ISA faz balanço da Campanha ‘Y Ikatu Xingu em 2005

A campanha ‘Y Ikatu Xingu, que tem o objetivo principal de proteger e recuperar as nascentes e as matas ciliares do rio Xingu no Mato Grosso, fechou o ano de 2005 com um balanço positivo de novas iniciativas em andamento, elaboração de estudos, realização de eventos, aprovação de projetos, divulgação da mobilização, articulações com atores locais e com o governo federal. Além de novas ações que deverão também ser iniciadas, o ano de 2006 abre perspectivas para a realização de mais pesquisas, promoção de cursos e a implementação de novas políticas ambientais para a região.

No início de dezembro, em Canarana (MT), começou o projeto Formação de Agentes Multiplicadores Socioambientais na Bacia do Xingu, que terá duração de um ano e é uma parceria entre o ISA e outras organizações locais para estimular e potencializar iniciativas e projetos socioambientais com o uso sustentável dos recursos agroflorestais no Cerrado (saiba mais). A intenção das organizações que compõem a campanha é ampliar programas de formação semelhantes para outras sub-regiões do Xingu no Mato Grosso.

A partir de negociações feitas com o governo federal, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) realizou um estudo socioambiental sobre 26 assentamentos na região. O trabalho foi apresentado em um seminário realizado em Água Boa, cerca de 700 quilômetros a nordeste de Cuiabá, nos dias 21 e 22 de novembro. O evento serviu também para divulgar e atualizar as informações sobre a campanha, além de identificar as principais demandas da agricultura familiar na região e definir uma agenda de compromissos sobre o tema com o governo federal (confira).

Um encontro realizado em Sinop, no dia 21 de outubro, apresentou os resultados de um outro estudo articulado pela ‘Y Ikatu Xingu e patrocinado pelo Ministério das Cidades que constatou que a situação do saneamento em 14 cidades da Bacia do Xingu no Mato Grosso é bastante precária. Como resultado do evento, vários municípios deverão unir-se para colocar em prática políticas conjuntas para o setor.

O trabalho de assessoria a organizações locais e prefeituras feito pela campanha também começa a render os primeiros frutos. Ainda em outubro, o Programa de Alternativas ao Desmatamento e às Queimadas (PADEQ/PDA) aprovou o financiamento de R$ 1,8 milhão para seis projetos relacionados ao tema das matas ciliares e nascentes (leia mais). Dois projetos foram aprovados e dois foram recomendados em editais do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA). Um outro projeto também foi aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico(CNPQ) para trabalho educativo com foco nos recursos hídricos em escolas da bacia do Xingu.

Além disso, a partir de articulações com organizações do setor da grande produção agropecuária, a Embrapa vai realizar um conjunto de pesquisas e cursos apoiados pelo Fundo Setorial do Agronegócio na região de Querência. O trabalho deve estender-se até 2008 e vai envolver temas como planejamento e uso e ocupação do solo, qualidade de água, recuperação de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e integração lavoura-pecuária (veja notícia completa).

“Em 2006, existe a perspectiva concreta de começarmos a implantar uma rede de conservação socioambiental na bacia que terá a tarefa de articular, monitorar e qualificar novos projetos de proteção e recuperação de nascentes e matas ciliares”, conta Daniela Jorge de Paula, analista socioambiental do ISA, que é uma das organizações que integram a campanha ‘Y Ikatu Xingu. Ela informa ainda que, em 2006, serão feitas negociações e articulações com parlamentares, agências privadas de financiamento, governos estadual e federal para a implantação de ações e novos projetos em áreas como saneamento e alternativas à monocultura.

O Encantador de Gente

Orlando a todos encantava. Vi Orlando “brabo”, mas nunca o flagrei triste por mais de uns poucos instantes. O afeto que espontaneamente espalhava, explica sua capacidade de acalmar guerreiros pintados para a morte e de conquistar o apoio de políticos para causas humanitárias. Fascinava e o fazia para o bem.

Os índios do Xingu consideram Orlando um herói, com correto senso de justiça. Os Yawalapiti não se esquecem que Orlando convenceu os sobreviventes de sua tribo a reconstruir sua aldeia. Ainda guardo a imagem de uma única casinha habitada por uns poucos remanescentes Yawalapiti, que se transformou, hoje, em belíssima aldeia com mais ou menos 200 habitantes. Ameaçadas de desaparecimento, e revividas no Alto Xingu, foram também as etnias Maitipu, Nahukwa, Trumai e Txicão. No Médio Xingu, os Suiá, Juruna e Kayabi passaram por processo semelhante. Não tivessem sido os Panará, emergencialmente, levados para dentro do Parque do Xingu teriam desaparecido por completo, dada a decisão do governo militar de tomar sua terra.

Em 1961, primeira vez que estive no Xingu, a região era habitada por poucas centenas de índios, que ainda se recuperavam da devastadora epidemia de sarampo de 1954. Em 1971, quando retornei à área, para viver entre os índios Aweti – convencido que fui pelos Villas Bôas a estudar antropologia – encontrei alguns adultos e multidões de crianças correndo pelos ensolarados pátios das aldeias. Já se prenunciava a recuperação de um padrão demográfico que asseguraria a continuidade da vida social. Graças à proteção física, cultural e política oferecida pelo Parque do Xingu, hoje, sua população é de mais de quatro mil índios.

Os índios do Xingu estão plenamente conscientes do papel dos Villas Boas, mas muitos caraíbas (“brancos”) não sabem que a política indigenista brasileira do século XX foi marcada por Rondon e pelos Villas Bôas. Rondon, no começo do século XX, revolucionou o que era, mas ainda não se chamava, "política de direitos humanos". Convenceu o País, definitivamente, de que os índios tinham o direito à vida. Rondon enfrentou e derrotou, ideológica e politicamente, o evolucionismo dominante no seu tempo, que pregava a sobrevivência dos mais aptos e o extermínio dos mais fracos, como um imperativo biológico.

Os Villas Bôas, em íntimo contato com a melhor antropologia dos meados do século XX, pertenciam a um grupo intelectual e afetivo que reunia os antropólogos Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro e o médico Noel Nutels. Esse grupo foi responsável pela idéia de que a terra deveria ser preservada, como condição para garantia da vida dos índios. Mas não só: afirmou-se pela primeira vez, que a cultura indígena representava um valor humano essencial que, também, deveria ser protegido. Coube aos Villas Bôas participar da elaboração desses princípios e, ainda, de sua aplicação eficaz. Esta foi outra revolução na política de direitos humanos, no Brasil e no mundo, pois era reconhecido o valor da diversidade cultural. Esta era época em que os estados nacionais – dando seqüência a uma política iniciada com a revolução francesa – atuavam no sentido inverso, o da universalização de uma cultura hegemônica em seu território, que se confundiria com a "cultura nacional". A luta pelos direitos dos índios a uma cultura própria representou uma verdadeira ruptura intelectual e política, na qual os Villas Bôas tiveram um papel decisivo.

Orlando nos conta de um outro Brasil, com o qual ele mesmo, Cláudio, Leonardo, Álvaro, Noel, e tantos outros viviam em comunhão e ao qual dedicavam infindável lealdade. Suas memórias, seus “causos” e sua luta pelos índios são narrados com a elegante simplicidade com que falava e encantava os que tiveram suas vidas enriquecidas por sua amizade.

Que bom, Orlando, ouvi-lo de novo!

Por George de Cerqueira Leite Zarur

Incra vai investir em assentamentos na Bacia do Xingu no Mato Grosso

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) vai investir em obras de infra-estrutura nos assentamentos de reforma agrária da Bacia do rio Xingu no Mato Grosso. Nos próximos meses, deverão ser liberados R$ 190 mil para construção e recuperação de estradas, R$ 200 mil para a instalação de um viveiro de mudas e outros R$ 80 mil para obras diversas em Água Boa, cerca de 700 quilômetros a nordeste de Cuiabá. Pelo menos esta foi a promessa feita pelo presidente do Incra, Rolf Hackbart, em um encontro realizado na cidade sobre agricultura familiar, entre segunda e terça-feira, dias 21 e 22 de novembro.

O evento faz parte da campanha Y Ikatu Xingu, que tem o objetivo de proteger e recuperar as nascentes e as matas ciliares do rio Xingu no Mato Grosso, e também serviu para divulgar e atualizar as informações sobre a mobilização, além de identificar as principais demandas da agricultura familiar na região e tentar firmar uma agenda de compromissos sobre o tema com o governo federal. Estiveram presentes quase cem representantes de trabalhadores rurais, associações, sindicatos, organizações não-governamentais e governamentais de 20 municípios mato-grossenses.

“É inadmissível que sejam implantados assentamentos nesta bacia sem respeito ao meio ambiente. Temos de mudar esta situação porque o mundo está de olho no Brasil”, disse Hackbart. Ele garantiu que as ações e diretrizes definidas no evento serão apoiadas pelo Incra e que existem mais recursos disponíveis que podem ser aplicados na região. Hackbart lembrou que o órgão assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para recuperar o passivo ambiental nos assentamentos, desenvolver projetos de educação ambiental entre os assentados e estabelecer critérios ambientais para a concessão de crédito agrícola.

“Não existe desenvolvimento rural sustentável sem parcerias entre governo federal, estadual, prefeituras e sociedade civil. Saiam daqui buscando caminhos juntos e não o contrário”, afirmou Hackbart. Ele garantiu que o Incra está sendo fortalecido e lembrou que, nos próximos meses, deverá ocorrer o segundo concurso do órgão no governo Lula, com abertura de vagas para mais 1,3 mil funcionários. Além disso, a autarquia teria adquirido, neste ano, 300 caminhonetes e 1,3 mil computadores. Hackbart repetiu a promessa de que o presidente Lula irá chegar ao fim de seu mandato com a marca de 400 mil famílias assentadas.

No encontro, foram apresentados alguns resultados preliminares de um diagnóstico sócio-econômico e ambiental sobre 26 assentamentos da região, que está sendo desenvolvido pelo Incra a partir de articulações realizadas por organizações que fazem parte da campanha Y Ikatu Xingu. Entre outras conclusões, o estudo aponta que os moradores dos assentamentos locais não têm acesso a redes de água e energia elétrica, serviços de saúde, transporte e crédito rural. Os assentados também não conseguem escoar a sua produção e carecem de assistência técnica.

Durante a abertura do encontro, o prefeito de Água Boa, Maurício Cardoso Tonhá (PPS), lamentou o abandono de vários dos assentamentos. “Simplesmente instalar os assentamentos da maneira que tem sido feito até agora, acho que é um problema”, afirmou. O prefeito disse que para enfrentar o desafio de conciliar desenvolvimento econômico e conservação ambiental é preciso ter a maturidade suficiente para deixar de lado radicalismos e também defendeu a união entre governo e sociedade. “Ao preservarmos, temos de garantir a sobrevivência dos grandes e pequenos produtores, precisamos ter a consciência da necessidade do desenvolvimento econômico também”.

Projetos aprovados

“Temos dezenas de organizações que estão apoiando nossa mobilização. Tendo muita clareza de que cada segmento deve fazer a sua parte para atingirmos nosso objetivo comum, que é a recuperação e proteção das nascentes e matas ciliares”, afirmou Márcio Santilli, coordenador da campanha ‘Y Ikatu Xingu. Ele fez um breve resumo sobre os resultados obtidos até agora pela mobilização no primeiro dia do encontro. Santilli informou que já foram aprovados por instituições de pesquisa e fomento nove projetos, que deverão ser executados nos próximos três anos na região e somam R$ 3 milhões, envolvendo temas relacionados à questão das nascentes e matas ciliares e elaborados por organizações integrantes da mobilização.

Santilli citou ações na área de pesquisa e extensão rural que deverão ser desenvolvidas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), iniciativas de ordenamento e gestão territorial, cursos de formação de agentes socioambientais, experiências-piloto de recuperação e monitoramento ambiental. Ele também lembrou que, além do diagnóstico sobre os assentamentos, outro sobre o saneamento básico em 14 cidades da região já foi concluído e mais um sobre a situação da agricultura familiar também está sendo realizado a partir de articulações feitas no âmbito da campanha.

No final do evento, os participantes entregaram ao presidente do Incra, Rolf Hackbart, uma carta com uma série de reivindicações para melhoria das condições de vida dos assentamentos de reforma agrária na Bacia do Xingu no Mato Grosso. O documento expressa a disposição dos participantes do encontro em se unirem e se organizarem para viabilizar os assentamentos da região e cobra apoio do governo em áreas como recuperação ambiental, infra-estrutura, crédito agrícola e assistência técnica.

Caciques denunciam extração ilegal de madeira no Xingu

Entre os 14 povos que habitam o Parque Indígena do Xingu (PIX), muitos foram transferidos de suas terras originais para dentro dos limites da reserva, fundada no início da década de 1960. A geopolítica criada pelo governo federal fez com que grupos indígenas rivais tivessem que superar históricos de conflitos para compartilhar do mesmo território. A intermediação da política indigenista governamental foi decisiva para que o mosaico étnico no parque se consolidasse de forma pacífica.

A paz entre as aldeias, por sua vez, permitiu que o PIX se consagrasse ao longo das décadas como um oásis de preservação ambiental cravado no meio de uma das principais regiões de expansão da fronteira agrícola brasileira, o noroeste do Mato Grosso. Nos últimos meses, porém, o pacto indígena pela conservação da natureza foi quebrado. De acordo com denúncia de lideranças do Xingu, uma aldeia no extremo oeste do parque abriu suas portas para que madeireiros de cidades vizinhas derrubassem centenas de hectares de floresta. Pela primeira vez desde que a reserva indígena foi criada, seus chefes se vêem diante do desafio de reprimir um de seus parentes.

A denúncia aponta para o cacique Ararapan Trumai, chefe da aldeia Terra Nova. Afirma que o líder trumai tem permitido que madeireiros vindos das cidades próximas entrem no PIX a partir de sua aldeia para desmatar a região. Em troca, estaria recebendo dinheiro e automóveis. O negócio estaria ocorrendo desde meados de 2004. Neste período – segundo monitoramento feito pelo laboratório de geoprocessamento do ISA a partir de imagens de satélite – os invasores exploraram mais de 800 hectares de floresta, dos quais retiraram cerca de 16 mil metros cúbicos de madeira.

Parte desta destruição poderia ter sido evitada. Em agosto passado as principais lideranças xinguanas já pediam ajuda do governo federal para resolver o problema. Por meio de uma carta da Associação Terra Indígena Xingu (Atix), endereçada aos titulares dos ministérios da Justiça e do Meio Ambiente, ao Ministério Público Federal no Mato Grosso e aos presidentes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), os caciques denunciaram a extração ilegal de madeira de dentro do PIX. Contaram que haviam sido enganados pelo cacique Ararapan Trumai, que no final de 2004 havia lhes pedido permissão para abrir uma nova aldeia e uma pista de pouso na área da Terra Nova. Os chefes indígenas não sabiam então que o projeto servia apenas para encobrir a derrubada de árvores e a abertura de estradas para o escoamento da madeira.

Ao solicitar providências urgentes ao governo federal, os caciques citaram inclusive o nome de Gilberto Maia como sendo o do madeireiro ao qual o chefe Trumai estaria associado e a cidade de Vera (MT), como sua base de operação. No trecho final da carta, as lideranças escreveram que elas “sempre lutaram pela preservação do Parque, nunca deixaram estranhos entrarem na área, sempre foram contra a exploração de madeira, pesca, e hoje lutamos contra a destruição das nascentes e matas ciliares na região do entorno do Parque"…"Sabemos que a exploração madeireira em outras terras indígenas só trouxe problemas e nenhum benefício”.

No último dia 12 de novembro, os mesmos líderes do Xingu voltaram à carga e se reuniram com representes da Funai e do Ibama para buscar uma solução definitiva para o problema. Todos os 17 caciques presentes se manifestaram contrários à exploração madeireira dentro do PIX e solicitaram aos órgãos federais que intercedessem junto aos moradores da aldeia Terra Nova para que a atividade fosse interrompida imediatamente. Ararapan Trumai não compareceu à reunião, mas enviou um representante. Este pediu ao conjunto de líderes permissão para que a extração de madeira continuasse por mais 30 dias. Teve o pedido negado.

Dependência por dívida

A necessidade de reprimir os interesses de uma liderança local é uma novidade desconfortável para os povos do Parque Indígena do Xingu. André Villas-Bôas, coordenador do Programa Xingu do ISA, explica que as lideranças do parque nunca tiveram que enfrentar este tipo de situação. “Não existe instância interna de gestão para disciplinar ações predatórias que surgem na interface com o mundo dos brancos”, destaca Villas-Bôas. “Ao mesmo tempo em que o Estado diminui sua presença lá dentro, depois de anos intermediando relações, a sociedade regional se aproxima com seus interesses e provoca situações inéditas para os índios.”

André Villas-Bôas afirma também que a relação dos índios com interesses regionais predatórios costuma se basear, geralmente, em um sistema de dependência por dívida, o que poderia estar ocorrendo também com os membros da aldeia Terra Nova. “Como a extração de madeira ilegal é uma atividade de risco, paga-se muito pouco, então os índios ficam sempre devendo para os invasores, em um ciclo difícil de ser quebrado. Talvez por isso eles tenham pedido mais um mês para quitar suas dívidas”.

Este prazo não deve ser concedido. De acordo com Paiê Kaiabi, responsável na Funai pela administração do PIX, ainda esta semana uma equipe do órgão será deslocada para a aldeia Terra Nova a fim de encerrar as atividades ilegais. “Vamos passar informações e acredito que ele vai parar com isso”. Paiê, nascido no Xingu, explica que a situação é especialmente delicada para as lideranças. “Ararapan é um líder dentro do parque, filho de um cacique importante dos Trumai, tem muitos parentes, e ninguém se sente bem em agir contra ele”, afirma. “Vamos ter que dialogar, porque ele precisa saber que a retirada de madeira vai trazer problemas para todos no parque. Na aldeia dele mesmo já tem famílias disputando o dinheiro dado pelos madeireiros”.

Seminário em Sinop vai discutir políticas para saneamento na Bacia do Xingu

No dia 21 de outubro, em Sinop (MT), 500 quilômetros ao norte de Cuiabá, acontece um seminário para apresentar e discutir o diagnóstico promovido pelo Ministério das Cidades que constatou que é bastante precária a situação do saneamento básico em 14 municípios da Bacia do Xingu no Mato Grosso. O evento vai apresentar as conclusões do estudo e debater propostas e possíveis estratégias comuns para resolver o problema. Estarão presentes representantes do Ministério das Cidades, do Ministério do Meio Ambiente, da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), da Agência Nacional de Águas (ANA) e do governo estadual, além de prefeitos, técnicos e integrantes de entidades da sociedade civil.

A pesquisa foi articulada por organizações que participam da campanha ‘Y Ikatu Xingu, que tem o objetivo principal de proteger e recuperar as nascentes e as matas ciliares do rio Xingu no Mato Grosso, e pode ser considerada um dos primeiros resultados concretos da mobilização. Na região, sobretudo no Parque Indígena do Xingu, já foram registrados casos de intoxicação e mortandade de peixes por contaminação da água dos rios. Daí a preocupação da campanha com o problema do saneamento.

Iniciado em junho, o estudo abarcou, além de Sinop, mais treze municípios com sede urbana dentro da Bacia, abrangendo uma população de cerca de 207 mil pessoas: Canarana, Querência, Feliz Natal, São José do Xingu, Santa Cruz do Xingu, Marcelândia, Cláudia, Santa Carmem, Santo Antônio do Leste, União do Sul, Gaúcha do Norte, Nova Ubiratã e Ribeirão Cascalheira.

Entre outras conclusões, a pesquisa revela que só uma cidade, Sinop, possui aterro controlado para lixo, e mesmo assim ele é deficiente. Os outros municípios fazem a coleta, mas depositam seus detritos a céu aberto e sem nenhum procedimento especial. Além disso, em apenas três localidades – Gaúcha do Norte, Nova Ubiratã e Ribeirão Cascalheira – está sendo implantado sistema de tratamento de água. Somente em Cláudia existe rede de esgoto, mas a sua manutenção foi considerada inadequada. Para todos os municípios, foi indicada a necessidade de melhorias físicas e capacitação do corpo técnico dos servidores responsáveis pelo sistema de saneamento básico.

Norte do Mato Grosso ganha sua primeira Unidade de Conservação particular

Proprietários privados começam a fazer parte do esforço para proteger a região das nascentes do rio Xingu no Mato Grosso. O norte do Estado vai ganhar, em breve, a sua primeira Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) estadual: a Terra Verde. Com cerca de 7 mil hectares, a área fica localizada na divisa dos municípios de Feliz Natal, Santa Carmen e União do Sul, quase 600 quilômetros ao norte de Cuiabá, e é atravessada pelo rio Arraias, um dos formadores do Xingu.

A idéia de criar a reserva partiu dos fazendeiros José Peixoto de Oliveira e Rosely Quissini, que resolveram ceder parte de suas propriedades. No dia 9 de setembro, os dois assinaram um protocolo de intenções com o secretário estadual do Meio Ambiente, Marcos Machado. O governo mato-grossense tem 180 dias para finalizar o processo de criação da UC. Segundo Oliveira e Quissini, o local abriga inúmeros animais silvestres e espécies raras de árvores que precisam ser preservadas, como o cedrinho, a itaúba, a peroba e a sucupira. O Mato Grosso possui apenas uma RPPN estadual, a Vale do Sepotuba, no município de Tangará da Serra. Existem outras 14 RPPNs federais no Estado, totalizando 172 mil hectares protegidos (a maior área em termos absolutos entre todas as unidades da Federação).

Governo pretende criar quase 7,4 milhões de hectares em Unidades de Conservação no Pará

O sudoeste do Pará deverá ganhar mais oito Unidades de Conservação (UCs) nas próximas semanas, totalizando cerca de 7,4 milhões de hectares protegidos na região, segundo proposta do governo federal anunciada na quarta-feira, dia 14 de setembro. Estão previstas sete UCs na área de influência da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém) que está sob regime de “limitação administrativa provisória”, desde fevereiro deste ano. Deverá ser implantada também a Floresta Estadual do Iriri, na região da Terra do Meio, na altura do município de Altamira (veja abaixo a lista completa das UCs). O Parque Nacional da Amazônia, na divisa do Pará com o Amazonas, deverá ainda ser ampliado em mais 173 mil hectares.

As medidas são conseqüência direta das ações lançadas pelo governo federal em resposta à seqüência de assassinatos de lideranças sindicais e trabalhadores rurais ocorridos no Pará, em fevereiro, em especial à morte da freira missionária Doroty Stang. No dia 17 de fevereiro, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, anunciou o maior “pacote ambiental” da história do País, com a criação de mais de 5,2 milhões de UCs em toda a Amazônia e a interdição de 8,2 milhões de hectares, para estudos e possível criação de novas áreas protegidas, no sudoeste do Pará, ao longo da BR-163 (confira). A maior parte das UCs anunciadas agora são resultado desta última medida.

Nesta sexta-feira, dia 16 de setembro, às 16h, em Belém, começa uma série de consultas públicas no Estado sobre a criação das áreas. As outras consultas ocorrem no dia 20, em Novo Progresso, às 9 h, na Igreja Matriz Santa Luzia; no dia 22, em Itaituba, às 9 h, na Área de Lazer dos Cabos e Soldados; e no dia 23, ás 14 h, no auditório da prefeitura de Jacareacanga.

O governo resolveu deixar de fora deste novo pacote de medidas a criação da Área de Proteção Ambiental (APA) da BR-163, que se estenderia numa faixa ao longo da rodovia, desde a Reserva Biológica da Serra do Cachimbo, ao sul, na divisa com o Mato Grosso, até o Parque Nacional (ou Estadual) do Jamanxim, ao norte. “Segundo o acordo feito entre o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e o governo paraense, esta discussão será encaminhada futuramente”, conta Maurício Mercadante, diretor do Programa Nacional de Áreas Protegidas do MMA. Ele explica que a insistência em criar a APA, neste momento, poderia dificultar as negociações que resultaram na criação das UCs. A região comporta uma intensa atividade econômica, centralizada no município de Novo Progresso, local onde ocorreram, no início deste ano, uma série de protestos de produtores rurais e madeireiros motivados por medidas de regularização fundiária do governo federal e que interromperam o tráfego de veículos na BR-163 por vários dias (saiba mais).

Mercadante explica também que as únicas áreas de proteção integral que deverão ser criadas nas próximas semanas pelo governo federal – os parques do Jamanxim e do Rio Novo – terão a função de corredores ecológicos. O primeiro, ao norte, vai estabelecer uma ligação do conjunto de áreas protegidas da Terra do Meio com as UCs propostas agora e o segundo, ao sul, fecha o polígono destas UCs, criando um mosaico próprio de áreas protegidas na margem oeste da rodovia BR-163. Todas as outras UCs anunciadas, a APA do Tapajós e as Florestas Nacionais (ou Estaduais), são de uso sustentável, ou seja, nelas são permitidas o manejo florestal e o extrativismo, por exemplo. Mercadante avisa que a proposta do governo federal, prevendo, inclusive, a existência de uma Reserva Garimpeira, respeita as atividades econômicas legalizadas já em curso na região.

Segundo estimativas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), pelo menos no ano passado, a criação de áreas protegidas e a interdição da região da BR-163 teriam contribuído para a diminuição do desmatamento na Amazônia. De acordo com os dados do Sistema de Detecção em Tempo Real (Deter) do Inpe divulgados no final de agosto, nas áreas abrangidas por UCs federais, os índices de desmates teriam caído 84%, para o período que vai do final de agosto de 2004 ao final de julho de 2005. O corte indiscriminado de árvores teria diminuído 90% na região da Estação Ecológica (Esec) da Terra do Meio e 91% na área interditada ao longo da rodovia Cuiabá-Santarém, para aquele mesmo período (para saber mais, clique aqui).

O governo Lula criou até agora mais de 8,913 milhões de hectares em UCs federais em todo o País, o equivalente a 21,6% do total. Em oito anos, segundo informações do MMA, a administração Fernando Henrique Cardoso teria criado mais de 9,455 milhões de hectares (24,1%). O ministério e o governo paraense ainda estão discutindo sob qual jurisdição, se federal ou estadual, ficará cada uma das novas áreas, fora a Floresta Estadual do Iriri. Após esta definição, o governo Lula pode chegar ao fim ostentando o título de campeão da criação de hectares protegidos por UCs.

Mosaico da Terra do Meio continua incompleto

A criação de novas UCs na Terra do Meio, localizada bem no centro do Pará, vem sendo aguardada com ansiedade pelo movimento socioambientalista. A região abriga áreas ainda bem conservadas e de grande biodiversidade. Apesar disso, lá também está localizada uma das frentes mais dinâmicas de desmatamento e de grilagem de terras da Amazônia. A região é palco de um intenso conflito fundiário que opõe grandes fazendeiros, grileiros e madeireiras irregulares, de um lado, e famílias de ribeirinhos e extrativistas, de outro (leia mais). Recentemente, a Justiça Federal interditou na região aquela que pode ser a maior área grilada do País, segundo denúncia do Ministério Público Federal(veja também). A intenção do governo ao criar UCs é justamente tentar impedir a ação dos comerciantes ilegais de terras e regularizar a situação das comunidades tradicionais locais.

No pacote de fevereiro, foram criados a Esec da Terra do Meio, a maior do planeta, com 3,3 milhões de hectares, e, contígua a ela, ao sul, o Parque Nacional da Serra do Pardo, com 445 mil hectares. Em novembro de 2004, já havia sido criada a Reserva Extrativista (Resex) Riozinho do Anfrísio, com cerca de 736 mil hectares (confira). As UCs formam um mosaico de áreas protegidas que foi proposto em um estudo realizado, em 2002, pelo ISA, sob encomenda do MMA. O trabalho revelou que a região, além de ser uma das menos conhecidas do País, é também uma das menos povoadas e apresenta cerca de 98% de seu território bem preservado. No total, até agora, foram criados na Terra do Meio cerca de 4,4 milhões de hectares em UCs.

O governo está finalizando o processo de criação de mais duas Resex no local: do Xingu, com 301 mil hectares, e do Iriri, com aproximadamente 396 mil hectares, ambas na altura do município de Altamira. Em junho, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o MMA, o governo paraense, o Ministério Público Estadual, a prefeitura de Altamira, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Fundação Viver Produzir e Preservar (FVPP) realizaram uma expedição ao longo do rio Iriri para cadastrar as famílias da região, emitir documentos civis para os moradores e realizar atendimentos de saúde. Em outubro, deve começar uma expedição semelhante na região da futura Resex do Xingu. Restaria ainda ser criada uma APA estadual, com 1,7 milhão de hectares, ao sul do Parque Nacional da Serra do Pardo.

“O fato de o governo ter criado essas áreas contribuiu imensamente para coibir ações de grilagem de terras e a exploração madeireira ilegal, mas ainda há muito a fazer no que se refere à consolidação das UCs já criadas e em fase de criação”, avalia Cristina Velásquez, assessora do Programa de Política e Direito Socioambiental (PPDS), do ISA. Ela lembra que é fundamental, além da instituição formal das UCs, um conjunto de políticas locais e regionais que possam garantir a sua efetiva

implantação e que incluam ações de esclarecimento da população local e operações de fiscalização. “Alguns fazendeiros têm se valido da demora na efetivação dessas ações para amedrontar e expulsar famílias, causando um clima de tensão e revolta”.

"O preço da terra já baixou e a ação de grileiros e madeireiros está diminuindo. Isto é cosequência da criação das UCs", concorda Tarcísio Feitosa, coordenador do projeto Terra do Meio, da CPT. Ele adverte, no entanto, que o governo precisa ouvir as comunidades locais antes de propôr qualquer coisa. "Não dá para criar novas áreas com base apenas em imagens de satélites. No caso da Floresta Estadual do Iriri, as famílias que moram lá são de agricultores. Eles queriam que fosse criado ali um tipo de UC mais adequado a esta realidade, como as Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS)". As Florestas Nacionais ou Estaduais formam uma categoria de UC que autoriza o manejo florestal, mas não a agricultura. Feitosa diz que as famílias que moram na região não têm nenhuma informação sobre a criação da Floresta do Iriri ou sobre as consultas públicas.

O grande mosaico do Xingu

Cristina Velásquez lembra ainda que a complementação do mosaico da Terra do Meio com os trechos de território restantes que ainda devem ser protegidos poderá significar a constituição de um outro grande mosaico contínuo de áreas protegidas, estendendo-se por quase toda a Bacia do rio Xingu, desde o Parque Indígena do Xingu, no norte do Mato Grosso, passando pelas Terras Indígenas (TIs) Capoto-Jarina, Menkragnoti e Kayapó, no sul do Pará, até o arco de TIs ao norte da Terra do Meio (Arara, Kararô, Koatinerno, Trincheira/Bacajá etc). “Estamos falando daquilo que pode vir a ser o maior mosaico de áreas protegidas do Brasil e talvez do mundo, com cerca de 26 milhões de hectares, identificados como de altíssima prioridade para conservação da biodiversidade”. O que significa um grande desafio para o governo em relação à gestão integrada de TIs e UCs. “Será preciso conciliar mecanismos de participação social e estratégias de proteção dessas áreas. Além disso, esse grande mosaico fortalece a idéia de que as TIs desempenham um papel fundamental na conservação da biodiversidade amazônica”.

O governo diz que está investindo na implantação das UCs. Em julho, o Ibama iniciou uma série de operações de fiscalização na Terra do Meio com o apoio da Polícia Federal e do Exército que devem estender-se até meados de outubro. Como resultado da ofensiva, já teriam sido lavrados R$ 50 milhões em multas por desmatamentos ilegais. Além disso, o fazendeiro José Dias Pereira foi preso acusado de desmatar uma área de mais de 6,8 mil hectares dentro da Esec e derrubar e queimar cerca de 2 milhões de árvores. Pereira, que continua detido em Santarém, a 710 quilômetros de Belém, foi multado em R$ 20 milhões. No ano passado, ele já havia sido autuado em R$ 3 milhões por desmatar e queimar 2 mil hectares de floresta. No total, em um ano, o produtor rural foi responsável pela destruição de uma área equivalente a 10 mil campos de futebol.

No último dia 12 de julho, foi criado na Assembléia Legislativa paraense um Grupo de Trabalho (GT) para combater a grilagem de terras com participação do governo estadual, do Ministério Público Estadual, da Seção do Pará da Ordem dos Advogados do Brasil, da Polícia Federal, da CPT, da Federação dos Trabalhadores da Indústria da Construção (Fetracompa) e de representantes das comunidades do interior paraense. O grupo deverá elaborar indicadores sobre a situação fundiária no Estado.

Kuarup este ano se realizou próximo a sítios arqueológicos

O Kuarup, homenagem tradicional aos mortos ilustres do Xingu, foi realizado este ano próximo a sítios arqueológicos cuja descoberta rendeu em 2003 um artigo em uma das principais revistas científicas do mundo, a americana Science. A aldeia de Ipatse, dos Kuikuro, que hoje tem pouco menos de 500 habitantes, fica próxima do local onde uma equipe liderada pelo americano Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, mapeou, nos últimos anos, vestígios da presença de uma população superior a 50 mil pessoas – hoje, em todo o parque o número de habitantes é de cerca de 5 mil.

Dois dos principais chefes de Ipatse, Afukaká Kuikuro e Urissapá Tabata Kuikuro, assinaram junto com a equipe do arqueólogo o artigo publicado na Science. "A gente fez questão de assinar junto. Nós escolhemos os dois chefes como forma de apontar para uma colaboração muito mais ampla da comunidade na pesquisa", explica o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele foi um dos integrantes da equipe que fez as descobertas.

Os vestígios descobertos indicam a existência no Alto Xingu, entre os séculos XIV e XVI, de aldeias estruturalmente similares às atuais, mas fortificadas com paliçadas e fossos, com até 500 mil m² de área e até 5 mil habitantes. Foram 19 aldeias descobertas com a ajuda dos Kuikuro, que consideram os vestígios como sendo de seus ancestrais, conforme conhecimento que lhes foi transmitido oralmente. As aldeias eram ligadas por caminhos de cerca de 5 quilômetros de extensão e até 50 metros de largura.

A ocupação humana na região do Xingu tem cerca de 1.000 anos, segundo esses estudos. O presidente da Fundação Nacional do Índio, Mércio Pereira Gomes, que também é antropólogo, lembra que a região sofreu grande redução populacional após a chegada dos colonizadores europeus. "Só agora estamos chegando ao mesmo nível de população que havia por aqui no fim do século XIX", diz ele.

Mércio estima que os atuais níveis de fecundidade, com crescimento populacional de cerca de 4% ao ano, levam a população a dobrar a cada 12 anos. Ele diz que a instalação de poços artesianos na aldeia, com fornecimento de água tratada, foi um dos principais fatores responsáveis pela queda da mortalidade infantil, que, calcula, chegava a 200 por mil nascidos vivos algumas décadas atrás.

Para saber mais sobre as pesquisas arqueológicas no Xingu, veja o livro "Os povos do Alto Xingu–história e cultura" , coletânea organizada por Bruna Franchetto e Michael Heckenberger.

Índios aproveitam Kuarup para pedir preservação das nascentes do Xingu

O Kuarup, homenagem tradicional aos mortos ilustres do Xingu, foi também palco este ano de articulações políticas em prol da preservação ambiental. A cerimônia que se encerrou ontem (26/08) aconteceu este ano na aldeia kuikuro de Ipatse. Um dos líderes kalapalo, Kurikaré, aproveitou a presença no evento do coordenador de Políticas Indígenas de Mato Grosso, José Seixas da Silva, para pedir que o governo do estado desautorize a construção das barragens Paranatinga I e II, no rio Culuene, cerca de 100 km ao sul do parque.

Segundo o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, os Kalapalo dizem ser possível demonstrar por vestígios arqueológicos que a área era ocupada por seus ancestrais e relacionam esse território às origens históricas do próprio Kuarup. Kurikaré considera a área "sagrada". O governo do estado alega que o projeto é particular e que não pode se envolver na questão. As obras estão atualmente paradas por ordem da Justiça Federal.

Fausto lembra que o problema de as nascentes não estarem dentro dos limites do parque remonta à sua demarcação, no início da década de 60. Ele conta que o projeto original, defendido pelos irmãos Villas Boas, por Darcy Ribeiro e pelo marechal Cândido Rondon junto a Getúlio Vargas, previa uma área quatro vezes maior para o parque. Por causa da redução, várias áreas que podem ser cientificamente comprovadas como indígenas e que ficam na região das nascentes, explica, ficaram de fora dos limite do parque. "Metade das terras kalapalo está fora, por exemplo", diz ele.

Segundo a antropóloga e sanitarista Cibele Verani, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz e uma das convidadas para o Kuarup, a devastação na região já se constitui num "enorme problema de saúde" no parque." Vinte anos atrás, nós tínhamos água limpa para beber em qualquer uma dessas aldeias. Hoje, a maioria das pessoas já não pode beber água de alguns rios. E, de lá pra cá, nós temos visto a poluição descer, inclusive fazendo escassear a pesca", conta ela.

O Parque Indígena do Xingu conta atualmente com cerca de 2,6 milhões de hectares e tem hoje quase 5 mil habitantes. Junto com a área Kayapó, com que faz divisa ao norte, constitui-se, segundo a Fundação Nacional do Ìndio, na maior área contínua de preservação da sociobiodiversidade brasileira, num total de quase 15 milhões de hectares.

O problema é que, ao sul, ficam fora do parque as nascentes dos rios formadores do Xingu, o principal da região, e considerado o maior "rio indígena" do Brasil, pela grande quantidade dessas comunidades às suas margens. Em volta das nascentes de rios como Culuene, Tanguro, Arraias, Ronuro, Batovi e Curisevo, têm se alastrado nos últimos anos as lavouras extensivas de soja e algodão.

Em algumas fazendas, como é visível de avião, as plantações não respeitam as matas ciliares, e as marcas de erosão se multiplicam. O resultado já perceptível pelos índios é o assoreamento. "Hoje, dá pra atravessar a pé o rio. Antigamente, era fundo", conta Fadiuvi, líder dos índios kalapalo. Ele conta também que as comunidades se incomodam com a presença crescente do turismo de pesca nos rios da região. O lixo deixado nas praias pelos turistas desce para dentro do parque na época das chuvas, e aparece na barriga dos peixes e tartarugas que servem de alimentação para os xinguanos – tradicionalmente, todos os povos do Alto Xingu evitam a carne de caça.

O que os índios temem, mas ainda não dispõem de estudos para comprovar, é a possível contaminação das águas por agrotóxicos. Segundo Carlos Fausto, o perigo é real, principalmente por causa desse hábito xinguano de comer peixe. "Nós sabemos que os efeitos da acumulação de alguns componentes, como os metais pesados, na carne do peixe, só são sentidos a longo prazo", alerta ele.

ndios do Xingu elegem vereador e vencem campeonato de futebol em cidade vizinha ao parque

Melhorias nas estradas da região do Parque Indígena do Xingu e a relação crescente dos índios com as cidades do entorno levaram público local recorde ao Kuarup que aconteceu esta semana na aldeia Ipatse, dos Kuikuro. A relação dos povos do Alto Xingu com esses municípios chegou a tal ponto que, no ano passado, os índios da região elegeram um vereador e foram campeões de futebol no campeonato municipal de Gaúcha do Norte (cerca de 50 km ao sul do parque, com 11 mil habitantes).

De Gaúcha, vieram cerca de 30 pessoas para o Kuarup, inclusive o prefeito da cidade, Edson Harold Wegner. A pedido de lideranças do Alto Xingu, a prefeitura da cidade cedeu máquinas recentemente para a recuperação das estradas dentro do parque. A benfeitoria foi intermediada por Tamaluí, índio Mehinaku que foi o vereador mais votado do município nas eleições do ano passado, com 183 votos, segundo ele. Eram tantos votos dos índios que até um outro vereador, branco, elegeu-se com o apoio de Tamaluí.

O vereador também é um dos organizadores do time de futebol dos Mehinaku, que, no ano passado, foi campeão na cidade, disputando a final contra um time dos brancos, o Juventude – este ano, dois times indígenas, o dos Mehinaku e o dos Kuikuro, chegaram às semifinais.

O discurso do vereador é conciliador. No futebol e na política. "Fui eleito para ver o lado do povo. Os caciques pedem e a gente corre atrás dos recursos lá fora", diz ele. "A gente entra no campo para jogar, para fazer gol, não para reclamar do juiz, para falar mal do bandeirinha ou do outro time."

Tamaluí explica que a reforma nas estradas ajuda as comunidades principalmente em caso de atendimentos de saúde. Ele diz que apenas as ligações entre as comunidades estão recebendo melhoria, para não facilitar a entrada de brancos no parque. Mas a prefeitura também reformou a estrada que liga a sede do município até a divisa com o Xingu, o que possibilitou, por exemplo, o público recorde de Gaúcha do Norte no Kuarup desta semana.

Tamaluí conta que, recentemente, conseguiu aprovar na Câmara Municipal uma medida em favor da preservação das matas ciliares dos formadores do rio Xingu. Ele acredita que é possível conseguir a colaboração dos agricultores do município na preservação e conta que a queda do preço da soja no mercado ajudou nesse sentido, porque está forçando os habitantes da região a pensarem em alternativas de renda. "Pra evitar o desmatamento, nós vamos trazer turista aqui pra Gaúcha. O rio está secando. Antes de acabar o rio, a gente tem que falar, não pode ficar quieto", diz.

Na quinta-feira à tarde, os visitantes de Gaúcha, com rosto pintado pelos anfitriões, faziam um churrasco, ao lado da aldeia kuikuro, enquanto esperavam o início da fase final do Kuarup. Ao lado dos turistas, Tamaluí, que diz ter se tornado vereador apenas pela vontade das lideranças, fala sobre as idéias que tem tentado levar aos brancos da cidade: "O rio não é só de uma pessoa. Não tem dono, é de todo mundo. Eu digo para eles: vamos cuidar do que é nosso. Vocês falam que o rio é do índio, mas é de todos nós."

Sebastião Salgado defende mobilização nacional pela ampliação do Parque do Xingu

O fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado foi presença ilustre no Kuarup que aconteceu esta semana na aldeia Ipatse, dos Kuikuro, no Alto Xingu. Mundialmente conhecido por imagens que divulgam lutas sociais e denunciam mazelas nos países em desenvolvimento, Salgado defende a criação de um movimento nacional em defesa do parque. Ele considera o Xingu uma referência cultural para o Brasil e a humanidade. "Eu espero que haja uma ação nacional contra essa corrida ao lucro, essa ganância do mundo da soja. É preciso tomar cuidado para não destruir essa referencia nacional", diz.

O fotógrafo conta que está no Xingu colhendo imagens para seu novo projeto, intitulado Gênesis. "Estou procurando referências do início da humanidade, culturas que representem o início do gênero humano como um todo. Com muito prazer, é o que acabei de encontrar aqui no alto Xingu", disse ele, em entrevista exclusiva à Agência Brasil.

O Gênesis foi lançado em 2003, tem duração prevista de oito anos e conta com apoio da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). No Alto Xingu há 40 dias, Salgado documenta não só o Kuarup, mas vários outros rituais dos xinguanos. Antes, o fotógrafo conta que esteve nas ilhas Galápagos, no oceano Pacífico, e também na Antártida. Do Xingu, irá para a Namíbia, na África, onde fotografará povos do deserto, como os Bushmen. Depois, passará pela Etiópia e o Sudão.

Economista, Salgado iniciou a carreira na Organização Internacional do Café, nos anos 70, na Europa. A partir desse trabalho, visitou países africanos e asiáticos em missões ligadas ao Banco Mundial e, ali, passou a fotografar o mundo em desenvolvimento. Hoje, é embaixador especial da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e membro honorário da Academia de Artes dos Estados Unidos. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Agência Brasil – Qual é a importância do Xingu para o Brasil?

Sebastião Salgado – O Xingu, principalmente para as pessoas da minha geração, que estão hoje no comando do país, em função da idade, foi muito importante. Quando éramos jovens, os primeiros contatos feitos aqui, na época do Getulio Vargas, as primeiras apresentações do Kuarup, tudo isso teve um simbolismo muito grande.

Aos poucos, isso aqui passou a ser uma referência nacional da tradição indígena, e hoje é essencial a preservação desses rituais e das culturas aqui do Alto Xingu. Tudo isso está muito ameaçado. A fronteira do parque hoje termina dentro de uma quantidade imensa de fazendas de soja. Hoje, as fontes do rio Culuene, que na realidade é a base do rio Xingu, estão ameaçadas pela construção de barragens. Uma barragem já começou e houve uma liminar, graças à ação dos indígenas aqui do Alto Xingu. A construção foi paralisada temporariamente.

Eu espero que haja uma ação nacional contra essa corrida ao lucro, essa ganância do mundo da soja. É preciso tomar cuidado para não destruir essa referência nacional. Há muito risco. É uma cultura aquática, eles não comem outra carne senão a do peixe, então eles dependem das águas dos rios, e tudo isso está realmente ameaçado.

A minha proposta seria a de se começar uma luta nacional para transformar toda essa região, incluindo todas as fontes do rio Xingu, em parte da extensão do parque. O governo poderia fazer uma indenização dessas fazendas de soja e replantar as matas na região.

ABr – Como o mundo enxerga hoje o Xingu?

Salgado – A história das tribos do Xingu é muito anterior à história do Brasil moderno. Existem escavações aqui na região em que se encontraram aldeias antiqüíssimas, com populações imensas, com uma verdadeira cultura. Isso deveria ser divulgado no Brasil, para a gente ter a honra de ter as nossas origens a partir um pouco dessa região. É uma região importante e poderosa dentro da cultura brasileira. Não pode só haver lucro e ganância, a cultura tem que ser preservada.

ABr – Qual o sr. pensa que deveria ser a atitude da população amazônica em relação a esse tipo de ameaça?

Salgado – A população realmente amazônica tem que ficar atenta à destruição da região. A região amazônica é forte, é potente, em função das águas, pela floresta que tem, pelas reservas indígenas. Essa penetração na região para a retirada da madeira, para o lucro rápido, não serve à população real da Amazônia, serve apenas às empresas que estão à cata do lucro. A ganância não serve à população real da região.

A verdadeira população da Amazônia tinha que lutar pela preservação, porque essas é que são suas riquezas reais. Se essas riquezas se forem, isso aqui passará a ser uma região devastada e pobre. Temos a maior reserva de água doce do planeta, a maior reserva de floresta tropical: essa possivelmente deve ser a maior riqueza do Brasil hoje.