Direitos humanos no Pará

ISA – Começa, nesta quarta-feira (29/10), em Belém (PA), o Tribunal Internacional para Julgar os Crimes do Latifúndio no Estado do Pará. Com o objetivo principal de chamar a atenção da opinião pública para a impunidade dos crimes contra os direitos humanos cometidos no estado, a audiência possui caráter simbólico e será presidida pelo vice-prefeito de São Paulo, o jurista Helio Bicudo.

No banco dos réus, além dos latifundiários, estão o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-governador paraense Almir Gabriel, ambos do PSDB e reeleitos para seus cargos em 1998. Entre as acusações que devem ser apresentadas ao júri estão as de violações ao direito à vida, à liberdade, ao trabalho e ao direito das futuras gerações. Mais especificamente, pretende-se tratar da omissão e impunidade em crimes relacionados a conflitos de terra no estado, grilagem e o uso de trabalho escravo, além de crimes ambientais como invasão de Terras Indígenas e Unidades de Conservação para a extração de madeira.

“O tribunal nos permitirá ter uma visão de como todos esses aspectos se articulam em conjunto. Vamos tentar analisar porque o sistema judiciário não funciona contra os latifundiários e denunciar isso à população”, diz o advogado Darcy Frigo, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap). “Acredito que a audiência vá apontar ao novo governo outro caminho para o modelo de desenvolvimento que vem sendo aplicado na região”. O Pará é um dos estados com o maior número de hectares de terras grilados no país. A Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Ocupação de Terras na Amazônia estimou, em 2001, serem 35 milhões de hectares em terras griladas, o equivalente a 28% da área total do estado.

A programação prevista para o Tribunal Internacional prevê a realização de duas mesas redondas na terça-feira (28/10) para discutir o problema da questão fundiária no Brasil e na América Latina, o lançamento do livro As viúvas da terra, do jornalista e editor da Revista Terra, Klester Cavalcanti, além de uma nova entrevista coletiva com a imprensa – a primeira foi realizada no dia 6/10, em São Paulo (veja a programação completa).


Um estado marcado por conflitos no campo

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) monitora os números de mortes devido a conflitos por terra desde 1980. Entre 1999 e 2002, anos que serão levados em conta no tribunal, ocorreram 134 assassinatos no país, uma média de 33,5 assassinatos por ano. Destes, 43 tiveram lugar no Pará, ou seja, 32%. De acordo com ONU, 90% das vítimas fatais nos casos de assassinatos no campo entre 1998 e 2002 haviam sido ameaçadas, não tendo havido investigação em nenhuma das ameaças reportadas a autoridades estaduais ou federais (a informação é da Relatoria Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias da ONU, 2003).

Longe de parar, esses crimes registraram um aumento expressivo neste primeiro ano de governo Lula e do governador Simão Jatene (PSDB). Quando houve a primeira entrevista coletiva para a criação do Tribunal, em São Paulo (6/10), a CPT contabilizava 56 mortes no país somente em 2003. No momento em que esta matéria é publicada, um novo relatório já aponta 60 assassinatos, o que se constitui no número mais alto em 13 anos e o dobro do número contabilizado no ano passado.

O número de mortes paraense, 35, superou as marcas de 1996, quando ocorreu o massacre de Eldorado dos Carajás (também no Pará), e só fica atrás do ano de 1987, quando 45 pessoas foram assassinadas ali. Vale ressaltar que os anos que registraram o maior número de mortes no campo brasileiro no histórico dos levantamentos da CPT foram 1985 e 1897, com 171 e 216 assassinatos, respectivamente.

Tal crescimento ocorre no mesmo ano em que a Pastoral aponta um aumento de 75% no número de ocupações de terras realizadas em 2003 e de 161% no número de acampamentos montados pelo Brasil, ambos comparados ao mesmo período do ano passado.


O triste retrato do trabalho escravo

Normalmente, o que motiva a averiguação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, do Ministério do Trabalho, são denúncias encaminhadas a organizações como a CPT, Organização dos Advogados do Brasil ou Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (MA). A informação, porém, costuma chegar por meio de algum trabalhador que conseguiu fugir, às vezes após mais de um ano confinado, e teve a sorte de não esbarrar com nenhum empregado da fazenda antes de encontrar alguma dessas entidades.

Nos últimos anos, o número de denúncias vêm aumentando e, até o dia 19/10, já se apontava 7.309 trabalhadores envolvidos em regime de trabalho escravo, número 30% maior do que no ano passado (5.637), segundo a CPT. Paralelo a isso, também aumentou o número de ações do Grupo Especial, que, até a primeira dezena de outubro, havia realizado 37 operações de resgate – o que já equivale ao maior número de ações em um ano desde que o grupo foi criado, em 1995.

Embora a mais impressionante das ações tenha acontecido na fazenda Roda Velha, na Bahia (de onde foram libertados 745 trabalhadores), metade abrangeu somente o Pará. O estado está à frente de todos os outros da federação, tanto no número de acusações quanto no de trabalhadores libertados, atingindo 3.850 denúncias (52,67% do total do país) e 1.578 resgates, dos 3.332 realizados, de acordo com o Ministério do Trabalho
(47,35%).


O tribunal e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Embora o Tribunal Para Julgar os Crimes Contra o Latifúndio seja político e sua sentença não possua a mesma efetividade de uma decisão da Justiça comum, dali podem sair acusações formais para serem encaminhadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). “A Comissão Interamericana dá segmento às acusações fazendo recomendações ao Brasil e, caso essas recomendações não sejam aceitas, ela vai à Corte Interamericana de Direitos Humanos [um órgão da Comissão] e a Assembléia Geral da OEA pode tomar sanções contra o país”, explica Helio Bicudo. “Mas a Corte só aceita julgar um caso quando considera estarem esgotados todos os recursos jurídicos nacionais”.

O jurista já esteve à frente de dois outros tribunais simbólicos de crimes contra os direitos humanos. Em 2001, presidiu a audiência que condenou a Polícia Militar do Paraná e o governador Jaime Lerner (PFL) como diretamente responsáveis por assassinatos, prisões arbitrárias e torturas ocorridos durante o mandato – Lerner não compareceu à sessão. Antes disso, em 1997, Bicudo dirigiu um tribunal sobre Corumbiara e Eldorado dos Carajás, que, acredita, influenciou o estabelecimento de um novo julgamento para as chacinas. “Os resultados do tribunal são levados a todas as autoridades do país, ministros, juízes, à Câmara, Supremo, Presidência da República,influenciando o seu trabalho futuro”, disse ele durante a entrevista coletiva realizada em São Paulo.

O Brasil aderiu à jurisdição da Corte Interamericana dos Direitos Humanos em dezembro de 1998, sendo que só podem ser julgados crimes ocorridos após esta data. Qualquer pessoa que queira fazer denúncias de violações ou maus-tratos pode encaminhá-las direto à Comissão Interamericana – atualmente, há cerca de cem processos em trâmite e nenhum deles resultou em uma condenação formal. Por enquanto, o único caso que chegou à Corte é o do Presídio de Urso Branco, em Porto Velho (RO): no começo de 2002, a penitenciária foi palco de 25 assassinatos, sendo motivo de um pedido de proteção dos internos por parte da Comissão. Ainda naquele ano, ocorreram outras 12 execuções e o caso foi encaminhado à Corte, que reafirmou a recomendação. Entretanto, de acordo com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Justiça, o caso ainda está em fase prévia ao julgamento.

ISA, Flávio Soares de Freitas, 26/10/2003.

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