Comitê admite apenas uso emergencial das águas da bacia do São Francisco

Secretário executivo do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, o professor Luiz Carlos da Silveira Fontes, da Universidade Federal do Sergipe, representa a sociedade civil no órgão. O comitê, formado, além da sociedade civil, pelas três esferas de governo, realizou recentemente uma série de consultas públicas relativas ao projeto de integração da bacia do rio.

Fontes relata que os cerca de 4 mil participantes desses eventos rejeitaram unanimemente o projeto apresentado pelo governo, embora admitam o uso das águas do São Francisco fora da área da bacia para o abastecimento emergencial em caso de seca. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Como foi a dinâmica da consulta do Comitê sobre o projeto?

O comitê estava concluindo o Plano de Recursos Hídricos da Bacia do rio São Francisco. O último ponto analisado e deliberado foi o uso externo das águas da bacia. Nesse momento, o governo federal, por meio dos ministérios do Meio Ambiente e da Integração Nacional, solicitou um prazo para uma possível negociação com o Comitê. Nós condicionamos que qualquer proposta que viesse a ser formulada deveria ser submetida às consultas públicas. Isso foi feito, as consultas públicas começaram a partir de 14 de outubro e se encerraram dia 24, nas cinco regiões que compõem a bacia.

Cerca de quatro mil pessoas compareceram às consultas. Elas foram unânimes em rejeitar por completo qualquer projeto de transposição para qualquer tipo de uso, inclusive, abastecimento humano e animal. Com esse resultado em mãos, o Plenário e o Comitê se reuniram em Salvador nos dias 26 e 27 de outubro, para deliberar os usos do São Francisco para outras bacias, as chamadas transposições.

Quais foram os motivos da recusa do projeto?

O Comitê entende que o objetivo do projeto é minorar o problema da sede nesses estados mais ao norte. Quando vimos o resultado das consultas, fizemos uma leitura de que, na realidade, o que estava sendo rejeitado não era essa possibilidade de atendimento a quem tem sede, a rejeição era ao projeto que estava sendo defendido pelo Ministério da Integração. As pessoas temem que a possibilidade de se abrir ao uso humano e animal a água seja utilizada como uma porta aberta para a concretização desse projeto que está aí.

Na reunião do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco em Salvador, entendemos que não poderíamos fechar as portas para uso humano e animal. Fizemos o seguinte: os usos das águas do São Francisco como insumos produtivos, para serem usadas em projetos de natureza econômica, se restringem única e exclusivamente ao desenvolvimento da bacia do São Francisco, ou seja, só pode ser usada a água dentro da bacia.

A única inserção aberta para usar as águas do São Francisco para outras bacias é no atendimento em situações de escassez comprovada de uso humano e animal. Isso, na prática, significa uma total rejeição ao projeto de transposição proposto pelo Ministério da Integração. Ele inviabiliza o projeto, particularmente no eixo norte, porque esse eixo pretende levar 70% da água para outros usos.

Também questionamos os valores apresentados nesse projeto já que os números não batem. Eles estão pedindo um valor muito acima do que seria necessário para complementar a água que já existe e atende essa população. Essa foi a forma que o Comitê encontrou para também se manifestar contrário a esse projeto. Isso ficou claro em todos os posicionamentos apresentados na reunião plenária.

E quanto à avaliação das outorgas?

O Plano de Recursos Hídricos da bacia, fruto de estudos realizados pela Agência Nacional de Água (ANA), mostra claramente que, hoje, temos outorgados na bacia 335 m³/s. O Comitê fixou a vazão máxima que pode ser retirada do rio em 360 m³/s. Entendemos que é preciso deixar no rio quantidade suficiente para manter a vida, a biodiversidade, os múltiplos usos. Isso significa, que no momento, só temos 25 m³/s para ser distribuído por todos os novos projetos que venham a surgir na bacia, nos próximos anos e no restante da vida do rio.

É uma situação muito crítica do ponto de vista de ordem legal, essas pessoas detêm o direito de tirar essa água. Então, o Comitê apontou a necessidade de se fazer uma revisão das outorgas para verificar a situação real, saber exatamente quanto está disponível para novos projetos. O que se sabe é que, desses 335 m³/s que já foram concedidos, só 100 m³/s está sendo usado. A revisão da outorga é necessária, e a prudência mostra que um projeto que pede 127 m³/s no máximo e 65 m³/s em média não pode ser atendido sem que antes se faça essa revisão das outorgas.

Manobras são feitas na tentativa de justificar o projeto. Procura-se vender a idéia que está sendo tirado apenas 1% ou até 3,5% da vazão existente no rio, quando, na verdade, o cálculo correto é saber quanto o projeto de transposição quer levar da água do rio. Quer dizer, pretende-se levar quase metade da água que o rio São Francisco dispõe para todo o uso dentro da bacia.

Qual a representatividade do Comitê e do Conselho?

De forma participativa, o Conselho é a última instância. O Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) é, em sua maioria, formado pelo governo federal e tem representantes dos estados e uma participação muito pequena da sociedade e dos usuários. De forma participativa, representando os interesses e pensamentos da bacia, que é um dado de planejamento definido na Lei das Águas, é realmente o Comitê. A lei 9.433 diz que compete ao Comitê aprovar o plano da bacia. Então, esse plano não tem que ser encaminhado ao CNRH.

Para que isso aconteça, tem que ser por um documento contra a decisão do Comitê. Outra forma de esse assunto ir para o CNRH é, como foi dada entrada hoje, por meio de regime de urgência, sob alegação de que o projeto afeta mais de um estado e que, portanto, seria de competência do Conselho.

O Conselho decidirá em última instância como o Comitê vai acompanhar a decisão?

O Comitê levou quase dois anos discutindo o projeto, analisando e submetendo a consultas públicas. Esse processo envolveu cerca de 15 mil pessoas em todas as rodadas de consulta. Dialogamos com o governo federal e não era correto nem ético que o Conselho, numa única manhã, decidisse sobre o projeto. Vamos tentar interferir junto aos conselheiros de forma que eles levem em consideração todos os argumentos que estão sendo apresentados pelo Comitê.

As decisões que foram tomadas refletem a vontade da bacia e esse é o entendimento que nós temos que ter com o futuro da bacia do rio São Francisco. Tanto com relação à sustentabilidade do rio, como ao direito de fazer uso desse patrimônio natural. Temos cerca de oito milhões de hectares irrigados na bacia do São Francisco, dos quais três milhões estariam em situação de pequenas distâncias do rio. Hoje, com a água disponível, nós não conseguiríamos irrigar nem um milhão. Abrir mão de uma fatia dessa para outra bacia teria quer ser um processo de ampla negociação.

Na avaliação, quais os impactos trazidos pelo projeto?

Para ele ser viabilizado, terá alterações na operação da barragem de Sobradinho. Elas vão repercutir no leste São Francisco e no baixo São Francisco, que são regiões altamente impactadas, que sofrem há anos as conseqüências da instalação dessas barragens. No lugar de uma revitalização, nós vamos ser submetidos a situações ainda mais graves que as que hoje nós já enfrentamos.

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