Funasa anuncia fim do seqüestro de funcionários no Parque Nacional do Xingu

O assessor especial de Saúde Indígena da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), Flávio Nunes, informou hoje (31) que já foram libertadas as 11 pessoas, entre funcionários da Fundação e prestadores de serviços, que há nove dias estavam retidos por índios da aldeia Pavuru, no Parque Nacional do Xingu, próximo à divisa dos estados do Mato Grosso e do Pará, sem acesso a barco ou avião para deixar o local.

O incidente teria ocorrido por causa da exoneração de Jamir Alves Ferreira da chefia do Distrito Sanitário Especial Indígena local.

Esta é a segunda vez em que a Funasa anuncia a libertação dos reféns. Na última sexta-feira (26), o diretor de Saúde Indígena da Funasa, Wanderley Guenka, em entrevista ao vivo à segunda edição do Jornal da Amazônia, da Rádio Nacional da Amazônia, garantiu que o problema havia sido resolvido com a recondução de Jamir Ferreira à chefia do Distrito Sanitário.

"Já está resolvido. Já contatamos o pessoal, os indígenas que estão lá no Parque do Xingu, já tranqüilizamos, já informamos a eles o retorno de Jamir Alves Ferreira como chefe do Distrito Sanitário Especial Indígena do Xingu. Então está tudo sob controle. As pessoas já foram liberadas e as lideranças estão tranqüilas com essa decisão", disse Guenka.

Para Gecinaldo Satere Mawe, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o problema é "reflexo da desestruturação e falta de recursos públicos da saúde" e poderá ser agravado.

Ele defendeu os seqüestros das equipes da Funasa: "Apoiamos inteiramente, como uma forma de defesa dos direitos, uma forma de expressar, ou talvez uma última forma de expressar a real calamidade por que passa a saúde indígena. Nós defendemos, sim, mas não defendemos a violência. Em nenhum momento ocorreu violência, mas uma forma de chamar atenção do governo brasileiro e da sociedade brasileira para o que está acontecendo com a saúde e os recursos da saúde indígena".

Na avaliação de Flávio Nunes, o seqüestro é uma forma de protesto que ocorre em função da pequena participação dos indígenas em conselhos de controle social, como os conselhos estaduais de saúde: "Essa é a forma encontrada de manifestar".

Flávio Nunes também enfatizou que não houve violência, mas não soube informar quantos seqüestros de equipes da Funasa já ocorreram neste ano, nem se o seqüestro também foi feito em protesto à Portaria 2.656, publicada no dia 17 de outubro. Esta portaria regulamenta a descentralização do repasse de recursos de saúde indígena aos municípios.

Arqueólogo reivindica reconhecimento de civilização milenar no Xingu

O arqueólogo Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, afirma que a região do Parque Indígena do Xingu comportou uma sociedade altamente complexa vários séculos atrás.

Heckenberger relata a existência de vestígios seguros de ocupação humana há pelo menos 1.100 anos na região, que corresponderia, grosso modo, ao território atual do parque indígena, de quase 30 mil quilômetros quadrados. Segundo o pesquisador, que trabalha em colaboração com os antropólogos Bruna Franchetto e Carlos Fausto, o auge do que ele chama de Nação Xinguana se deu entre os séculos XIV e XVI.

Ele falou à Agência Brasil no dia da inauguração do Centro de Documentação Kuikuro, 22 de julho, enquanto moradores e visitantes embrulhavam tucunarés e outros peixes moqueados (assados e defumados durante horas) em beiju de mandioca.

Quando o senhor teve uma pista mais concreta sobre a dimensão dessa sociedade antiga no Xingu?
Logo no começo do trabalho. Quando cheguei em 1993, o cacique Afukaká [dos Kuikuro] me levou para ver um sítio antigo, eu esperava um sítio de praça circular relativamente pequeno igual ao de hoje. Mas era muito maior. Tinha muitas obras, muita elaboração. O mesmo formato que o de hoje, uma praça circular com estradas radiais partindo dele, mas era dez ou 15 vezes maior. Onde tinha uma aldeia atual, a gente achou uma rede de 20 sítios ligados por estradas, que tinham até 50 metros de largura.

Seria algo como a Civilização Marajoara, também amazônica?
Lá, também, se mostra uma rede regional de assentamentos, obras de aterro, conhecidas como tesos, relativamente grandes. Aqui, no Xingu, não tem tesos, não tem pirâmides, era uma monumentalidade horizontal. Mas em termos de quantidade de pessoas e tecnologia acho que era bem mais complexo. Estou discutindo e até brigando para abrir um espaço de que essa era uma verdadeira civilização, não era obviamente aquele estilo europeu, com prédios grandes e essas coisas, mas em termos de sofisticação era supercomplicado, e tinha bastante gente. Na Europa, na América do Norte, no litoral do Peru esse sistema seria chamado de civilização.

O que eles tinham em termos de conhecimentos e técnicas?
O que mais me impressiona é o sistema, vamos dizer, cartográfico. A posição das aldeias, praças, estradas, ligava-se a conhecimento cartográfico, baseava-se em mapeamento, planejamento supersofisticado. Era um sistema ligado a astronomia, com rituais calêndricos. Um mundo que junta cosmologia, política e cartografia, e no qual a Terra é um espelho para o que tem no céu. Um planejamento urbano, até. As estradas sempre na mesma direção, a distância de um sítio a outro praticamente o mesmo, ângulo e distância. Eram também sociedades com lado agrícola bem sofisticado, pesca e manejo bem sofisticado de outros recursos aquáticos, mas não acabaram com as florestas. De lá para cá não mudou muito isso. Eu vim da Alemanha, e vi coisas que me lembram mais de lá que o clássico dos povos de floresta tropical.

Como era a organização espacial desse sistema?
Eles eram organizados em conjuntos hierárquicos, com uma ou duas aldeias principais, várias secundárias e cinco a dez sítios-satélites menores, e você passa ao território de outro conjunto. O diâmetro de um conjunto era 20 quilômetros. O normal era ter oito a 12 aldeias num conjunto. Eu os chamo de polities a pari – pare polities. Um conjunto é um polity [comunidade organizada politicamente] e o outro é a pari [por igualdade]. Não era um sistema como o dos Incas ou o de Roma, que tinha um centro e todos os outros conjuntos abaixo. Todos os conjuntos eram iguais, como os caciques de hoje são iguais. Tinham espaço de 250 a 400 quilômetros quadrados cada um.

Quantos eram no total?
Pelo menos 20 ou 25, talvez bastante mais, no que eu chamo de Nação Xinguana, que é mais ou menos a área ocupada hoje pelo parque, mas se espalha um pouco mais para o norte. Diminuiu um pouco a área deles durante a época histórica [depois dos registros escritos], por causa de epidemias, da fronteira de colonização. Comparando com as outras civilizações… Por exemplo, as pólis da Grécia eram centenas. Atenas era enorme, Esparta também, mas a maioria das pólis era muito menor, milhares de pessoas num território de 150-200 quilômetros quadrados. Mas ninguém duvida de que a Grécia clássica era uma civilização. Os incas eram uma anomalia, um império, durou 60-70 anos, durante uma pré-história de 10 mil anos. Roma também era anômala. Todos os outros assentamentos na Europa eram do tamanho deste. Eles tinham um centro e uma periferia, aqui era multicêntrico.

E qual era a área ocupada pela nação inteira?
Pelo menos 20 mil quilômetros quadrados. E a gente não sabe bem. Eu estou trabalhando na área kuikuro, um bloco de uma nação bem maior.

A existência dessa sociedade vem sendo aceita no meio científico?
Tem gente que não acredita, de jeito nenhum, que sociedades como essas poderiam sobreviver em floresta tropical. Obviamente, as pessoas não vão abandonar seus modelos de um dia para outro e dizer “a gente estava totalmente errado”. Outros vão se convencendo. Carlos Fausto [antropólogo do Museu Nacional] entrou na área em 1998. Não foi a favor nem contra, entendeu a possibilidade. Mas veio aqui e concordou com o que eu tinha pensado para os grupos atuais: que eles eram hierárquicos, sedentários, regionais, e montou uma etnografia superdetalhada. Nós, e a lingüista Bruna Franchetto, concordamos em quase tudo. E se essa sociedade hoje é sedentária, tem uma cultura, uma vida ritual, social e política complexa, superprodutiva, com manejo de terras sofisticado, e aqueles de ontem, que eram dez vezes maiores?

Como o atual modo de modo de vida dos xinguanos pode dar indicações sobre essa ocupação antiga?
Você não precisa inventar as formas econômicas, cosmologia, rituais dessas sociedades. Eles [hoje] já são muito parecidos com muitas sociedades complexas. Têm astronomia, conhecimento de biologia. Só que dá um choque no pessoal [da área científica], porque eles pensam: é um povo muito pequeno. Mas ignorar a porrada demográfica que esses povos levaram durante os últimos séculos é impossível.

Qual foi o impacto da chegada dos colonizadores sobre essa nação?
O choque de colonialismo botou eles no chão, [a população] era muito maior. A gente sabe que no Caribe, nos Andes, Mesoamérica, América do Norte – todo lugar onde tem registros documentais escritos – epidemias levaram muita gente. Aconteceu aqui na Amazônia também, mas escondido. Ninguém estava lá para testemunhar. Nesta área, os primeiros registros escritos são de 1884, e aí já era uma fração do que era em 1500.

Quais foram as descobertas recentes nessa pesquisa?
A gente sempre encontra algo que mostra um entendimento novo. Nos últimos anos era mais fechar que a gente já sabia existir. Estou terminando o relatório dos últimos quatro anos para entregar aos órgãos federais e às lideranças indígenas, especialmente a Aikax [Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu]. E aí a gente continua com essa campanha de destacar esta sociedade. Mundialmente você não encontra muitas sociedades assim que estão inteiras, vivas. É um patrimônio mundial. Esse e outros grupos amazônicos estão abrindo um novo capítulo sobre a história humana: o das civilização amazônicas.

Sobrevôo na região do Xingu revela a tapeçaria do agronegócio

Sobrevoando a região do Parque Indígena do Xingu em um monomotor rumo ao oeste, constata-se que o agronegócio está mesmo ali, 6 minutinhos pelo ar, ou menos de 30 quilômetros para além do parque, de acordo com a percepção do piloto que conduz os repórteres ao município mato-grossense de Sinop.

O tapete verde da área indígena dá lugar, então, a amplos quadrados e retângulos beges, marrons, vermelhos ou verdes claros, com retalhos verde-escuro de mata aqui e ali. Talvez por ironia, as linhas que os tratores escavam e os arados riscam  muitas vezes lembram as pinturas corporais com jenipapo e urucum e as tapeçarias de buriti e algodão dos povos indígenas.

Ou a escarificação feita com um pente de dentes de peixe-cachorro, com o qual os alto-xinguanos preparam os jovens em reclusão no programa de fortalecimento para lutar o huka-huka numa das festas desses povos.

Os desenhos mecanizados significam dinheiro para o país: no ano passado, o Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio – isto é, a soma das riquezas produzidas no setor – foi de R$ 540,06 bilhões, segundo estudo da Confederação da Agricultura e da Pecuária (CNA).

Significam também obtenção de divisas, isto é, entrada de moeda estrangeira. Segundo os dados do governo federal, o agronegócio respondeu por 93% do superávit (saldo positivo) comercial brasileiro em 2006, que totalizou US$ 46 bilhões. Os setores que mais colaboraram para isso foram os ligados à soja, com saldo de US$ 9,37 bilhões.

O Mato Grosso responde por mais de um quarto da produção nacional do grão, que registrou safra recorde este ano, apesar da redução na área plantada. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) prevê expansão da sojicultura na próxima safra no estado, usando principalmente áreas que já têm ocupação humana.

O Instituto Socioambiental (ISA) identifica risco para a floresta amazônica e para o Xingu nessa perspectiva. “Abraço da morte” é o cercamento do parque indígena pela derrubada de vegetação, pela soja e pelo gado, nas palavras do secretário executivo da entidade, Márcio Santilli.

Cacique yawalapiti pede a jovens que não abandonem tradições por causa da tecnologia

Visitante no fim de semana de festa na principal aldeia dos Kuikuro, o cacique Aritana, representando os Yawalapiti, diz que não se opõe ao envolvimento dos jovens do Parque Indígena do Xingu com a tecnologia – desde que ele não implique abandonar as tradições.

“Inclusive me entrevistaram aí hoje, eles são jovens, né?”, relata o líder, em entrevista à Agência Brasil. “Eu falei tudo isso para eles: Olha, principalmente vocês que estão mexendo com essa máquina aqui, depois não vão se sujar com urucum [semente usada para tintura vermelha], não vão querer fazer nada, vão querer fazer só isso, também não vale, né? Tem que participar de festa, participar de cerimônia, fazer tudo.”

Após ver imagens de um Kuarup (festa de celebração dos mortos) em 1984, ele comenta que os jovens estavam um pouco envergonhados nas danças do último sábado (21).

O integrante do Coletivo Kuikuro de Cinema Jairão (ou Mahajugi) Kuikuro, 20 anos, diz que as duas atividades não são excludentes: “A gente dança também. Como seis realizadores, vai se revezando com a câmera”.

Jairão leva uma prancheta com uma lista de perguntas jornalísticas, em português, aos participantes. Ele conta que escreve na sua língua e na dos brancos, além de falar kalapalo: “Para os mais velhos, é difícil escrever. Para mim, está fácil demais. Sou lingüista. Estou estudando direto. Eu não tenho vergonha de falar na frente do branco porque o índio foi o primeiro habitante do Brasil”.

“Escrevo bastante poesia em português”, conta o jovem kuikuro. “Com vela. Às vezes compro pilha, boto a lanterna, fico escrevendo na minha casa, na oca. ” Recorda trechos de poema elaborado às vésperas das sessões audiovisuais e da inauguração do centro de memória em sua aldeia: “Estamos aqui, cinco horas da manhã e tal… A poeira está incomodando os brancos. Ontem meu pai foi pescar…” Ele diz que escreveu em português, mas pode traduzir. “Quem lê sou eu mesmo. Meu irmão, a rapaziada.”

Para o jornalista Washington Novaes, autor de documentários sobre povos da região, existe um conflito latente, ainda sem desfecho, entre as novas e as antigas gerações no Xingu. No centro dele estariam o consumismo e o abandono de atividades do cotidiano. “Não se sabe até quando os velhos vão aceitar a postura dos jovens”, comenta. “Eles vão perdendo a autonomia [de saber fazer todo o necessário à sobrevivência] e interrompem um conhecimento, uma habilidade. É o momento em que o conflito se explicita, e vamos ver em que direção ele se desdobra.”

Segundo o jornalista, a educação bilíngüe é criticada por muitos dos idosos. Ele diz não ter uma conclusão sobre a expectativa, de índios mais velhos, de que a documentação em vídeo leve os jovens a querer saber dos mitos e formatos tradicionais. Na Aldeia Ipatse, boa parte do acervo do centro de documentação foi recolhido pelo grupo de cineastas.

Washington Novaes : Os índios mudaram sua maneira de encarar o mundo

Para Washington Novaes, jovens e velhos vivem conflito latente no Xingu. O jornalista destaca a circulação de dinheiro nas comunidades como o grande fator de perturbação no cotidiano do Parque Indígena do Xingu e diz que existe um conflito enunciado, ainda sem desfecho, entre as novas e as antigas gerações.

Novaes retratou o Xingu numa série de 11 documentários, gravada em 1984. Voltou à região em 2005 para documentar as mudanças nos grupos de cinco povos que havia visitado – Kuikuro, Kayapó (no caso, os Metuktire), Panará (antes conhecidos como Kren-Akrore), Waurá e Yawalapiti. No último fim de semana, os Kuikuro da Aldeia Ipatse e fizeram uma festa para, entre outros motivos, celebrar o lançamento de seu novo vídeo, com estréia na TV marcada para domingo (29).

Em entrevista à Agência Brasil, o jornalista aponta as razões pelas quais diz que os índios mudaram sua maneira de encarar o mundo. 

O que mudou no Xingu nessas duas décadas?
Eles ainda têm aquele tempo que escorre mais devagar, mas com muitas transformações. Praticamente todas as casas, em várias aldeias, têm antena parabólica, então, quando têm combustível para o gerador, eles vêem Jornal Nacional, novela, jogos de futebol… Os jovens gostam muito de dançar forró, jogar futebol. Agora, talvez a transformação mais funda seja que antigamente não havia dinheiro nas aldeias, não tinha monetarização na cultura. E, a partir desse desejo de ter as nossas tecnologias, de ter televisão, de ter DVD, de ter gravador, de ter câmara de filmagem, trator, barco com motor, foi preciso que passassem a produzir dinheiro. Seja pelas associações de cada aldeia fazendo apresentações de suas danças e cantos fora, seja recebendo de direitos de imagem em filmagens… Também há, em várias aldeias, muitos velhos recebendo aposentadoria. E um salário mínimo é uma renda grande nesses lugares.
Outras pessoas tentam com a produção de artesanato. Os velhos dizem que os jovens não querem mais viver do modo tradicional, querem comprar tudo. Querem ter roupa, tênis, óculos escuros. E aí querem passar o tempo inteiro fazendo artesanato, e não vão se dedicar às atividades tradicionais, como cultivar as roças para produzir comida. Outro ângulo, muito mais complicado, é que os jovens não querem aprender os cantos, as danças, que estão todos relacionados ao mundo dos espíritos.

A presença dos espíritos era uma das origens dessa imagem que o senhor usou, “terra mágica”, não?

Sim. No mundo dos índios a questão do espiritual é decisiva, esse lado é profundamente ligado ao cotidiano, porque tudo tem um espírito que é dono. Se o culto aos espíritos não acontece a vida social começa a perder sentido. Além disso, os jovens não querem ser pajés, que é um caminho cheio de sacrifícios e de perigos, um longo processo. Os Waurá, que em 1984 tinham 13 pajés, hoje têm três; os Kuikuro tinham mais de dez e hoje têm cinco. Os Yawalapiti só têm Sapaim, que está com mais de 70 anos. Já há discussão entre os Waurá sobre um curso para isso. Mas no caminho tradicional o pajé não escolhe, é escolhido. Pode ser por meio de uma picada de cobra, de um rodamoinho que entra na casa, ou de uma doença, ou nascer enrolado no cordão umbilical.

Antes da projeção na Aldeia Ipatse, o senhor disse que os índios alteraram para sempre sua maneira de ver o mundo. Como foi isso?

A nossa cultura, em geral, enxerga-os de uma forma muito limitada. E não olha as culturas indígenas pelo que elas têm de mais importante. Por exemplo: a organização social e política. Entre os índios que vivem ainda na força de sua tradição, o chefe não manda em ninguém. Ele é a pessoa que conhece a história, conhece a cultura, as tradições, e transmite isso para seu povo em cada situação. É o grande mediador de conflitos, o que fala melhor, e, por isso tudo, o que mais sofre. E não dá ordens porque não há delegação de poder, e sem delegação de poder não pode haver repressão, e sem isso não pode haver repressão de um grupo por outro grupo, ou de um indivíduo por outro. Isso aponta na direção das utopias, uma sociedade que não precisa ter poder. E proporciona uma vivência para nós quase inimagináveis: alguém nascer e morrer sem receber uma ordem sequer.

Se formos comparar…
Nossa cultura tenta promover a democracia da maioria e raramente consegue, enquanto eles têm no dia-a-dia a democracia do consenso. O índio, na força de sua cultura, é um ser absolutamente auto-suficiente. Sabe fazer tudo de que precisa para viver – plantar, caçar, pescar, sabe fazer sua casa, fazer seu instrumento, fazer seus objetos de adorno, sua rede, sua esteira, sua canoa. Nasce e morre sem depender de ninguém para nada. Me impressionou ver crianças que não apanham por nada, ver o carinho para com elas, a liberdade e a alegria delas. E, por fim, a informação é aberta. O que um sabe todos podem saber. Ninguém se apropria da informação para transformar em poder. Conviver com isso, ver que é concreto, mudou minha visão: eu sei que outras coisas são possíveis. É preciso que a nossa sociedade aprenda a ver essas coisas.

E as duas outras características – a ausência de informação restrita e a autonomia? Mantêm-se?
Eles [os xinguanos] estão no ápice de um conflito entre os mais velhos e os mais novos que é já enunciado, mas não tem ainda desfecho. Os velhos vêem com enorme temor o que está acontecendo e sabem que a cultura não vai sobreviver se os jovens não tomarem outro caminho. Isso ainda não se traduz em mudanças práticas, por exemplo, na organização social. Os chefes são instituídos pelo caminho tradicional. Em quase todas essa culturas, são escolhidos pela hereditariedade. E isso não é questão de privilégio: um chefe precisa ser educado desde muito pequeno, precisa de convívio permanente com o pai. Quando acontece alguma perturbação nesse caminho, é complicado. Quando os Villas-Boas [indigenistas que fizeram contato com vários povos] se aproximaram dos Kuikuro, nenhum Kuikuro falava português. Eles conheciam o Nahu, de pai nahukwá e mãe kuikuro. Quando morreu o pai do Tabata e do Afukaká, que ainda eram meninos, os Villas-Boas nomearam, entre aspas, o Nahu chefe. Isso gerou conflitos quando Tabata e Afukaká foram chegando à idade adulta, porque eles eram herdeiros tradicionais. Isso seguiu até que o Nahu morreu. O filho dele, Jakalo, que é kuikuro, é cacique hoje.

E quanto à auto-suficiência?
Logo, logo, vai começar a ter [implicações concretas]. Não se sabe até quando os velhos vão aceitar a postura dos jovens. Eles vão perdendo a autonomia e interrompem um conhecimento, uma habilidade. É o momento em que o conflito se explicita, e vamos ver em que direção ele se desdobra. Uma esperança deles é que a documentação em vídeo leve os jovens a querer saber dos mitos, das lendas, dos formatos tradicionais.

Além das questões culturais, o subtítulo de sua nova série de documentários, A Terra Ameaçada, tem a ver com o entorno do parque.
O Xingu, você vê, é uma ilha de vegetação e de rios limpos, cercado pelo desmatamento da soja, da agropecuária, por hidrelétricas, por garimpeiro, por madeireiro. Já está sendo fortemente afetado pelas mudanças. Há um aquecimento evidente, causado pelo desmatamento no entorno. Alguns dos rios já chegam com agrotóxico, com sedimentos resultantes da erosão nessas atividades, que não respeitam mata ciliar [às margens dos cursos dágua, e cuja conservação é obrigatória], não respeitam nada. Os peixes podem ser afetados pelas hidrelétricas, e peixe é um dos alimentos fundamentais ali, com a mandioca.

O Brasil tinha que ter visão estratégica. Dar-se conta nas suas políticas de que que é detentor do fator mais escasso no mundo, recursos e serviços natu

rais, e de que o índio é guardião deles. Estamos consumindo, no mundo, acima da capacidade de reposição da biosfera, e mudanças climáticas são o segundo problema crucial. Um país que tem uma dimensão continental, tem 12% da água superficial, tem um terço da biodiversidade, tem possibilidade de uma matriz energética limpa e continua atado a um modelo que vigora há 500 anos, de exportar baratinho produtos primários e grãos para os países centrais…

Nesse contexto, como o senhor vê a expansão do biodiesel e do etanol?
As biomassas para produzir energia limpa, que podem ser uma das soluções [no combate ao aquecimento], ameaçam se tornar um grave problema. O álcool, por exemplo: é evidente que precisa haver um zoneamento para saber onde você pode plantar sem danos. É preciso também estabelecer regras, como alternação de culturas, para não ter monoculturas extensas. Juntar isso com a agricultura familiar, para ela não ser despejada dos lugares que ocupa, como já aconteceu no estado de São Paulo. Criar cooperativas para fornecerem cana, ou soja, ou pinhão-manso, ou a matéria-prima que for, para as usinas centrais, mas não transformá-los em fornecedores com preços aviltados. É preciso impedir as queimadas. Criar regras para remuneração dos trabalhadores, que hoje são quase escravos. E não deve ser essa a única alternativa. O Brasil tem altas possibilidades na energia eólica, na energia das marés, na solar. Um estudo mostra que se você ocupasse um quarto da Usina de Itaipu com placas de energia solar produziria o mesmo que a usina. E o Xingu não escapa a essa regra. O entorno precisa ser preservado, ele é uma preciosidade. São mais de 20 mil quilômetros quadrados praticamente intactos. Isso é quase uma Bélgica. Minha tese é que o Xingu deveria ser reconhecido como patrimônio histórico, ambiental e cultural da humanidade.
Levantamento do ano passado mostra bem isso – o baixo índice de desmatamento em boa parte da terras indígenas. Por outro lado, pesquisadores têm alertado para a insustentabilidade de algumas atividades indígenas, como a a caça para arte plumária, em muitos locais. É possível pensar numa limitação, algum tipo de manejo?
De fato, diversos estudos mostram que o formato mais eficaz para a conservação da biodiversidade está nas áreas indígenas. Não está nem nos parques, nas áreas fechadas, nem nas áreas de proteção permanente. As áreas indígenas significam hoje 23% da Amazônia. Mas é preciso pensar nessas questões. No Xingu mesmo, com o uso de caramujos em colares para a venda, eles já estão escasseando. Os Kuikuro estão fazendo intercâmbio com os Pataxó, fornecendo penas para eles. É evidente que isso vai levar a um uso excessivo tanto de caramujos como de aves. Os mais velhos dizem que o centro de preocupação deles está na educação. Desde que se implantou nas aldeias a educação bilíngüe, as crianças e os jovens passaram a aprender a língua portuguesa. A televisão se tornou uma presença muito forte, e eles vão incorporando novos valores e formatos de viver. Esse assunto não está em discussão ainda no Ministério da Educação, nem na Funai, em lugar nenhum. Não sei se se deve interromper [o ensino de português], mas acho que se deve discutir. É possível também que se pense uma política estabelecendo uma uma compensação para não haver um uso excessivo de recursos. Isso tudo precisa ser discutido com urgência.

Como o senhor mesmo apontou, os índios mais jovens, especialmente, manifestam desejo de ter produtos da sociedade de consumo e integrar-se mais aos brancos. Como lidar com isso? É possível um processo mais equilibrado?
Não sei. Eu tenho minhas dúvidas de que simplesmente pela apropriação da tecnologia de documentação em vídeo ou em áudio isso aconteça. Há algumas outras coisas sendo feitas, como o reconhecimento dos conhecimentos tradicionais dos Yaualapiti, com apoio de uma historiadora e uma lingüista. Os antropólogos dizem que as sociedades indígenas são sempre capazes de absorver muitas coisas das outras culturas sem perder a sua natureza. Eu torço para que seja assim, mas, acompanhando há mais de 20 anos o processo no Xingu, fico com o coração apertado, me perguntando se elas vão ser capazes de resistir.

Que papel, a seu ver, o governo deve ter diante dessas questões?
Acho, em primeiro lugar, o país ter uma estratégia que valorize essas coisas que existem no Xingu. Isso precisa ter desdobramentos na educação, na demarcação de terras, na proteção das áreas. Pelo que vejo, praticamente nada nesse sentido está sendo feito. A área que tenho visto atuar é a da saúde. A Funasa [Fundação Nacional de Saúde] tem tido uma atuação muito forte com vacinação, e isso reduziu muito a mortalidade infantil, e com outras ações que eu me pergunto se são um bom caminho ou não, como colocar poços artesianos e água em cada casa, o que muda também o modo de viver.

O senhor pagou às aldeias por direitos de imagem. Acha que essa deveria ser a prática sempre?

Em 1984, quando consegui autorização da Funai [Fundação Nacional do Índio] para visitar todas essas áreas, uma parte da legislação a cumprir era uma portaria da Funai que estabelecia pagamento para qualquer documentação em área indígena. Só que isso nunca havia sido cumprido. Foi conversado com eles e com a Funai sobre o que seria justo. Foi depositado antes de irmos para lá, e criou um precedente principalmente para televisões do exterior. Agora houve negociação prévia, com participação da Funai, e eles estabeleceram R$ 30 mil por aldeia. Os Kuikuro me mostraram um caminhão e disseram que foi comprado com esse dinheiro. Eu sei que isso é uma contradição, um formato de entrada de dinheiro. Eu tento fazer com que o problema não seja maior fazendo que esse dinheiro vá para a associação da aldeia, e seja usado para acomunidade toda. Numa conversa com índios sobre essa questão, um deles brincou: “Você que ensinou o caminho…”

A série original, Xingu – A Terra Mágica, chegou a ter 20 pontos de audiência. O senhor acha que ajudou a mudar, ainda que seja um pouquinho, o que os brasileiros pensam sobre os índios?

Eu quis mostrar o índio do nascimento à morte – como nasce, como é educado, adolescência, organização social e política, arte, relação homem-mulher… Cada um vai enxergar de uma forma, mas eu espero dar, com isso, alguma contribuição. Em 1986 encontrei o Darcy Ribeiro [um dos mais importantes antropólogos que o país já teve] na escada de um avião e ele me disse: “Você está contribuindo fortemente para mudar a imagem do índio brasileiro”. Agora, quando fui gravar na aldeia kuikuro, me chamaram na frente da casa dos homens [espaço simbólico de muitas aldeias] e falaram, Jakalo e Afukaká, coisas que me emocionaram muito. Jakalo disse que, antes, quando ia ao Aeroporto Santos Dumont, as pessoas batiam na boca, fazendo “U! U! U! U!” [de forma jocosa] e que hoje isso mudou. Talvez a televisão possa dar a sua grande contribuição mostrando o que essas culturas têm de fundamental. Nós não vamos voltar a ser índios, não temos competência para isso, mas essas sociedades podem apontar rumos.

Líderes do Alto Xingu pedem ampliação de parque indígena ao presidente da Funai

A ampliação do Parque Indígena do Xingu foi uma das principais reivindicações de líderes indígenas ao presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira, no último fim de semana. O parque, que tem quase 30 mil quilômetros quadrados, foi criado em 1961 com um território muito menor do que o inicialmente previsto, e nas quatro décadas seguintes teve áreas incorporadas.

O cacique Aritana, dos Yaualapity, explica o que foi levado pelos xinguanos ao presidente do órgão federal. “O sul do parque, aqui, tem uma área que já está em processo, faz tempo, mas não está homologada ainda”, disse. “E desse lado aqui [a divisa leste do parque] tem uma área que a gente chama de ziguezague, porque ela é toda tortinha, ninguém sabe direito onde termina o parque, se o fazendeiro já está dentro, nada disso. A gente quer que fique reta, para fiscalizar melhor.”

Outra preocupação expressa por Aritana é com a preservação da tradição cultural dos povos do Xingu. “Ele [Meira] está vendo pessoalmente o que a gente sempre faz, essa cultura. Ele tem que reconhecer e manter isso para sempre, isso é o que a gente quer.” No fim de semana os índios fizeram várias exibições festivas.

Segundo Márcio Meira, o pedido de redefinição territorial será avaliado. “Essa é uma atribuição e uma obrigação constitucional da Funai, estamos examinando”, disse. “Vamos fazer isso sempre que os índios colocarem essas demandas, com o cuidado, obviamente, de primar pelo bom senso e pelo resguardo dos direitos dos povos indígenas.”

Para Meira, é necessário que todos os setores da sociedade na região sejam conscientizados sobre a importância de preservar os cursos dágua que formam o Rio Xingu. Com relação às s hidrelétricas e outros grandes projetos previstos pelo governo para a Amazônia, como a usina de Belo Monte, no Baixo Xingu, ele diz que a Funai atuará com a preocupação de conciliar desenvolvimento e respeito ao meio ambiente e aos direitos dos povos indígenas.

Foi a primeira reunião de Meira, que tomou posse em março, com os líderes do Alto Xingu.

Washington Novaes volta à Terra Mágica e em nova série de documentários revela: hoje ela é uma Terra Ameaçada

Vinte e dois anos após descortinar para o Brasil e o mundo a beleza, mistérios e encantamentos dos povos indígenas do Xingu, o documentarista Washington Novaes faz um retorno a esse universo mágico e o reencontra transformado.  Ilhado entre pastagens, estradas, e extensas áreas desmatadas para o plantio de soja,  o  Parque Indígena do Xingu e seus habitantes sofrem os efeitos da devastação ambiental ao seu redor e da proximidade, cada vez maior, com a chamada sociedade envolvente. As aldeias estão invadidas por antenas parabólicas. Os pajés vão desaparecendo, porque os jovens não querem mais saber da missão sacrificante. Hoje, assistem televisão, querem usar roupas de fábrica, tênis, óculos escuros e – suprema ambição – passear de moto pela aldeia.

Porém, mesmo transformado,  o  Xingu  preserva sua magia e penetrar nesse universo, segundo Washington Novaes, ainda exige “uma mudança radical de perspectiva”. Em 1984, ele mesmo experimentou essa mudança,  durante um mergulho de dois meses no cotidiano dos grupos indígenas Waurá, Kuikuro, Txukarramãe (atual Mentuktire) e Kren-Akarore (hoje Panará). Dessa experiência resultou uma das mais belas séries de não-ficção já exibidas pela tv brasileira: “Xingu, a Terra Mágica”, projeto executado pela Intevídeo Comunicação, para a extinta Rede Manchete. A série, de 10 programas, foi aplaudida pelo público e pela crítica, chegando ao último capítulo consagrada por 20 pontos no Ibope em todo o país.

Com a série de Washington Novaes, pela primeira vez, o Brasil conseguia enxergar sem preconceitos o  mundo e a cultura do índio. Descobria encantado as crenças, os mitos, a organização social, o jeito de viver dos povos do Xingu. O cacique Raoni se lançava para o mundo como porta-voz das nações indígenas. O próprio documentarista se transformou e ensinava:  “O encontro com o índio é um mergulho em outro espaço, em outro tempo, Um espaço aberto, de céu e terra, amplo, água e fogo. Um espaço colorido e pródigo, povoado por animais, vegetais, minerais e espíritos”. 

Em seu novo mergulho no Xingu, em 2006,  Washington Novaes  reviveu as mesmas sensações. Como ele diz: “Este ainda é um momento de coexistência das duas culturas, a do índio e a do branco”. Graças a isso,  pode registrar não só as mudanças negativas ocorridas ao longo das duas últimas décadas, mas também belos e comoventes flagrantes de manifestações culturais mantidas bem vivas pelos quatro grupos indígenas novamente documentados. A Festa do Pequi, a Festa do Espírito do Beija Flor, a Dança do Papagaio, o Kuarup,  um ritual para agradar o espírito que roubou a alma de um rapaz,  a iniciação dos jovens com a bateção de marimbondos e uma  emocionante e espontânea reconstituição feita pelos Metuktire do momento histórico do primeiro contato com os irmãos Villas-Boas. Todos esses acontecimentos serão mostrados na nova série.

Para esse reencontro com o Xingu, Washington conseguiu reunir companheiros que partilharam com ele as emoções da primeira aventura: Lula Araújo como diretor de fotografia e João Paulo Carvalho, como diretor de edição. Antônio Gomes, o Painho, técnico de som, não pode acompanhar a turma desta vez. Entre os integrantes da equipe da nova série estão Siron Franco,  diretor de arte; Pedro Novaes, diretor de produção; Marcelo Novaes, fotógrafo de still; Pedro Moreira, técnico de som; João Novaes e Cláudio Pereira, produtores executivos. A equipe incorporou ainda, como assistentes de fotografia, dois jovens cineastas das aldeias Kuikuro e Panará: Marica Kuikuro e Paturi Panará, ambos treinados pelo projeto “Vídeo nas Aldeias” e com filmes já exibidos em festivais.

Batizada como “Xingu, a Terra Ameaçada”, a nova série de Washington Novaes será lançada em abril, sob o patrocínio da Petrobrás, da Natura e da Ancine. Dividida em cinco programas, de 50 minutos cada,  formará  um conjunto com os dez capítulos da série anterior,  que serão exibidos novamente.  Washington também pretende relançar o livro “Xingu, Uma Flecha do Coração” e ainda publicar  o diário da nova experiência. Com mais de 50 anos de atuação profissional, Washington Novaes,  foi editor-chefe do Globo Repórter na época de ouro do programa, de 1977 a 1981. Desde então  iniciou sua bem sucedida trajetória como documentarista, ligado sobretudo às questões ambientais. Tem vários trabalhos premiados no Brasil e no exterior, como o próprio “Xingu”,  o documentário “Amazônia, a Pátria da Água” e as séries “O Desafio do Lixo” e “Os Caminhos da Sobrevivência”.

Novas invasões madeireiras ameaçam paz entre aldeias no Xingu

O Parque Indígena do Xingu (PIX), no noroeste do Mato Grosso, segue sendo ameaçado por invasões de madeireiras clandestinas. Se no final de 2005 um um grupo de caciques denunciou um foco de extração ilegal de madeira nos arredores de uma aldeia Trumai, no limite oeste do PIX, agora é a vez de lideranças Ikpeng pedirem auxílio ao governo federal para evitar o alastramento do desmatamento perto de uma aldeia desta etnia. Os índios afirmam que se os órgãos responsáveis não intervierem pode haver conflitos violentos entre aldeias, fato até hoje inédito na reserva indígena criada nos anos 1960 e que hoje é habitada por uma população de 5 mil pessoas de 14 etnias distintas.

Em ofício enviado no começo deste ano à Fundação Nacional do Índio (Funai), a Associação Indígena Moygu Comunidade Ikpeg (AIMCI) relata a gravidade da situação na aldeia Ronuro que, não por coincidência, é vizinha à aldeia Terra Nova, dos Trumai, onde 800 hectares de floresta foram desmatados entre 2004 e 2005. O relato das lideranças Ikpeng, aliás, se refere também às irregularidades na aldeia Terra Nova: “Desde dezembro de 2004 está ocorrendo a retirada de madeira… atividade esta que é de conhecimento da Funai, não tem autorização nenhuma por escrita… Sabemos que a retirada de madeira dentro de área indígena é uma atividade ilegal, no entanto esse acontecimento tem vindo com outras irregularidades. Constatamos a presença de pessoas não autorizadas a entrar em área indígena, com o agravante de estarem portando armas de fogos”, afirmam os Ikpeng. “O fato é que os empregados da madeireira que atua na área participam e estimulam quase que semanalmente de festinhas como forró. Os riscos de contaminação por doenças como DST, AIDS é grande, pois as relações sexuais interétnicas estão recorrentes e até casamentos com índias.”

Cópias deste ofício foram enviadas para Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Ministério Público Federal, Polícia Federal, Ministério do Meio Ambiente e organizações da sociedade civil, entre elas o ISA, que testemunha a ausência de medidas efetivas por parte dos órgãos federais para combater o desmatamento dentro do parque. “Depois da denúncia dos caciques em 2005, o Ibama realizou uma ação na área atingida e afastou os invasores. O problema é que ficou nisso”, diz André Villas-Bôas, coordenador do Programa Xingu do ISA. “Como não houve um monitoramento permanente do problema, em pouco tempo os madeireiros voltaram para dentro do parque expandindo sua área de atuação”.

A inoperância das autoridades para reprimir as invasões dos madeireiros tem posto em risco as relações pacíficas estabelecidas entre as aldeias das diferentes etnias xinguanas. Na denúncia feita ao governo federal, as lideranças Ikpeng advertem que, se nada for feito para acabar com o desmatamento dentro do parque, poderão entrar em guerra contra os invasores e os índios que estão associados à atividade ilegal. “Diante da gravidade desta situação… vimos solicitar tomada de devidas providências cabíveis urgentes, para impedir a continuidade da retirada de madeira e as conseqüências maléficas que essa atividade tem trazido para dentro do Parque Indígena do Xingu. Ou temos que trazer a imprensa para mostrar a realidade no nível nacional e internacional. Outrossim, queremos informar que se não houver solução… os guerreiros Ikpeng resolveram de forma violenta. O prazo que os guerreiros vão esperar é trinta dias…”.

O administrador regional da Funai no PIX, Tamalui Mehinako, esteve nas duas aldeias cujos caciques associaram-se aos madeireiros dos municípios vizinhos e já avisou a presidência da Funai do risco de um conflito entre índios. Em relatório interno, Tamalui diz que “As ações de exploração madeireira têm causado indignação nas comunidades indígenas adjacentes, o que pode evoluir para atitudes de confronto entre os índios. As ameaças foram feitas aos grupos que têm praticado o corte ilegal das árvores, e podem ser cumpridas, caso a Funai não intervenha de forma eficaz, com a proibição dessa exploração e fiscalização permanente dessas áreas”.

“Lá não tem mais mato não”

A visita do administrador do parque as aldeias envolvidas foi em julho do ano passado e a impressão, muito negativa. “Lá não tem mais mato não”, afirma Tamalui. “Andei muito pela Aldeia Terra Nova e só vi trator, caminhão de tora e muitos brancos acampados”. O servidor conta que o cacique Ararapan Trumai, ao conversar com ele, demonstrou estar arrependido de abrir as portas do PIX para os invasores. “Ele me falou que perdeu a cabeça e que percebeu que está destruindo o Xingu. Disse também que só fez negócio com os madeireiros pois não recebe da Funai carro, combustível e alimento”. Tamalui diz que as justificativas do cacique não o convencem. “Ninguém no Xingu está passando fome, então não precisa fazer isso. Para mim o que ele quer mesmo é viver que nem fazendeiro, andando em carro de luxo”.

Já na aldeia Ronuro, segundo o relato de Tamalui Mehinako, a retirada das toras conta com a autorização do cacique local, Ataki Ikpeng. “Ele me disse que viu seu parente Ararapan ganhar dinheiro e os madeireiros chegarem à área dele, então resolveu entrar no negócio. Disse que só vai parar se o outro cacique também parar”. O administrador do parque, contudo, afirma que nem dinheiro os caciques envolvidos no esquema conseguem ganhar. “Todo o lucro fica com os brancos, os índios não conseguem nada, apenas se endividar”.

O problema é que a falta de recursos atinge também a própria Coordenação de Fiscalização da Funai. Tamalui diz que desde o ano passado aguarda a liberação de verbas para que os fiscais do Xingu possam vistoriar os pontos mais vulneráveis da reserva em condições mínimas de trabalho, o que inclui equipamentos de rádio, barcos a motor e combustível. Enquanto o apoio não chega, novas invasões pipocam no Parque Indígena do Xingu. Na semana passada Tamalui recebeu em seu escritório em Brasília um radiograma de Alupá Kaiabi, coordenador de fiscalização alocado no parque, que alerta para nova denúncia de extração ilegal de madeira na região norte do PIX. “Não sabemos se dentro ou fora da reserva, por este motivo necessitamos deslocar uma equipe até o local…outrossim informar se o combustível da fiscalização que estava empenhado já está liberado. Aguardo resposta”.

Campanha Y Ikatu Xingu tem novo site

Está no ar o novo site da campanha pela proteção e recuperação das matas ciliares do rio Xingu, lançado hoje no Espaço E da São Paulo Fashion Week, evento de moda que acontece em São Paulo duas vezes ao ano. Com layout novo, o site apresenta formas de participação diferenciadas a quem quiser colaborar com o movimento der responsabilidade socioambiental compartilhada, que reúne índios, pesquisadores, ONGs, agricultores familiares e produtores rurais. Clique e descubra as novidades.

O novo site da Campanha Y Ikatu Xingu já está no ar e será lançado hoje no Espaço E da São Paulo Fashion Week (SPFW), considerado o maior evento de moda latino-americana, que elegeu como bandeira nesta edição outono-inverno 2007, a sustentabilidade ambiental.

O Espaço E foi montado pelo Instituto E ( o E refere-se às palavras earth, energy, environmental, education) no Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera em São Paulo, para promover eventos relacionados ao tema durante a SPFW. A Osklen, conhecida grife brasileira, desenhou uma camiseta especialmente para a campanha.

Entre as novidades do novo site estão um vídeo que mostra o desmatamento na região do Xingu e incentiva a participação do público por meio do envio de cartões virtuais, de uma barqueada virtual e doações entre outros.

WWF-Brasil apóia criação de novas unidades de conservação no Pará

O WWF-Brasil apóia e destaca a importância da criação de nove unidades de conservação (UCs) no norte do estado do Pará, oficializada em cerimônia nesta segunda, em Belém, pelo governador paraense, Simão Jatene. “Trata-se de uma decisão de grande relevância para a conservação da Amazônia”, afirma Denise Hamú, secretária-geral do WWF-Brasil.

As novas unidades ocupam cerca de 15 milhões de hectares, área que equivale, aproximadamente, à soma dos territórios de Portugal e Irlanda. Segundo Cláudio Maretti, coordenador do Programa de Áreas Protegidas do WWF-Brasil, a medida é importante para o estabelecimento de planos de conservação e o uso sustentável dos recursos naturais na região. “A criação de UCs não pode ser vista como a única solução para os problemas ambientais do país, mas é fundamental como ação imediata para conter o desmatamento na Amazônia”, analisa.

A maior parte das novas unidades de conservação está no norte do Pará. Duas delas serão de proteção integral: Estação Ecológica Grão-Pará, com cerca de 4,3 milhões de hectares (que será a maior unidade de conservação de proteção integral do mundo) e a Reserva Biológica Maicuru, com cerca de 1,2 milhão de hectares. Compõem ainda o ‘pacote’ das novas UCs, três florestas estaduais (Paru, Trombetas e Faro), que somam cerca de 7,4 milhões de hectares.

Esse conjunto forma o maior corredor de conservação do mundo, conectando-se com uma grande área protegida no Amapá (que inclui o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque). Além disso, esse mosaico vai se conectar, por meio de terras indígenas, com áreas protegidas em Roraima e no Amazonas.

Duas das áreas protegidas a serem anunciadas – a Floresta Estadual Iriri e a Área de Proteção Ambiental Triunfo do Xingu – eram aguardadas pela sociedade civil desde 2004, para completar o mosaico da Terra do Meio juntamente com as UCs federais criadas na região no início de 2005.

“Em conjunto com outras organizações da sociedade civil, já vínhamos pedindo ao governo do Pará a criação de mais unidades de conservação na Terra do Meio. É com satisfação que vemos isso se concretizar”, declara Maretti. Ele acrescenta que o WWF-Brasil vai continuar apoiando a implementação concreta das unidades de conservação, que vai além da criação das áreas ‘no papel’.

A criação das florestas estaduais favorece a implantação de uma política de desenvolvimento florestal, mas é necessário dotar a Secretaria Estadual de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Pará (Sectam) de recursos humanos, financeiros e equipamentos para a implantação das UCs e para a contenção do desmatamento em seu entorno. Afinal, a Lei de Gestão de Florestas Públicas repassou aos estados as atribuições de licenciamento florestal, autorização de desmatamento e ações de fiscalização.

O WWF-Brasil lamenta, no entanto, que neste recente conjunto de medidas, o governo estadual não tenha reconhecido demandas das comunidades locais para a criação da Reserva Extrativista Renascer. “Essa medida seria fundamental para resolver as graves situações de conflitos ligados à questão fundiária e ao uso de recursos naturais na região”, ressalta o coordenador do Programa de Áreas Protegidas do WWF-Brasil.

Destaques:

• Em princípio, seria assinada a criação de nove unidades de conservação, que ocupariam área de 16,4 milhões de hectares. Devido a uma liminar concedida pelo juiz federal de Altamira, Herculano Martins Nacif ao Ministério Público Federal, o governo do Pará foi impedido de criar duas UCs: a Floresta Estadual (Flota) da Amazônia e a Área de Proteção Ambiental (APA) Santa Maria de Prainha. Por isso a nova soma da área das UCs recém-criadas gira em torno dos 15 milhões de hectares.

• As principais ameaças atuais às unidades de conservação do norte do Pará, juntamente com áreas no Amapá e nas Guianas, são o garimpo, com contaminação dos recursos hídricos por mercúrio e assoreamento de mananciais, a caça ilegal e a exploração não sustentável de produtos florestais. A criação das unidades de conservação é importante para que essas áreas não continuem expostas a riscos de desmatamento, sobretudo associados a ações de grilagem, agricultura e pecuária irregulares.

• Na Terra do Meio o WWF-Brasil cobra urgência máxima na implantação das UCs, inclusive aquelas criadas em 2005, uma vez que a região tem sido submetida a intensa pressão de desmatamento. Os municípios da Terra do Meio e entorno vêm apresentando as maiores taxas de desmatamento do país nos últimos anos. Nesse caso, há pressões intensas advindas de três focos principais: grilagem associada ao plantio da soja entrando pela BR-163, grilagem vinculada à pecuária em São Félix do Xingu e ocupações irregulares, já há décadas, do entorno da rodovia Transamazônica. Há ainda o potencial de novas obras de infra-estrutura, como a proposta de uma usina hidrelétrica em Belo Monte.

• Em áreas protegidas, diretamente ou em apoio ao Programa Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa), o WWF-Brasil já investiu US$ 11 milhões nos últimos quatro anos em toda a Amazônia. Somente no Pará, o WWF-Brasil vai investir cerca de US$ 6,5 milhões nos próximos três anos. Em complemento a essa quantia, serão ainda aplicados US$ 15 milhões no Fundo de Áreas Protegidas do Arpa, cuja renda será utilizada na manutenção das UCs da região amazônica.