Kuarup – Parte IV

É inevitável o paralelo com os rituais esportivos mortuários pan-helênicos, como o que Aquiles manda celebrar em memória de Pátroclo. De fato, no mundo do Xingu, apenas no Kuarup, acontecem os jogos pan-xinguanos. Existem, no Xingu, outros rituais intertribais, como o Javari, que opõe, em geral, duas tribos (às vezes, uma tribo menor pode se associar a uma maior, caso em que o ritual seria realizado por três tribos). O único ritual, porém, que reúne todas as tribos é o Kuarup, o que dele faz a própria expressão da identidade comum das tribos do Alto Xingu. E não é por acaso, que pretende restaurar a ordem perdida pela morte de uma pessoa que seja uma referência política e religiosa. Tal status, o mais alto, é adquirido por via de sua participação na vida intertribal. O kwarup afirma a comunidade formada por todos os xinguanos e sua origem comum, expressa na narrativa que descreve a tentativa de Mawutzinim de trazer os mortos à vida. O morto do Kuarup está associado aos índios desta narrativa primordial.

A tentativa de ressurreição e o pranto são sucedidos pela excitação das lutas e das trocas. A ações rituais relativas ao indivíduo morto são superadas pela vida coletiva, expressa na emoção alegre compartilhada. A idéia da convivência com os vivos sucedendo à morte é a própria idéia de continuidade da vida, de vitória sobre a morte, pela vida em comunidade, como aparece, também, no cristianismo. Está muito presente no Kuarup, a idéia da partilha da alegria, do jogo, do alimento comum e da troca de objetos; a idéia de que os seres humanos devem consolar-se e alegrar-se uns com os outros, após a perda de alguém. Há a súbita alternância entre tristeza e alegria. Assim, os índios do Xingu dizem que o Kuarup existe para “não sentir saudade”, no sentido de “não ter mais sofrimento com a perda”.

Na liturgia católica, um momento crucial é aquele que precede a comunhão, isto é, afirma-se a idéia de comunidade pela partilha do alimento, fazendo dos presentes "um só corpo e um só espírito", uma unidade. É a chegada do Espírito, que a todos reúne, agregando os indivíduos em um ser coletivo. Esta mesma idéia da comunidade dando continuidade à vida, mantendo vivo o Senhor "no meio de nós", está presente em vários trechos do Evangelho. As narrativas cristãs referentes às aparições após a morte, em que os apóstolos atestam a ressurreição de Cristo, são vividas pelos participantes de uma missa, como um ato adesão de fé ou de emoção compartilhada induzida pelo enredo da narrativa, como a própria aparição teria sido para os apóstolos. A tristeza é substituída pela certeza da continuidade da vida, reciprocamente confirmada pelos membros da assembléia. Há, também, a troca súbita da tristeza pela alegria. O conceito de ressurreição é estendido a todos os mortos, na medida em que Cristo é considerado o paradigma do humano.

O Kuarup é, em sua essência, uma forma análoga de superar a morte pela vida em comunidade. Pela emoção compartilhada que tem sua maior e solene referência na reunião pacífica e lúdica de todas as tribos da região.

Alguns símbolos comuns, “hierofanias” no conceito de Eliade, repetem-se na nossa e na cultura xinguana. Um deles é a idéia do vento trazendo o sobrenatural, como a suave brisa divina que visitou o profeta Elias e que levou ao farfalhar de folhas, que Piracumã e Aretana ouviram, antes da verem de seu pai. Já foi visto, também, o papel das carpideiras que, desde os tempos do Velho Testamento integram as tradições dos povos mediterrâneos.

A seqüência da narrativa xinguana do Kuarup é a seguinte: morte do indivíduo, seguida pela regeneração incompleta da matéria, seguida por sua ressurreição na comunidade. Na narrativa cristã a seqüência é: morte do indivíduo, regeneração completa da matéria em outro plano, seguida por sua ressurreição na comunidade. Os desenlaces são, portanto, semelhantes.

É corriqueira a visão de que os povos “primitivos” seriam “politeístas”, enquanto os povos “civilizados” seriam “monoteístas”. Ao contrário, a vida religiosa dos índios do Xingu é mais claramente “monoteísta” ou menos “politeista”, que muitas versões populares do cristianismo, pois além de Mawutzinim, os únicos outros seres religiosos importantes são, em uma posição muito secundária, seus descendentes, os gêmeos Sol e Lua, típicos das narrativas indígenas Sul-Americanas. Depois vêm os “mamaés”, espíritos potencialmente danosos associados a animais, plantas e objetos que, são outra coisa.

Mawutzinin, por ter criado a vida e a sociedade, e pelo fato de daí em diante não alterar mais o curso dos acontecimentos, é mais bem entendido como uma “causa final”, a mesma concepção de Deus de Aristóteles. Já os mamaés, embora invisíveis, são "sobrenaturais" apenas para alguns antropólogos, pois para os xinguanos são forças naturais, que feiticeiros perversos manipulam para causar a doença e a morte. Após o diagnóstico dos pajés com a identificação do mamaé causador de uma doença, é levado um ritual específico relativo àquele mamaé, com o presumível efeito de controle do mal que causou.

O contraste maior entre a religião dos xinguanos e o cristianismo vem da relação com Deus: embora Mawutzinin seja um ser antropomorfo, não é admitida a possibilidade de sua comunicação pessoal com os seres humanos. Enquanto os cristãos rezam, individual ou coletivamente, isto é, conversam com Deus, não há, no Xingu, a idéia de um Deus pessoal com a qual o indivíduo se comunica e que pode alterar o curso dos acontecimentos, de acordo com as preces que lhe são apresentadas. É, possivelmente, desta possibilidade de Deus alterar a história que, mesmo sem reconhecer tal relação, autores como Eliade, por exemplo, extraem a idéia de “tempo linear”. O texto litúrgico nos rituais xinguanos é padronizado e de atribuição exclusiva do par de cantadores, sem que nada se peça à divindade. Os demais índios dançam em conjunto, alguns tocam flautas, mas não há o correspondente à oração na forma de pedido e especialmente de pedido individual. A religiosidade acontece pela participação e partilha nas atividades do grupo.

Outra diferença importante é a idéia de pecado individual. Já foi visto que os xinguanos têm, como os cristãos, a idéia de imperfeição, de "queda", quando o kuarup é interrompido por transgressão da regra da abstinência sexual por um alguém durante o ritual. Esta marca do "pecado" coletivo é comum à narrativa xinguana e à narrativa do judaica do Genesis. Na visão xinguana, não existem, porém, as idéias de pecado e culpa individuais. A transgressão à norma, embora possa ocorrer, no caso de quebra de tabus e outras regras, é explicada por acidentes, pela inevitável fraqueza humana ou por engano. Não há a decisão consciente de fazer o mal, mesmo porque idéias como as de consciência individual e livre arbítrio são estranhas à filosofia xinguana. O grande ato perverso, a feitiçaria, sempre individualmente executada, de forma secreta, acontece (se de fato existir) pela transmissão hereditária da maldade, pois um feiticeiro tende a ser concebido como filho de outro feiticeiro. A punição à feitiçaria é social e jurídica e não da ordem divina. Deus não castiga nem amedronta os índios do Xingu.

Em que pesem tais diferenças, a análise acima reforça a tese da continuidade entre diferentes tradições religiosas. Não se sustenta, frente ao caso do Xingu, idéias como a de Eliade de que o homem religioso seria caracterizado por uma noção de tempo não linear, em contraste com o homem não religioso, que adotaria o tempo histórico linear, que distinguiria o sagrado do profano. O contraste entre o tempo linear e o não linear é uma questão de crença na capacidade de intervenção divina no curso dos acontecimentos e não um dado comprovado e

mpiricamente; reflete a abordagem de diferentes religiões e não da presença ou não da religião em uma dada sociedade. Não se sustentam, da mesma forma, idéias como a de Eliade ou de Durkhein, relativas à separação nítida entre o sagrado e o profano. Tudo tem uma relação e uma continuidade com o sagrado, o que nos aproxima de Frazer.

Ainda hoje, o sagrado está muito mais presente do que se pode supor. Por vezes, como no caso do catolicismo, o ano é mapeado em diferentes tempos, como o Advento, a Quaresma ou o "Tempo Comum". Também, o dia é dividido, como lembram os sinos da hora do "Angelo".

Não faz muito, a sociedade brasileira regia-se por um tempo sagrado que permeava toda a vida das pessoas, ditava-lhes o ritmo e condicionava-lhes a emoção: a Quaresma era para reflexão; na Semana Santa chorava-se a perda de uma pessoa muito querida, seguida de uma explosão de alegria com a Páscoa; no Advento, a espera do Natal. As crianças da infância do autor deste artigo, em uma rua da Gávea, bairro de classe média do Rio de Janeiro, paravam de brincar, todos os dias, para rezar a Ave Maria, na hora própria.

Hoje, quando a descristianização avança a passos rápidos, talvez estejamos vivendo um novo tempo sagrado, com novos ídolos e rituais característicos da idade da comunicação de massas. Talvez estejamos – como os xinguanos – tão submersos neste novo tempo sagrado, que nem sequer o percebemos como tal.

A percepção da unidade dos sentimentos e motivações humanas, como demonstra a cerimônia do Kuarup, pode nos levar a sentir esta silenciosa presença de uma dimensão sagrada, oculta, não percebida, entre nós.

Consultoria Legislativa, em 25 de Agosto de 2003.

George de Cerqueira Leite Zarur
Consultor Legislativo

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