Quase um ano depois, não-índios continuam na TI Raposa-Serra do Sol (RR), homologada em abril de 2005

Dos mais de 220 posseiros existentes na área, apenas 52 foram indenizados por benfeitorias construídas de boa-fé. O governo diz que já tem os R$ 754 mil necessários para pagar outros 25 colonos cujos processos estão finalizados. Resta ainda terminar os processos de aproximadamente 145 posses, o que a Funai diz que vai fazer até o dia 15 do próximo mês. A retirada de todos os ocupantes promete arrastar-se ainda por vários meses e até anos.

O governo federal não vai cumprir a promessa feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e oficializada em decreto assinado no ano passado de retirar, até o dia 15 de abril próximo, todos os posseiros da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima. A maior parte dos ocupantes sequer foi indenizada. A regularização fundiária do território de mais de 16 mil Ingarikó, Wapixana, Taurepang, Macuxi e Patamona é propalada frequentemente pelo Palácio do Planalto como o maior trunfo da política indigenista da administração atual.

Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), de 2002 a 2005, dos mais de 220 ocupantes existentes na área (o número não é definitivo), apenas 52 foram indenizados por benfeitorias construídas de boa-fé. O governo diz que já tem os R$ 754 mil necessários para pagar outros 25 colonos cujos processos já estão finalizados. Resta ainda terminar os processos de aproximadamente 145 posses, o que a Funai promete fazer até o dia 15 de abril próximo.

A retirada de todos os ocupantes pode arrastar-se ainda por vários meses e até anos – tudo depende da agilidade administrativa, da disponibilidade orçamentária e do andamento de eventuais ações judiciais. Os posseiros podem não aceitar os valores oferecidos como indenização. Neste caso, o dinheiro é depositado em juízo e os ocupantes, de acordo com a legislação, podem ser retirados pelo governo. O problema é que principalmente a Justiça Federal local pode conceder liminares garantindo a permanência na TI. Sobretudo os grandes fazendeiros prometem uma longa batalha judicial por suas posses.

Peregrinação no Planalto

Na semana passada, 13 lideranças indígenas de Roraima estiveram em Brasília e fizeram uma verdadeira peregrinação por vários órgãos da administração federal – Casa Civil, Ministério da Justiça, Funai, Polícia Federal, Ministério do Exército – para encaminhar reivindicações sobre uma série de problemas em áreas como meio ambiente, saúde, educação, segurança e questão fundiária. A TI Raposa-Serra do Sol foi o primeiro ponto da pauta. Os representantes indígenas arrancaram a promessa de que a desintrusão (retirada de invasores) da área seria apressada e que a equipe responsável pelo processo seria ampliada. A PF também avalia a possibilidade de manter um contingente de policiais na região.

As lideranças acusam o governo de ter iniciado muito tarde o levantamento fundiário e a avaliação das benfeitorias: o trabalho só começou em setembro do ano passado. Segundo o coordenador-geral de Assuntos Fundiários da Funai, José Aparecido Donizete Briner, o treinamento da equipe responsável pela tarefa começou já em maio, mas logo em seguida a Fundação enfrentou uma greve de 40 dias. Burocracia e problemas administrativos, como a mudança nos procedimentos de algumas licitações, teriam atrasado ainda mais o processo. “Só para ter uma idéia, levamos 35 dias para alugar um carro. Honestamente, em termos de Funai, um ano é um tempo muito curto. Alguns processos como este levam anos”, justifica Briner. Ele garante que mais quatro técnicos devem se integrar ao trabalho nos próximos dias. Apesar de não informar valores, Briner diz que governo já tem disponível o dinheiro para indenizar todos os posseiros.

O advogado Raul Silva Telles do Valle, do Instituto Socioambiental (ISA), considera que os entraves burocráticos possivelmente impedirão que o governo cumpra a meta por ele mesmo estabelecida. “É incrível como o Estado não consegue realizar uma ação concentrada e articulada, mesmo quando o caso é identificado como prioridade política. Se houvesse planejamento estratégico, pelo menos para este caso – que é usado como bandeira da política indigenista do governo federal – as equipes de campo já estariam treinadas e com verba garantida para começar os trabalhos na semana seguinte à homologação, o que significaria que hoje a maior parte dos posseiros de boa-fé já estariam indenizados e fora da área”, defende. Valle ratifica a avaliação de que, com greves e desorganização, o caso possivelmente se arrastará por um longo tempo.

Clima tenso

Enquanto isso, segundo o Conselho Indígena de Roraima (CIR), o clima na região está mais tenso – com constantes ameaças da parte de grupos chefiados por grandes produtores rurais que se recusam a sair da área – à medida que se aproxima a data-limite fixada pelo decreto. O CIR divulgou a informação de que seis homens teriam entrado atirando para o alto na aldeia Cumanã I e ameaçando atear fogo nas casas, na manhã do último dia 9 de março. A PF abriu um inquérito sobre o caso. Segundo a organização indígena, os funcionários da Funai e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) responsáveis pelo trabalho de campo têm sofrido ameaças. Briner confirma a denúncia e informa que, na semana que vem, os técnicos do governo contarão com escolta da PF para chegar a algumas regiões.

“Desde meados do ano passado, a Raposa-Serra do Sol está sem nenhuma segurança. O posto da PF foi desativado. A situação está ficando mais tensa. Muitos fazendeiros dizem que não vão sair, que vão resistir a qualquer ação para retirá-los”, alerta Marinaldo Justino Trajano Macuxi, coordenador do CIR. Ele conta ainda que grandes produtores rurais estão assentando grupos de indígenas cooptados por eles em locais próximos às suas lavouras para tentar justificar sua permanência na TI e até mesmo a exclusão de trechos de seu território. “Esta situação só será resolvida com a desintrusão total de nossas terras”. O CIR também tem denunciado o apoio dado pelo governo e por parlamentares estaduais aos grandes fazendeiros com posses na área.

Em 17 de setembro do ano passado, alguns dias antes do início da festa pela homologação da TI, cerca de cem homens encapuzados e pintados, entre índios e não-índios, invadiram e destruíram a maior parte dos dois prédios do Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa-Serra do Sol, na comunidade do Barro, a aproximadamente 200 quilômetros de Boa Vista. Durante a invasão, quatro pessoas ficaram feridas. (saiba mais). No dia 22 de setembro, já durante as celebrações, a ponte de acesso à aldeia de Maturuca, centro dos festejos, foi parcialmente incendiada. A suspeita é que o crime teria sido cometido pelo mesmo grupo (confira).

Xavantes e posseiros estão longe de um acordo

Os fazendeiros e posseiros que vivem na reserva indígena xavante Marãiwatsede reivindicam a permanência dos índios apenas na fazenda Karu, região de 14 mil hectares, onde os xavantes levantaram aldeia provisória há duas semanas. Homologada em 1998, a reserva Marãiwatsede foi demarcada com uma área de 165 mil hectares. Expulsos da região na década de 60, os xavantes retornaram à terra com o aval do Supremo Tribunal Federal (STF), que autorizou a retomada imediata de 115 mil hectares.

Nesta sexta-feira, cerca de 20 fazendeiros se reuniram com o prefeito de Alto Boa Vista, Mário Barbosa, com o representante da Advocacia-Geral da União (AGU), Cláudio Fim, e com o procurador-geral da República, Mário Lúcio Avelã. Também participaram do encontro o superintendente do Incra na região, Leonel Wohlsahrt, e o procurador-federal da Funai, César Augusto Nascimento.

De acordo com César, foi discutida a manutenção da paz na região e a área onde os índios devem ficar. Na reunião, Cláudio Fim, da AGU, e o procurador Mário Lucio pediram que a terra dos índios seja preservada. Segundo eles, é impossível restringir a posse da terra que já foi devolvida aos xavantes por decisão liminar do STF.

Os fazendeiros se recusaram a ouvir o superintendente do Incra. Disseram que não conversam com o órgão enquanto o processo sobre a terra não for decidido em última instância pela 5ª Vara da Justiça Federal do Mato Grosso. Os posseiros também se recusam a mudar para terras que já foram desapropriadas pelo Incra para eles.

Segundo eles, a obstrução, esta semana, dos trechos das rodovias BR-158 e BR 080 que dão acesso à reserva, foi uma forma de protesto e pedido de socorro. Diante da abertura de negociações, o grupo desobstruiu as estradas.

A produtora rural Irene Santos, há onze anos na região, diz ter perdido a paz após a volta dos índios para a região. “Desde que eles entraram, não temos mais sossego. Eles invadiram algumas casas, mataram a criação e obrigaram a mulher do dono a fazer comida. O que eles fazem é roubo”, acusa Irene.

Advogado dos fazendeiros, Romes da Mota classifica a situação como “desesperadora”. “Os fazendeiros tem medo de perder a sua propriedade, o gado e o meio de vida. Além disso, estão sendo constantemente ameaçados pelos xavantes”, afirma Mota.

Os índios negam que tenham praticado os crimes apontados pelos posseiros. "Somos contra a mentira dos fazendeiros, políticos e do prefeito. Os posseiros têm de sair imediatamente da terra, senão vamos tomar atitudes", avisa o cacique da tribo, Damião Xavante.

O administrador da Funai em Goiânia, Edson Beiriz, tem acompanhado o caso e acredita que é preciso iniciar os pedidos de reintegração de posse na Justiça. Beiriz lembra que os xavantes Marãwatsede passaram quase 40 anos em peregrinação, vivendo em condições precárias, depois de terem sido expulsos da região por usineiros e fazendeiros.

“Após a reocupação, muitos deles querem reaver toda a área rapidamente”, afirma o administrador. “Para auxiliá-los, a Funai pretende entrar com novas ações na Justiça. Tanto para reaver a terra como para conseguir indenizações pelos estragos ao meio ambiente.”