenas

Um grupo de trabalho interministerial, com representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai), Embrapa, Fundação Nacional de Saúde (Funasa), Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), Ministério da Educação (Mec) e Ministério da Justiça (MJ) irão formular ações estruturantes para segurança alimentar e desenvolvimento sustentável dos povos indígenas. Um dos objetivos é evitar a superposição de ações dos diferentes ministérios e tornar mais eficiente o atendimento às populações indígenas.

Em reunião realizada hoje (11/01), no MDS, foi constatada a necessidade de formulação de ações de curto, médio e longo prazo, com prioridade nas comunidades indígenas em Dourado, Mato Grosso do Sul (MS), os Guarani-Kaiwá, que enfrentam problemas de desnutrição infantil. Serão planejadas, também, ações de saneamento básico, formação profissional e suporte a atividades agrícolas.

A primeira medida emergencial é o cadastro de 484 famílias, da etnia Guarani-Kaiowá, para inclusão no programa Bolsa Família a partir de março. Desde o ano passado 31 famílias já estavam inseridas no programa desde o ano passado As demais famílias estão sendo cadastradas pela Prefeitura Municipal, com acompanhamento direto do MDS. No total, o benefício deverá chegar a 2.300 famílias indígenas do município.