População era paga para ser cobaia, diz senador

O senador Cristóvam Buarque (PDT-DF), que preside a Comissão de Direitos Humanos do Senado, disse ter ficado "horrorizado" com os relatos dos moradores das comunidades ribeirinhas de São Raimundo do Pirativa e São João do Matapim, no Amapá. Ele visitou a região para verificar as denúncias de Haroldo Franco, promotor do Ministério Público Estadual, de que os ribeirinhos estariam sendo utilizados como cobaias em pesquisas sobre malária.

Em entrevista à Agência Brasil, o senador disse que cerca de 40 pessoas, todos homens, disseram ter aceito participar dos estudos, recebendo, em troca, de R$ 12 a R$ 20 por dia. De acordo com Cristóvam, os ribeirinhos contaram que eram submetidos, diariamente, a picada de 100 mosquitos. O senador disse que alguns ribeirinhos ainda querem participar da pesquisa porque sentem falta do dinheiro que recebiam. "Confesso que não sei o que foi mais triste: ouvir as pessoas que disseram que foram submetidas a pegar a doença, ou aquele que diz que estava sentindo falta do dinheiro e estava descontente comigo porque tive um papel na suspensão da pesquisa", completou.

Cristóvam explicou que as pessoas tinham que capturar 25 mosquitos por vez e aprisioná-los em um copo. "Depois, eles colocavam o copo na perna para que os mosquitos ficassem chupando o sangue durante uma, duas, três horas, o tempo que fosse necessário para que os mosquitos ficassem tão saciados de sangue que caíssem", contou. "Não era receber uma picada, mas receber tantas picadas quanto fossem necessárias para que o mosquito se sentisse plenamente alimentado e aí, gordo de sangue, caísse", destacou Cristovam, acrescentando que os participantes passavam por esse processo até totalizar 100 mosquitos. Depois de saciados, os insetos eram entregues aos pesquisadores.

O senador contou que um dos ribeirinhos disse se sentir "torturado durante horas e horas enquanto os mosquitos ficavam picando. "Um deles não consegue mais trabalhar. Ele sofre de uma doença permanente fruto da malária que contraiu ao ser picado por mosquito durante as pesquisas", disse.

Cristovam afirmou ainda que, em uma das comunidades, cerca de 50% das pessoas contraíram malária. "A gente não pode garantir que contraíram desses mosquitos, mas eles disseram que há meses não tinham casos de malária na comunidade", destacou.

Pesquisa com cobaias humanas podem não estar restritas só ao Amapá

O senador Cristovam Buarque (PDT-DF), que preside a Comissão de Direitos Humanos do Senado, acredita que as pesquisas sobre malária que supostamente envolveram cobaias humanas não tenham ocorrido apenas nas comunidades ribeirinhas São Raimundo do Pirativa e São João do Matapim, no Amapá. "Nada justificaria que só acontecesse no Amapá".

O projeto de pesquisa foi elaborado pela Universidade da Flórida, com financiamento de US$ 1 milhão do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos. No Brasil, estava sendo coordenado pela Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Universidade de São Paulo (USP) e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

Cristovam destacou que o documento foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) porque não estava previsto, no projeto, o uso de cobaias humanas. "Ele previa apenas a captura, que é quando o mosquito encosta na perna, mas é capturado antes de picar. É isso que estava no documento", disse. O lembrou destacou que, nesse caso, o ribeirinho seria usado como "isca". "Quando você usa a pessoa para atrair o mosquito e prendê-lo, a pessoa é uma isca. Mas quando você usa a pessoa para ser picada, ela vira cobaia".

O senador afirmou que não quer criar um "pânico" com relação a pesquisas de modo geral, já que elas são importantes para o desenvolvimento da ciência. "Se a gente descobrir uma vacina contra a malária é um serviço imenso. Não queremos criar uma fobia contra as pesquisas", disse, acrescentando que elas devem ser feitas de acordo com a lei.

Cristovam informou que vai convocar uma audiência pública no Congresso para discutir o assunto. "Se não tomarmos providências imediatas, corremos o risco de que outros grupos brasileiros continuem submetendo sua saúde em troca de R$ 10 a R$ 20", destacou. A audiência deve ocorrer na segunda quinzena de fevereiro ou na primeira semana de março.

Sobre a punição dos responsáveis pelas pesquisas envolvendo os ribeirinhos no Amapá, o senador afirmou que não existe, na legislação brasileira, um crime específico para enquadrá-los. "Não tem a ver diretamente com o fato dramático, ético, de usar pessoas como cobaias. Mas simplesmente como se fosse um ferimento leve a uma pessoa, induzir a pessoas ao erro, serão penalidades muito pequenas", informou.

Omissão de frase em projeto permitiu o uso de cobaias humanas, diz pesquisadora da Fiocruz

Um erro na versão em português de um projeto de pesquisa sobre a malária teria permitido que populações ribeirinhas do Amapá fossem usadas, em 2003, como cobaias para serem picadas por mosquitos transmissores da doença.

O estudo foi financiado pelo Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos ao custo de US$ 1 milhão e estava sendo coordenado pela Universidade da Flórida, em parceria com a Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Universidade de São Paulo (USP) e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

Segundo a pesquisadora da Fiocruz, Mércia Arruda, foi subtraída, na versão em português, uma frase que fazia menção exatamente ao uso de cobaias humanas em determinada fase da pesquisa, prática proibida no Brasil. "A pessoa que traduziu o documento de alguma forma omitiu a frase que falava sobre esse experimento e isso foi uma forma de o projeto ser aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep)", informou.

O documento também foi autorizado pelos conselhos de ética da Fiocruz e da USP. "Os órgãos dos comitês de ética só lêem a versão em português e a versão em inglês só foi submetida à universidade norte-americana", acrescentou Mércia.

Mércia diz que a Fiocruz defende a investigação sobre possíveis manipulações. "Vamos estar sempre do lado das pessoas e dos órgãos que vão investigar essas denúncias para colocar o documento na maior transparência possível".

De acordo com a pesquisadora, o projeto teve início em maio de 2003 e terminaria em abril de 2006, se não tivesse sido interrompido por determinação da Conep. Ela explica que, quando começou, a experiência com cobaia humana foi realizada porque, naquele momento, participou dos trabalhos de campo o americano Robert Zimermman, que conhecia apenas a versão inglesa do projeto.

Junto com ele estava o pesquisador ligado ao governo do Amapá, Alan Kardec, que entrou substituindo o pesquisador holandês, Jacó Voorhano, responsável pela tradução. Mércia informa que foi Kardec quem alertou para o uso de cobaias humanas. "Alertada pelo pesquisador Kardec por telefone, a USP determinou que essa parte da experiência fosse suspensa imediatamente", afirmou.