O Encantador de Gente

Orlando a todos encantava. Vi Orlando “brabo”, mas nunca o flagrei triste por mais de uns poucos instantes. O afeto que espontaneamente espalhava, explica sua capacidade de acalmar guerreiros pintados para a morte e de conquistar o apoio de políticos para causas humanitárias. Fascinava e o fazia para o bem.

Os índios do Xingu consideram Orlando um herói, com correto senso de justiça. Os Yawalapiti não se esquecem que Orlando convenceu os sobreviventes de sua tribo a reconstruir sua aldeia. Ainda guardo a imagem de uma única casinha habitada por uns poucos remanescentes Yawalapiti, que se transformou, hoje, em belíssima aldeia com mais ou menos 200 habitantes. Ameaçadas de desaparecimento, e revividas no Alto Xingu, foram também as etnias Maitipu, Nahukwa, Trumai e Txicão. No Médio Xingu, os Suiá, Juruna e Kayabi passaram por processo semelhante. Não tivessem sido os Panará, emergencialmente, levados para dentro do Parque do Xingu teriam desaparecido por completo, dada a decisão do governo militar de tomar sua terra.

Em 1961, primeira vez que estive no Xingu, a região era habitada por poucas centenas de índios, que ainda se recuperavam da devastadora epidemia de sarampo de 1954. Em 1971, quando retornei à área, para viver entre os índios Aweti – convencido que fui pelos Villas Bôas a estudar antropologia – encontrei alguns adultos e multidões de crianças correndo pelos ensolarados pátios das aldeias. Já se prenunciava a recuperação de um padrão demográfico que asseguraria a continuidade da vida social. Graças à proteção física, cultural e política oferecida pelo Parque do Xingu, hoje, sua população é de mais de quatro mil índios.

Os índios do Xingu estão plenamente conscientes do papel dos Villas Boas, mas muitos caraíbas (“brancos”) não sabem que a política indigenista brasileira do século XX foi marcada por Rondon e pelos Villas Bôas. Rondon, no começo do século XX, revolucionou o que era, mas ainda não se chamava, "política de direitos humanos". Convenceu o País, definitivamente, de que os índios tinham o direito à vida. Rondon enfrentou e derrotou, ideológica e politicamente, o evolucionismo dominante no seu tempo, que pregava a sobrevivência dos mais aptos e o extermínio dos mais fracos, como um imperativo biológico.

Os Villas Bôas, em íntimo contato com a melhor antropologia dos meados do século XX, pertenciam a um grupo intelectual e afetivo que reunia os antropólogos Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro e o médico Noel Nutels. Esse grupo foi responsável pela idéia de que a terra deveria ser preservada, como condição para garantia da vida dos índios. Mas não só: afirmou-se pela primeira vez, que a cultura indígena representava um valor humano essencial que, também, deveria ser protegido. Coube aos Villas Bôas participar da elaboração desses princípios e, ainda, de sua aplicação eficaz. Esta foi outra revolução na política de direitos humanos, no Brasil e no mundo, pois era reconhecido o valor da diversidade cultural. Esta era época em que os estados nacionais – dando seqüência a uma política iniciada com a revolução francesa – atuavam no sentido inverso, o da universalização de uma cultura hegemônica em seu território, que se confundiria com a "cultura nacional". A luta pelos direitos dos índios a uma cultura própria representou uma verdadeira ruptura intelectual e política, na qual os Villas Bôas tiveram um papel decisivo.

Orlando nos conta de um outro Brasil, com o qual ele mesmo, Cláudio, Leonardo, Álvaro, Noel, e tantos outros viviam em comunhão e ao qual dedicavam infindável lealdade. Suas memórias, seus “causos” e sua luta pelos índios são narrados com a elegante simplicidade com que falava e encantava os que tiveram suas vidas enriquecidas por sua amizade.

Que bom, Orlando, ouvi-lo de novo!

Por George de Cerqueira Leite Zarur

Mudanças climáticas causam aquecimento das águas e ameaçam cardumes

O aumento da temperatura de oceanos, rios e lagos associado a mudanças climáticas ameaça cada vez mais os peixes, segundo um novo relatório da Rede WWF. De acordo com o documento divulgado hoje, água mais quente significa menor reprodução, menos alimento e oxigênio para peixes de água doce e salgada. Peixes são uma fonte de proteína para 2,6 bilhões de pessoas no mundo, e a indústria pesqueira movimenta US$ 130 bilhões por ano, além de gerar 200 milhões de empregos.

O relatório, intitulado “Estamos lançando os peixes em água quente?”, indica que o aquecimento global é a causa do aumento de temperatura das águas e da alteração do regime de chuvas e dos padrões de correntes e nível do mar.

“As mudanças no clima vão ameaçar os estoques pesqueiros, que já sofrem com a sobrepesca, a, poluição dos ecossistemas aquáticos e a degradação de habitats” diz Antonio Oviedo, técnico do Programa Amazônia do WWF-Brasil. “Juntamente com os estoques pesqueiros, os ecossistemas aquáticos serão os primeiros a refletir os impactos das mudanças climáticas”.

No Brasil, em regiões como a Amazônia, o eventual aumento de temperatura poderia tornar as condições letais para os peixes. Muitas espécies já sofrem com temperaturas elevadas durante a parte mais quente do dia. Um aumento de 1 ou 2 graus pode causar a morte de cardumes inteiros. Com a água mais quente, a aceleração do metabolismo e a redução do oxigênio dissolvido afetariam diretamente os cardumes.

Temperaturas mais altas poderiam ainda provocar a migração de cardumes para águas mais frias. Com isso, espécies que se alimentam de peixes perderiam sua fonte de alimento. No Golfo do Alasca, em 1993, 120 mil aves, incapazes de alcançar os peixes, morreram de fome. Na Amazônia, aves como o mergulhão precisariam mergulhar mais fundo para capturar a presa, o que causaria impacto sobre a espécie.

A uma semana da décima-primeira Conferência das Partes da Convenção Sobre Mudanças Climáticas (COP11), que será realizada em Montreal entre os dias 28 de novembro e 9 de dezembro, o WWF-Brasil considera fundamental o apoio do governo brasileiro ao lançamento das negociações sobre o futuro do Protocolo de Quioto.

“À medida que os impactos das mudanças climáticas ganham força e freqüência, é obvia a necessidade de fortalecer o Protocolo de Quioto e aprovar reducões mais ambiciosos de gases poluidores” diz Giulio Volpi, Coordenador para Mudanças Climáticas da Rede WWF na América Latina.

A reunião é a primeira que reúne as partes do Protocolo, único acordo multilateral do mundo que estabelece metas de redução absoluta de emissão de dióxido de carbono e outros gases que causam as mudanças climáticas, desde que o tratado entrou em vigor, em fevereiro 2005. Neste ano serão iniciadas as negociações sobre o segundo período de compromisso, que começa em 2012.

“O Brasil deve apoiar o começo dessas negociações com uma data clara para o término dos trabalhos” diz Volpi. “O país também deve adotar e efetivamente implementar metas nacionais quantitativas de redução do desmatamento na Amazônia, e então reduzir a principal fonte de emissão de gás de efeito estufa no Brasil. Será um sinal claro ao mundo da seriedade com que o pais trata do assunto, e de como está pronto para  assumir seu papel” concluiu Volpi.

Seca na Amazônia: alguma coisa está fora da ordem

A Amazônia vive hoje a pior estiagem dos últimos 50 anos. Fotos estampadas na mídia mostram cenários desoladores na região que detém mais de 20% da água doce da Terra. São igarapés secos, barcos encalhados em bancos de areia de rios, mortandade de peixes, populações isoladas sem ter como se locomover e sem ter o que comer. São mais de 250 mil pessoas atingidas nos estados do Amazonas e do Pará.

Cautelosos, cientistas e pesquisadores falam na possibilidade de que o aumento do calor no planeta, provocado pela emissão de gases de efeito estufa tenha começado a potencializar eventos climáticos extremos, mas avaliam que ainda não é possível estabelecer uma relação direta com o aquecimento global.

Entretanto, as evidências vão se acumulando. Exemplos disso são as enchentes que têm ocorrido com freqüência ao redor do mundo como as que ocorreram na China recentemente, furacões como o Katrina, que devastou a região de Nova Orleans (EUA) em agosto passado, e o Wilma, que ameaça e destrói, neste momento, a região do Golfo do México.

No caso específico da seca que castiga a Amazônia, no entanto, a comunidade acadêmica concorda quanto a algumas ameaças que poderão se concretizar no futuro. Uma delas é a “savanização” da maior floresta tropical do mundo, um processo de perda de biodiversidade causada por alguns graus centígrados a mais no termômetro planetário e pela perda de umidade. Vegetação típica da África Central, a Savana é o outro nome utilizado para definir o Cerrado brasileiro, ambiente mais pobre em diversidade biológica que a floresta amazônica. Também são fortes as evidências de que o desmatamento e as queimadas podem potencializar os efeitos da seca na região.

A maior seca da Amazônia Ocidental em 102 anos

"No oeste da Amazônia, no Acre, por exemplo, pelo menos pelos registros mais confiáveis que temos, esta é a seca mais forte em 50 anos. Já o rio Negro na região de Manaus, esteve tão baixo apenas quatro ou cinco vezes em 102 anos de registros", avalia o pesquisador Carlos Artur Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ele explica que a causa principal do fenômeno seria um aumento entre um e dois graus das águas do Atlântico, ao norte da América do Sul, o que acarretaria uma grande concentração de chuvas nesta região. O resultado seria um movimento descendente do ar em regiões próximas, como a Amazônia, e, conseqüentemente, a diminuição da formação de nuvens.

Nobre mantém a cautela em relação a estabelecer neste momento algum tipo de relação direta entre o aquecimento global e a falta de chuvas na região, que usualmente detém os maiores índices pluviométricos e mais de 20% da água doce do planeta. Para o especialista, o fenômeno pode ser considerado uma “variabilidade natural” do clima. Mas admite que o desmatamento e as queimadas também podem contribuir parcialmente para a seca. E lembra que existem trabalhos científicos que indicam que a fumaça das queimadas também pode dificultar a formação das nuvens. "Essas são sugestões teóricas que ainda carecem de uma comprovação, mas também não podem ser eliminadas e têm de ser levadas em conta. [O desmatamento e as queimadas] não são o motivo principal, mas podem ser fatores que intensificaram, na minha opinião, um pouco, a seca".

Para o ecólogo Paulo Moutinho, coordenador de Pesquisa do Programa de Mudanças Climáticas da organização não-governamental Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), "no caso específico da Amazônia e dessa seca, você tem, sim, um agravante que é o desmatamento". Ele aponta que, a grande ameaça para a floresta é a conjunção entre fatores climáticos planetários e os problemas locais, como a derrubada indiscriminada das árvores.

Moutinho explica que quase 50% das chuvas que caem sobre a região vêm da chamada "evapotranspiração" da própria floresta, ou seja, do vapor de água expelido pelas árvores para a atmosfera. "Se você remove a floresta e substitui por pasto, por exemplo, essa capacidade de abastecer a atmosfera com o vapor que alimenta as nuvens é bastante reduzida. Portanto, em eventos globais como este, em uma Amazônia cada vez mais desmatada, estes eventos tornam-se ainda mais intensos".

Estudo do Ipam

O Ipam é uma das organizações responsáveis por um dos maiores estudos já realizados na Amazônia sobre mudanças climáticas. Seus pesquisadores cobriram com painéis um hectare de terra em uma área localizada em Santarém (PA), a 930 quilômetros de Belém, para limitar a oferta de água às árvores no período de chuvas mais acentuadas. Iniciado no ano 2000, o trabalho ainda não está terminado, mas conclusões preliminares permitem afirmar que a resistência da floresta tem limites e que as mudanças climáticas podem causar prejuízos irreversíveis.

Secas prolongadas podem iniciar um ciclo vicioso capaz de fragilizar a floresta até extremos perigosos. O desmatamento e as queimadas diminuem a evapotranspiração, que diminui a intensidade das chuvas, o que, por sua vez, torna a vegetação mais seca e suscetível às queimadas. Novos incêndios florestais produzem fumaça, que dificulta a formação de nuvens. Durante o processo, a taxa de mortalidade das grandes árvores, as principais responsáveis pela manutenção da umidade no interior da floresta, pode aumentar e, com isso, diminuir sua capacidade de regeneração.

A imensa maioria dos grandes e pequenos produtores rurais na Amazônia usa a queimada para preparar a terra. De acordo com o Ipam, quase a metade dos incêndios em florestas na Amazônia são involuntários, causados pela propagação acidental do fogo a partir de uma área já desmatada que estava sendo limpa.

Problema político

"O que aconteceu agora é mais ou menos o que está previsto pelos modelos climáticos. Daí a tentativa de associar esses episódios com as mudanças climáticas. Mas não há comprovação”, avalia Moutinho. Ele considera que, no mínimo, a seca que está ocorrendo na Amazônia é um indício bastante forte e um alerta para o problema do aquecimento global. O pesquisador lembra que, hoje, há 30% mais gás carbônico na atmosfera, o principal causador do efeito estufa, do que existia antes da Revolução Industrial, no século XVIII. Nos últimos cem anos, a temperatura média da Terra aumentou em 1 grau centígrado, o suficiente para causar várias alterações no clima.

Paulo Moutinho é um dos autores, com Márcio Santilli, do ISA, e com Carlos Nobre, do Inpe, de uma proposta para incluir metas de diminuição do desmatamento no Protocolo de Kyoto, o tratado internacional que entrou em vigor, neste ano, e traz metas para a diminuição das emissões de gases poluentes causadores do efeito estufa. Os responsáveis pela proposta consideram que, mesmo sem a comprovação científica de que a ação do homem já esteja influenciando nas mudanças climáticas, é preciso realizar imediatamente todos os esforços possíveis para evitá-las e mitigá-las.

O secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo, o físico José Goldemberg, uma das maiores autoridades brasileiras em questões energéticas e nucleares lembra que a Convenção do Clima, de 1992, declara em um de seus artigos que a ausência de uma certeza científica completa não deve impedir medidas de mitigação. "O que ocorre é que apesar da prudência de meus colegas cientistas em afirmar a existência de uma relação de causa e efeito entre o aquecimento global e o Katrina, as enchentes na China, a seca na Amazônia e por aí afora, não há a menor dúvida de que esse eventos climáticos extremos estão aumentando e são interpretados como as primeiras indicações do efeito estufa, as primeiras pegadas. Essas evidências estão se acumulando. Há um grande número de cientistas que acredita nessa correlação. Ela não pode ser demonstrada matematicamente ainda, mas vai nessa dire

ção" (veja entrevista com José Goldemberg abaixo).

Márcio Santilli cita o chamado princípio da precaução, consagrado em vários tratados ambientais internacionais, que afirma que quando não há certeza científica sobre a segurança para o meio ambiente e para os seres humanos de um produto ou de uma atividade, eles devem ser controlados ou mesmo proibidos. O representante do ISA considera que as mudanças climáticas precisam ser encaradas como um problema político e que é preciso uma mobilização planetária para tentar frear o ritmo das emissões de gases poluentes. "Não há prova, mas evidências de sobra, da correlação entre as coisas. E, em legítima defesa da espécie, devemos cobrar providências imediatas”, defende.

As conseqüências da seca

No dia 10 de outubro, o governo estadual decretou estado de calamidade pública em todas as 61 cidades do Amazonas. No Pará, onze municípios já decretaram estado de emergência e dois estão em situação de alerta. Por causa da diminuição do volume dos rios e da contaminação provocada pela morte de toneladas de cardumes de peixes, mais de 167 mil amazonenses e 92 mil paraenses estariam sendo afetados pela falta de água potável, comida e transporte. As informações são do Ministério da Integração Nacional e do governo do Pará. Mais de 25 mil pescadores, cerca de 20% do total, estão sem trabalho e 600 escolas já fecharam as portas no Amazonas.

Na quarta-feira, dia 19 de outubro, o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, sobrevoou as comunidades mais afetadas no Estado e anunciou a liberação pelo governo federal de R$ 30 milhões, 50 mil cestas básicas, 130 kits de medicamentos e 18 toneladas de hipoclorito de sódio para tratar a água. O governador amazonense Eduardo Braga (PPS) admitiu à imprensa local estar preocupado com o abastecimento de água para Manaus e disse que os efeitos da seca também deverão chegar ao Baixo Amazonas, sobretudo nos municípios de Maués, Boa Vista do Ramos, Nhamundá e Silves, atingindo mais 87,5 mil moradores nestes locais.

Contribuição do Brasil é reduzir desmatamento

Confira entrevista com o secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo, o físico José Goldemberg, uma das maiores autoridades brasileiras em questões energéticas e nucleares.

Como o senhor avalia a posição brasileira em relação às mudanças climáticas?

José Goldemberg – O Brasil, excluindo o que se passa na Amazônia neste momento, é um emissor pouco importante de gases de efeito estufa. Se fizermos uma lista dos maiores emissores de gases que provocam o efeito estufa, o Brasil ocupa a décima oitava posição. E as emissões de gases de efeito estufa são aproximadamente 1% do total mundial, apesar de a população brasileira representar 3% da população mundial. É um emissor pequeno. Isso foi refletido no Protocolo de Kyoto, em que países em desenvolvimento como Brasil, Índia e China foram excluídos das obrigações de reduzir as suas emissões. Assinado em 1997, o protocolo entrou em vigor em 2005, portanto com atraso de 8 anos, e há dúvida se os compromissos assumidos pelos países de primeiro mundo vão ser cumpridos. Ou seja a situação não é boa. E devido ao que está ocorrendo na Amazônia [desmatamento e queimadas], o Brasil passa para o 4º lugar na lista dos maiores emissores de gases de efeito estufa. Assim, a contribuição que o País pode dar para a redução dos problemas globais gerados pelo efeito estufa seria reduzir o desmatamento da Amazônia.

Que outras medidas podem ser tomadas?

José Goldemberg – O Estado de São Paulo, por exemplo, adotou duas medidas que não vão resolver o problema da Amazônia mas vão ajudar. A primeira é que em todas as concorrências públicas exige-se que se a madeira vier da Amazônia, deverá ser certificada. A segunda medida é a decisão de intensificar a fiscalização para combater a entrada de madeira clandestina no Estado por meio de ações da polícia. Mas são coisas pequenas comparadas com o que está acontecendo na Amazônia. Afora isso, o que se pode fazer é tentar melhorar a produção e o consumo de energia. Isso não é o dominante – porque o dominante é o que está ocorrendo na Amazônia –, mas está sendo feito em parte. Há um esforço de usar energia com mais eficiência porque à medida que isso ocorre é preciso construir menos usinas. Quando o sistema brasileiro era basicamente hidrelétrico, a construção das usinas não criava problemas para o efeito estufa. Acontece que agora, o sistema energético brasileiro de produção de eletricidade está se movimentando para fontes térmicas, que são o gás natural e o carvão, que contribuem para o efeito estufa porque emitem gases. Além disso, acho que se pode aumentar a cobertura florestal fora da Amazônia. Não resolve o problema, mas compensaria um pouco a perda da cobertura florestal lá.

O Brasil tem estratégias voltadas para as mudanças climáticas?

José Goldemberg – Não. A estratégia fundamental para isso tem de ser centrada em torno de ações na Amazônia. É a grande contribuinte. O resto do sistema é relativamente adequado. Ocorre que o governo federal jamais aceitou limitações nas emissões brasileiras, se escudando nas resoluções de Kyoto. Em dezembro, haverá a conferência internacional da ONU sobre mudança climática em Montreal, no Canadá, que vai rever o estado da aplicação do protocolo. A proposta que o governo de SP vai levar por meio de seus representantes, e eu serei um deles, será de que apesar de o Brasil não ter obrigações de reduzir suas emissões, que a conferência de Montreal tome a decisão de renegociar o Protocolo de Kyoto. De modo que sejam criados mecanismos pelos quais países como o Brasil, China e Índia adotem medidas para reduzir suas emissões de gases de efeito estufa. Mesmo que elas não sejam obrigatórias, os países adotariam métodos voluntários. Nossa proposta é de que os grandes bancos internacionais de fomento negociassem com estes países no sentido de adotarem metas voluntárias de redução. Então, essas instituições financeiras estabeleceriam programas de estímulo à realização de outras atividades que, no caso do Brasil, não provocassem o desmatamento da Amazônia. Na nossa proposta, o Brasil se disporia a fazer, voluntariamente, um grande esforço para reduzir o desmatamento, estabelecendo metas. Por exemplo, 10% no ano que vem, 20% no outro. E os bancos internacionais colocariam recursos para programas de desenvolvimento da Amazônia que não envolvessem o desmatamento, encorajando atividades mais industriais. Sob esse ponto de vista, acho que a Zona Franca de Manaus é algo que protege a Amazônia. Atividades industriais em Manaus atraem a força de trabalho para a cidade. De fato, o estado do Amazonas é o que menor índice de desmatamento registra entre todos os outros da região porque a população não está se deslocando para o interior para trabalhar em atividades como as que ocorrem em Mato Grosso e outros estados.

A quem cabe discutir o tema das mudanças climáticas no País?

O Brasil tem uma Comissão Interministerial de Mudanças Climáticas, que é secretariada pelo Ministério de Ciência e Tecnologia. E o que tem feito é apreciar projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Exerce um trabalho basicamente burocrático, que não é ruim, é bom, mas não propôs até agora políticas mais abrangentes.

Vida para todos: por isso fiz a greve de fome

Artigo originalmente publicado em 10/10/2005 no jornal Folha de São Paulo:

Foi em favor da vida que fiquei 11 dias em jejum e oração na tão querida capelinha de São Sebastião, em Cabrobó (PE). Motivou-me o compromisso, baseado no Evangelho, que tenho com os pobres, os do rio São Francisco em primeiro lugar, porque me são mais próximos, há mais de 30 anos, por opção de franciscano, sacerdote e bispo desde 1997. Compromisso com a vida do próprio rio São Francisco, tão degradado.

"Rio vivo, povo vivo. Rio morto, povo morto", gritamos milhares de vezes na peregrinação da nascente à foz do São Francisco, entre outubro de 1993 e outubro de 1994. Vida ameaçada pelo atual projeto de transposição. Mas meu compromisso é também com a vida de toda a população do semi-árido, principalmente a dos mais pobres, enganados com tal projeto.

Era essa minha intenção, bastante clara na declaração "que todos tenham vida", que fiz depois de longo debate, no acordo que me levou a suspender o jejum e que celebrei com o ministro Jaques Wagner, em nome e com o assentimento do presidente Lula: "permitir uma ampla discussão, participativa, verdadeira e transparente para que se chegue a um plano de desenvolvimento sustentável, baseado na convivência com todo o semi-árido, para o bem de sua população, priorizando os mais pobres. (…) que, através desse amplo debate, cheguemos a soluções que promovam a união e a concórdia para o povo brasileiro, especialmente para os irmãos e irmãs do semi-árido".

Portanto não basta dizer "não" à transposição. Não basta só a revitalização do rio. É preciso um plano de desenvolvimento verdadeiramente sustentável, que beneficie toda a população do semi-árido, tanto os que estão próximos do rio como os que estão longe dele. Um bom plano exige que se pense o semi-árido em toda sua extensão, do norte de Minas ao Ceará, do agreste pernambucano ao Maranhão, com toda sua diversidade geográfica, social e ambiental. São aproximadamente um milhão de km2 e 30 milhões de pessoas.

Os mais pobres estão nas cidades, mas formam quase toda população rural, espalhada por todo o território. São os que quase não têm terra, bebem águas podres de barreiros e de açudes, não têm a mínima infra-estrutura para enfrentar o clima do semi-árido e estariam fora do projeto de transposição. Pobres que estão não muito distantes do próprio rio São Francisco. Estes devem ser prioritários para o investimento público no semi-árido. Portanto é não só uma questão técnica mas ética.

A transposição se colocou como um "fantasma" que não permite uma visão ampla do semi-árido, pois absorve mentes, energias e recursos, como se abrangesse o todo e fosse a salvação para todos. Ela abrangeria apenas 5% do semi-árido brasileiro e beneficiaria 0,23% da população do Nordeste, segundo críticos.
Será, na verdade, mais problema para a população do campo e da cidade, uma vez que elevará o custo da água disponível e estabelecerá o mercado da água. Não vai redimir o Nordeste, como apregoam seus promotores. Tenta-se justificar, equivocadamente, um Nordeste setentrional separado do todo.
Pensando o semi-árido como um todo, poderemos conferir exatamente qual poderia ser ou não a utilidade e a necessidade de uma obra de tamanho gasto público, para um país endividado como o nosso, e de tanto risco social e ambiental.

É preciso pensar também o rio. Cortado por barragens, desmatado por carvoarias, poluído por esgotos e agrotóxicos, assoreado em toda a sua extensão, o São Francisco pede alento, um pouco de paz e um pouco de sossego para recuperar a vitalidade. Pede investimento. E suspensão dos projetos degradantes. Não há verdadeira revitalização se continuar a degradação dos solos, da vegetação e das águas da bacia, como nos cerrados do oeste baiano.

É preciso respeitar também sua população, que suporta o ônus de todos os projetos impostos à grande bacia. Aqui também mora gente que merece consideração e respeito.
Busquemos um plano que una novamente a nação nordestina. A transposição nos divide. A revitalização do São Francisco e do semi-árido nos une.

Quando iniciei o jejum, declarei que, "quando a razão se extingue, a loucura é o caminho". Fico feliz que meu gesto, suas razões e sua "loucura" tenham sido compreendidos e apoiados por tanta gente. Agradeço sinceramente. Tenho rezado por todos. Não me canso de louvar a Deus por tanta graça recebida.

"Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância" (João, 10, 10).

Fiz dessas palavras centrais do Evangelho meu lema de bispo. Só quis ser fiel a ela, com a radicalidade que a questão exigia. E voltarei ao jejum e a oração, com mais determinação ainda, se o acordo firmado, em confiança, com o governo não for cumprido. E sei que não estarei sozinho.

Dom frei Luiz Flávio Cappio, 59, é bispo diocesano da cidade de Barra (BA) e autor do livro "Rio São Francisco, uma caminhada entre vida e morte" (editora Vozes, 1995).

Governo do Mato Grosso do Sul quer liberar usinas perto do Pantanal

A seca que nos últimos três meses assola o Pantanal não é a única ameaça à fauna e flora da maior planície alagável do planeta. Um projeto de lei apresentado pelo governo do Mato Grosso do Sul, e que começou a tramitar na Assembléia Legislativa do estado na quinta-feira 8 de setembro, pretende permitir que usinas sucroalcooleiras se instalem na bacia do Alto Rio Paraguai. É a terceira tentativa do governador Zeca do PT de emplacar uma mudança na Lei Estadual nº 328, criada em 1982, que veta este tipo de empreendimento em toda a bacia do Paraguai.

O projeto visa liberar a construção de usinas de álcool e açúcar em 18 dos 33 municípios da região peri-pantaneira. Se aprovado, a cana poderia ser plantada em uma região serrana que divide de norte a sul o estado do Mato Grosso do Sul, delimitando as bacias dos rios Paraguai e Paraná. A planície pantaneira seria, portanto, preservada. Clique no mapa ao lado para ver, em detalhe, onde fica o Pantanal e a região proposta para abrigar as usinas.

O que preocupa organizações ambientalistas e políticos do estado contrários à mudança na lei, contudo, é a possibilidade de contaminação dos rios que correm do planalto para o Pantanal. Os defensores da manutenção da atual legislação afirmam que as usinas podem descarregar nos cursos dágua o vinhoto, um líquido tóxico e residual do processo de destilação do álcool da cana-de-açúcar. Em contato com a água, a substância absorve oxigênio e pode comprometer a sobrevivência das espécies aquáticas.

Alessandro Menezes, da ONG Ecologia e Ação (Ecoa), alerta também que as usinas podem despejar no solo e em rios outros poluentes, como a água cáustica utilizada na lavagem da cana e anticorrosivos e detergentes aplicados nos equipamentos das instalações. “Além disso a monocultura da cana pode alterar grandes áreas de Cerrado, comprometendo a biodiversidade e desfigurando o entorno do Pantanal, região considerada Patrimônio da Humanidade pela Unesco, que tem no turismo uma de suas principais atividades econômicas”, adverte.

O ambientalista ressalva ainda que nenhum estudo sobre a viabilidade de usinas na bacia do rio Paraguai foi apresentado à sociedade civil do Mato Grosso do Sul. “Sem estas análises não podemos dizer quais são os riscos e custos do projeto para a região”. Ele lembra que o Aquífero Guarani, uma das maiores reservas subterrâneas de água doce do mundo, localizado em grande parte na região, também poderia ter seus pontos de recarga contaminados.

O deputado estadual Pedro Kemp (PT), apesar de ser o líder do governo na Assembléia Legislativa do estado, diz estar convencido de que a instalação de usinas na região peri-pantaneira, mesmo com os cuidados e as atuais tecnologias disponíveis, pode resultar em acidentes que comprometem o equilíbrio ecológico de todo o Pantanal. “Queremos debater outra alternativas para a região norte do estado, como o cultivo de girassol e mamona para a produção de biodisel”, diz Kemp.

O deputado articula uma frente parlamentar para barrar a aprovação do projeto. Afirma que atualmente 14 dos 24 deputados estaduais do MS compõem o bloco contra as usinas, mas que o lobby do governo e dos prefeitos dos municípios contemplados no projeto de lei pode mudar o jogo. “Existem interesses políticos muito fortes por trás deste projeto, mas nossa intenção é pautar o debate do ponto de vista técnico”.

Alessandro Menezes, da Ecoa, diz que os municípios favoráveis à mudança na lei precisam avaliar corretamente os benefícios que estão sendo vinculados à chegada das usinas. “Os prefeitos acham que os caixas municipais vão engordar com a chegada das empresas, mas o que estão esquecendo é que, para atraí-las, o estado vai ter que oferecer altos incentivos fiscais”.

A Ecoa e outras entidades ambientalistas têm articulado uma campanha de mobilização no estado contra a aprovação do projeto e, desde o começo de setembro, recolheram cinco mil assinaturas contra a mudança na legislação. “Temos que esclarecer a população pois o governo garante que a cana vai ser a salvação do Mato Grosso do Sul”.

Exigências ambientais

O governo estadual afirma que o projeto pretende apenas gerar uma alternativa de desenvolvimento para os municípios da região do norte do estado. Sustenta também que os riscos ambientais serão evitados pela tecnologia disponível e pelo controle sobre o manejo da cana e seus resíduos.

O projeto exige uma série de quesitos do ponto de vista de viabilidade ambiental para a instalação das usinas. Entre outras coisas, que cada empreendimento seja objeto de Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), apresente ao governo um plano de manejo do vinhoto, seja construído em local com altitude a partir ou acima de 230 metros do nível do mar, fique a pelo menos mil metros de qualquer corpo dágua e a 3 quilômetros de núcleos urbanos.

O secretário estadual de Produção e Turismo, Dagoberto Nogueira Filho, principal defensor do projeto, frisa que, com os cuidados previsto na lei e com a atual tecnologia empregada em usinas, a cana-de-açúcar é a melhor opção para uma região cujas principais atividades econômicas são a pecuária e a soja. “Com o preço destas mercadorias caindo, nosso estado está padecendo de uma saída lucrativa”, diz o secretário. “Com este tipo de investimento, vejo o Brasil no futuro como uma espécie de Arábia Saudita de uma das principais fontes de energia renovável do mundo”. O secretário garante que as plantações de cana impedem o assoreamento de rios. “A cana é ambientalmente correta, entre outros motivos porque suas raízes seguram a terra e evitam o assoreamento dos rios”.

O próximo embate entre os defensores da atual lei e os pró-usinas será em audiência pública sobre o projeto, marcada para o dia 21 de setembro em Campo Grande, quando uma dezena de prefeitos favoráveis à mudança da legislação deve comparecer. Até lá, as entidades ambientalistas do estado esperam que o abaixo-assinado contra as usinas próximas ao Pantanal tenha recebido o apoio de pelo menos dez mil pessoas.

Manejo Florestal, grilagem de terras e presença do Estado de Direito na Amazônia

O Projeto de Lei n◦ 4776/2005, que dispõe sobre a concessão de florestas públicas para a exploração madeireira, vem provocando forte polêmica entre ambientalistas, especialistas em florestas e questões amazônicas, autoridades governamentais e membros do Congresso Nacional. Matéria extensa e complexa que dá gancho para interpretações variadas e suscita intermináveis discussões, focadas com maior vigor na Amazônia. Mas, é bom lembrar, que o PL incide também sobre outros biomas como a Mata Atlântica, o Cerrado e a Caatinga, nos quais o interesse se volta para as florestas plantadas e os subprodutos da exploração florestal.

O ISA publicou notícias e análises exaustivas sobre o texto do Projeto de Lei n° 4776/05, e não cabe retomá-las aqui de forma sistemática, para nos concentrarmos em três grandes questões subjacentes a essa discussão, que vão além da letra da lei proposta, como o manejo florestal, a grilagem e o Estado de Direito na Amazônia.

Algumas das críticas ao PL se fundamentam nas disposições que prevêem a concessão de áreas extensas às empresas privadas, para regimes de exploração de longo prazo, até 60 anos, considerados excessivos, ensejando receios de que impliquem na privatização de terras públicas e até na “internacionalização” da Amazônia (no caso de concessões a empresas estrangeiras). Essas críticas possivelmente decorrem de leituras do PL sob a ótica das políticas fundiárias formais, que se orientam para módulos agrários de menor extensão apropriados à produção agropecuária.

A este respeito, a lógica do manejo florestal, para contrapor-se efetivamente à mera extração florestal, responde satisfatoriamente a estas críticas, pois não se pode imaginar que a exploração florestal possa pretender alguma sustentabilidade ambiental atuando em pequenas extensões de terra, ou em curtos ciclos produtivos, pois não haveria possibilidade de regeneração ou reposição dos estoques explorados. Já os receios de que a posse duradoura de particulares sobre as terras possa gerar direitos de propriedade, ou resultar em alienação da soberania do estado, nos parecem exagerados, ou, de qualquer forma, deveriam remeter à discussão de outros dispositivos legais mais objetivamente relacionados, que não este PL.

Por outro lado, estamos longe de dispor de certezas científicas sobre a sustentabilidade do manejo de florestas nativas e heterogêneas. No mínimo, a exploração, mesmo seletiva, implica o empobrecimento da floresta, não apenas pela redução na população de espécies economicamente mais valorizadas, mas pelo impacto à própria biodiversidade, além da abertura de estradas e picadas que fragilizam a floresta e favorecem a sua fragmentação. Portanto, a concessão florestal não é uma panacéia de proteção florestal, mas apenas um mal menor, quando comparada à mera apropriação ilegal das terras e dos seus recursos que prevalece no modelo, até aqui predominante, de ocupação predatória da Amazônia.

Porém, o melhor, do ponto de vista da integridade da floresta, seria a sua preservação até que existam soluções técnicas e científicas que garantam a sustentabilidade da exploração florestal. Mas a sobrevivência das populações, ou dos empreendimentos que dependem dessa exploração estaria prejudicada, o que põe em xeque a viabilidade política desta opção. Aliás, o projeto conta com o apoio destas populações porque prevê o reconhecimento de suas áreas antes que sejam destinadas à concessão.

Além disso, a tese de que a valorização dos produtos da “floresta em pé” é a alternativa estratégica à sua substituição por áreas de pastagem ou cultivo também estaria comprometida pela eventual indisponibilidade, ainda que temporária, dos recursos madeireiros, que já têm algum valor reconhecido no mercado.

Portanto, assim como as críticas ao PL têm um fundo legítimo de desconfiança, no sentido de que o menos mal não deve ser festejado, parece lícito que o governo necessite de melhor instrumento legal para tentar gerir o bonde desgovernado da indústria madeireira. A intervenção do ISA e de outras ONGs nesse processo se deu nestes limites, reivindicando a discussão pública do PL antes do seu envio ao Congresso e sugerindo alterações que minimizam os riscos da lei, que foram acolhidas, até aqui, em grande medida.

Mas há outras questões de fundo relacionadas aos méritos e aos riscos do PL. Subjacente a ele há uma tática para tentar separar a máfia da grilagem da máfia da exploração predatória. No modelo atual elas andam juntas, pois a segunda depende da primeira para atestar, ainda que de forma precária ou criminosa, a disponibilidade de áreas “privadas” para a exploração florestal, o que deixa de ser necessário no regime de concessões. Para os grileiros ficam as penas da lei, para os madeireiros se abre uma alternativa legal. Parece-nos uma tática correta e indispensável para qualquer esforço que pretenda controlar a situação de fato.

No entanto, como poder concedente, o estado estará, sob o proposto marco legal, inteiramente comprometido com o que vier a acontecer nas áreas concedidas, para o bem ou para o mal. Da atual condição de omisso ou conivente, o poder público passará a protagonista. Não haverá como dissociar a responsabilidade do concessionário da do poder concedente. E isto põe em questão, mais do que nunca, a capacidade, ou incapacidade, do estado (governo federal) em atuar no chão. Por essa razão a participação da sociedade civil organizada na fiscalização dos mecanismos de segurança e dos recursos financeiros previstos no projeto é crucial.

Ao dispor sobre a criação do Serviço Florestal Brasileiro, o PL reconhece, implicitamente, a incapacidade crônica do IBAMA em gerir a política florestal, que, de resto, ficou extravagantemente demonstrada com a recente Operação Curupira, que desbaratou a “máfia verde” incrustada nos setores público e privado. Por um lado, parece correto o princípio de que não deve ser o mesmo agente público responsável por conceder e por fiscalizar as concessões. Por outro, a providência sugere que poderá haver mais capacidade para conceder, mas nada garante que haverá mais capacidade para fiscalizar. E se esta não houver, o poder concedente será objetivamente responsável por qualquer estrago que vier a ocorrer.

Assim, a questão decisiva sobre se a nova lei representará vantagem ou desvantagem comparativa em relação ao modelo atual está além da letra da lei e remete à questão da capacidade do estado em operar com um mínimo de eficiência nas situações concretas locais. Sem isto, o PL pode vir a ser mais uma lei a ser burlada. E para isto será necessário muito mais do que o PL: a superação do crônico divórcio entre a burocracia e a realidade, entre a postura cartorial do estado, que pode ser subvertida, e a sua eventual capacidade de estar presente e de operar efetivamente em regiões remotas.

Os céticos dizem que a questão do estado não tem solução (pelo menos à vista), e a experiência real do passado e do presente justificam o seu ceticismo. Por exemplo: os cargos de confiança a serem criados no âmbito do Serviço Florestal serão preenchidos por indicações da base política dos governos? Alguém garante que não?

O ISA entende que o PL (e a lei que dele deve decorrer) não constitui a sangria desatada ou o retrocesso que muitos apontam, assim como não garante, por si mesmo, uma política florestal saneada. Acatamos o intento do governo em dispor de um novo instrumento legal, mas nos resguardamos para cobrar o que nos parece mais essencial: a efetiva vontade política de se fazer presente no chão e de aplicar a legislação, o que é incompatível com o loteamento da administração segundo interesses políticos locais, freqüentemente associados aos interesses do modelo predatório.

Não basta preservar a floresta

A Amazônia abriga 20% de toda a água doce do planeta, ocupa 5% da área do globo terrestre, guarda 30% das florestas tropicais ainda vivas, mas é habitada por apenas 3,5 milésimos da população mundial. A grandiosidade da região é inversamente proporcional à sua fragilidade e vulnerabilidade perante a antiga ameaça da mão do homem. Mas a velha idéia de preservar a floresta intocada já está ultrapassada. O futuro é explorar o que ela pode oferecer enquanto está viva, em pé. O assunto foi apresentado detalhadamente no livro Brasil – Estado de Uma Nação, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a ser lançado neste mês, mais especificamente no capítulo "Amazônia: desenvolvimento e soberania", coordenado pela geógrafa Berta Becker.

Desafios – A senhora cita em suas palestras e livros que o dilema da Amazônia é a conservação com inclusão social. No que ele difere do conceito preservacionista dos anos 90?

É uma diferença conceitual, mas bastante importante. Preservação é diferente de conservação. Preservar é não tocar, é deixar como está. Conservação é utilizar sem destruir. E eu prefiro a conservação com inclusão, acredito piamente no uso não-destrutivo do patrimônio natural de modo a gerar trabalho e renda sem deteriorá-lo.

Desafios – E depois de tanta experiência na academia e em consultorias, a senhora acredita que é possível, operacionalmente, atingir o objetivo da conservação com inclusão?

Acredito. É possível, mas é difícil. São muitos os obstáculos, especialmente a questão fundiária, que no Brasil é estrutural e está ligada ao poder. As elites, historicamente, querem ter terras, e não estamos falando só do momento presente. Querem terras não somente para a produção organizada, mas porque significa poder, status, reserva de valor para o futuro. No Brasil e em boa parte da América Latina, o crescimento da produção agrícola foi baseado na expansão da fronteira, ou seja, o crescimento sempre foi feito a partir da exploração contínua de terras e recursos naturais, que eram percebidos como infinitos. O problema continua até hoje. E a questão fundiária está intimamente ligada a esse processo, em que a a terra dá status e poder, com o decorrente avanço da fronteira da produção agrícola, que rumou para a Amazônia nos últimos anos.

Desafios – Mas a modernização agrícola, pela lógica, não deveria ter diminuído o avanço da fronteira, pois atingiu mais produtividade num mesmo espaço de terra?

A modernização da agricultura propiciou, por um lado, maior produtividade nas lavouras, mas fez aumentar a velocidade na incorporação de novas áreas, apoiada também pelas tecnologias da informação. É a chamada cronopolítica, que começa a superar até a geopolítica. A iniciativa privada sabe muito bem se mover nessa nova velocidade, enquanto o Estado ainda se mexe no mesmo tempo pretérito. Portanto, acaba sendo criado na Amazônia todo um sistema logístico, de armazéns, cidades, redes de comunicação, que permite uma rapidez muito maior da expansão da fronteira. Isso é muito nítido por lá, basta chegar em qualquer cidade para perceber, pois são os empresários que dominam tudo, que instalam e comandam essa logística, e o Estado está sempre atrás.

Desafios – Além da questão histórica da terra, quais outros fatores dificultam a conservação com inclusão?

Sou adepta da tese de que a floresta amazônica só vai ser conservada quando lhe for atribuído um valor tal que a torne competitiva, com o valor que ela pode ser capaz de gerar enquanto está em pé. Seus produtos precisam assumir preços de commodities.

Desafios – A senhora se refere também aos produtos de extrativismo e à prestação de serviços ambientais, como os projetos de venda de crédito de carbono?

Também estou falando dos serviços, mas não tenho muita paixão por essa alternativa, porque não gera trabalho direto e renda para a população. E também porque implica a existência de um certo controle externo sobre nossas florestas, porque, se alguém paga por algum serviço, vai querer cobrar. Não me sinto maravilhada com a idéia de vender créditos de carbono, porque não leva dinheiro para a mão da população, que quer se desenvolver, crescer. Dou preferência ao aproveitamento das riquezas da floresta, pois já existem mercados a serem explorados e muitos outros a serem abertos. Há vários exemplos de campos comerciais que estão prontos para serem aproveitados. O ramo biomédico, por exemplo, embora seja difícil concorrer com os grandes laboratórios mundiais. O da nutracêutica, que é gigantesco, e para quem não sabe diz respeito aos alimentos naturais que geram bem-estar e saúde. E a dermocosmética, que algumas empresas brasileiras estão começando a explorar muito bem, inclusive internacionalmente. A alta tecnologia precisa entrar na Amazônia para permitir a descoberta de novos produtos e mercados.

Desafios – E a população está preparada para tal mudança?

A região amazônica, primeiramente, não pode ser encarada como algo único. É um caldeirão de diferenças sociais, é grande e diversa. Mas uma coisa é comum: o nível de aspirações se elevou enormemente para todos os atores sociais daquela região, desde empresários, agricultores e governos, até ribeirinhos, índios e pequenos produtores agrícolas. Todo mundo quer se desenvolver, é um caminho sem volta. Acabou a fase de ocupação pura e simples. É urgente a concepção de uma política de consolidação do desenvolvimento. Por isso eu acredito que estão preparados e muitos até mobilizados, em diferentes níveis, trabalhando em conjunto para melhorar aqui e ali.

Desafios – A senhora já afirmou que está na hora de o movimento ambientalista fazer uma auto-avaliação e rever alguns de seus princípios básicos. Quais seriam esses pontos a serem revistos?

O movimento ambientalista foi muito importante, fundamental, eu diria. Ele foi o responsável por barrar o avanço da fronteira agrícola e a depredação madeireira da região amazônica nos anos 90. Certamente atingiu os objetivos a que se propunha. Hoje, 30% do território amazônico está protegido, o equivalente à área da Espanha. Mas o mundo mudou e a Amazônia também, assim como os atores envolvidos. Agora eles precisam de trabalho, emprego, dinheiro, pois querem consumir produtos e serviços, desejam fazer parte da nação, como qualquer outro cidadão. Não dá mais para pensar que basta proteger áreas para solucionar os problemas, porque os conflitos aumentam e resultam em casos e mais casos de violência e morte. Não basta delimitar áreas protegidas para solucionar a questão da Amazônia. É necessário passar do preservacionismo para o conservacionismo.

Desafios – Essa tendência de mudança é mundial?

Ninguém fala disso abertamente, mas eu acredito que sim. Prova disso são os selos criados para atestar que os produtos vendidos no exterior foram produzidos de maneira a não agredir a natureza. Eles são um instrumento de trabalho nesse sentido. Ou seja, o capital natural que foi preservado na década de 90 pode agora ser utilizado. O que nos resta é encontrar as formas de explorar isso tudo da melhor forma possível.

Desafios – Ciência e inovação podem ajudar nesse processo?

Ciência, tecnologia e inovação são fundamentais. Primeiro porque patrimônio amazônico ainda não é conhecido e precisa ser considerado também em termos de América do Sul. Quando se pensa em geopolítica, é mais relevante atuar em bloco com outros países, trabalhar em conjunto, com mais presença internacional. A ciência é peça-chave para desenvolver tecnologias criativas para a implementação de um novo modelo de uso dos recursos naturais. Temos de encontrar saídas. Um bom exemplo de tecnologia a

plicada na Amazônia é a produção de biodiesel a partir do óleo de dendê, que é tem origem na Bahia mas está sendo plantado em áreas desmatadas da Amazônia. Não vejo o menor problema nisso, até acho ótimo, mas seria melhor ainda se fossem desenvolvidos mecanismos para criar biodiesel a partir de outros produtos da floresta que não precisassem de área plantada, mas sim de extração organizada. Para isso é necessária a presença forte do Estado, organizando essa pesquisa, para tornar realidade a produção.

Desafios – A ausência do Estado é nítida na região amazônica. Como ele poderia se fazer mais presente, uma vez que aquela é uma área tão vasta e de difícil acesso, com pouca densidade demográfica?

A população amazônica pede a presença do Estado. Depois de muito ouvir aqui e ali eu me arrisquei e codifiquei como é que o Estado pode se fazer presente na Amazônia sem estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Inicialmente é essencial definir com clareza as regras do jogo. Para quem é proprietário, para quem é beneficiário de assentamentos, para quem vai ser funcionário. E, à medida que ficarem claras as regras do jogo, elas têm de ser cumpridas e o Estado precisa trabalhar no monitoramento desse processo. Esse é o cerne da questão institucional na região. Mas atualmente existe uma grande balbúrdia, ninguém sabe direito quais são as regras, nem mesmo quem são os proprietários das terras.

Desafios – A senhora citou os assentamentos na região. Eles têm se mostrado ineficientes, com altas taxas de evasão. O que está acontecendo?

O modelo tradicional de assentamento rural, aquele em que cada família ganha um pedaço de terra para trabalhar isoladamente, não funciona na Amazônia. É obsoleto e não atende nem às necessidades ambientais nem ao povo da região. É uma atitude perversa pegar um monte de gente vulnerável, despreparada, e mandar para uma região sem estradas, sem infra-estrutura, sem informação, sem nada. É por essa razão que a evasão dos assentados ao redor de Santarém, no Pará, chegou a 70%. Não é porque exista má vontade ou preguiça dos assentados, mas sim porque não dá para produzir desse jeito, não dá para trabalhar no meio do nada, de forma isolada. Até agora o governo não deu o apoio necessário e não vai dar, simplesmente porque não é possível em termos operacionais. Imagine que estão planejados hoje 177 assentamentos ao longo de uma só estrada, a Cuiabá-Santarém. São milhares de pessoas, sendo impossível dar estrada, luz, assistência técnica, estrutura de comercialização para todo mundo. Os assentados ficarão lá alguns meses e depois irão embora, e quem ficará com as terras, como acontece há décadas, serão os grandes agricultores.

Desafios – E como resolver esse impasse?

Eu tenho uma proposta polêmica, mas que, na minha cabeça, depois de tudo o que eu já vi, faz todo o sentido. Proponho que sejam implementadas grandes fazendas de colonos, num esquema cooperativo. Elas precisam ser enormes, nas proporções amazônicas, para possibilitar produção em escala Em vez de colocar cada assentado num pedaço pequeno, em que ele só poderá utilizar 20% da área, conforme a legislação ambiental, será melhor partir para unidades maiores, exploradas cooperativamente. Numa grande propriedade, usar 20% da área permitirá uma grande produção, muitas vezes maior do que se fossem utilizados os pedacinhos de cada assentamento individual Além disso, esse modelo facilita a organização de infra-estrutura, ao criar um pequeno pólo populacional com luz, esgoto, escola e apoio técnico. Não se deve dar o título de propriedade da terra, pelo menos por um tempo, mas apenas garantir a concessão. A escolha das áreas deve ser precedida de um estudo de mercado, estabelecendo o que deverá ser produzido, dependendo da existência de condições de comercialização. Com pouco mais de uma dúzia dessas fazendas na região da mesma BR-163, as coisas estariam mais bem equacionadas, elas seriam capitalizadas em pouco tempo e assim se poderia enfrentar muito melhor o problema da invasão da pecuária e da soja sobre a floresta. Os assentados, trabalhando cooperativamente, poderiam ganhar algum dinheiro e o governo teria, assim, condição de dar apoio a uma dúzia de núcleos desse tipo, em vez de 200 assentamentos com milhares de pedaços de terra dispersos, que acabariam produzindo apenas para a subsistência. E, de quebra, a área protegida por lei não seria difusa em pequenos pedaços de cada assentado, continuaria sendo protegida, mas estaria interligada em apenas uma fazenda.

Desafios – As organizações não-governamentais (ONGs), tanto nacionais quanto internacionais, ocupam importante espaço no cenário ambiental brasileiro. Elas conseguem exercer forte influência no campo das políticas públicas e mobilizar a população. A senhora já questionou em seus livros o papel de tais organizações. Na sua opinião, o que deve ser observado no trato com elas?

Acredito que precisamos sempre prestar atenção ao papel dessas organizações no que diz respeito à geopolítica. Algumas entidades, muitas delas bastante fortes e representativas de interesses internacionais, fazem de certa forma um jogo anti-Estado. Elas pregam um pouco a tese de que o Estado diminuiu e que são elas que precisam ocupar o espaço deixado, como as salvadoras da pátria. Na verdade não foi nada disso. Os Estados não acabaram, estão aí definindo políticas e muitos deles têm braços que apóiam aberta ou secretamente as grandes ONGs e organismos multilaterais, para financiar políticas em outros países em desenvolvimento. As ONGs acabam sendo ferramentas de influência direta de alguns governos sobre outros. Também chamo a atenção para o fato de que muitas vezes são essas organizações e organismos que ditam a agenda de discussão. E quem define a agenda tem o poder, porque o que entra em discussão pode ser definido e o que não entra não tem nem chance. São as regras do jogo.

Desafios – E o Brasil tem conseguido influenciar mais a agenda ambiental de discussão?

Eu diria que o Brasil, durante muito tempo, teve uma atitude até infantil nesse ponto. As posições eram radicais: ou se era totalmente contra o imperialismo americano ou era uma posição de "venha e pegue tudo". Agora estamos aprendendo a negociar, o que é fundamental. Porque a cooperação técnica é importantíssima. Mas ela precisa ser negociada e discutida, e nós aprendemos muito sobre isso nos últimos tempos.

Desafios – Qual o seu sentimento sobre o futuro ambiental do Brasil, sobretudo da Amazônia? É otimista ou pessimista?

Eu gostaria de manter o meu histórico otimismo, especialmente porque tenho trabalhado bastante em consultorias para implementar novos modelos de uso da floresta amazônica. Mas às vezes me sinto um pouco pessimista. O importante é que há um grande debate sobre o assunto. O processo demanda debate, criatividade e repercussão, para que consigamos mostrar a quem decide o que é mais importante para aquela região. Eu amo muito aquilo tudo, amo muito o Brasil. Estou cheia de idéias, e isso é que é bom, é o que importa.

A morte anunciada da menina Caiuá

Publicado originalmente em 13/02/2005 este artigo de Marcelo Beraba, ombudsman do jornal Folha de São Paulo, descreve a situação de calamidade na qual se encontram as comunidades indígenas guaranis em Mato Grosso do Sul e a falta de atenção da imprensa para o assunto. Acompanhe o texto original:

A Folha perdeu nesta semana uma ótima oportunidade para destacar um drama que deveria provocar em todos inconformismo e indignação. Refiro-me à morte, em Dourados (Mato Grosso do Sul), de uma menina índia de três anos e 11 meses por desnutrição.

É inacreditável que no país dos obesos e do Fome Zero, num Estado enriquecido com a agricultura e a pecuária, uma criança morra de fome. E é inacreditável que este fato não provoque uma comoção nacional. Apenas a sucessão cotidiana e interminável de fatos escandalosos pode explicar a aparente letargia que volta e meia nos domina.

A Folha previu a morte da menina, mas não soube expô-la como devia.

O correspondente do jornal em Campo Grande, Hudson Corrêa, fez a primeira reportagem, publicada no dia 25 de janeiro. Seu texto informava que "27% das crianças indígenas de Mato Grosso do Sul de até cinco anos estão desnutridas e que em 2004 a mortalidade infantil chegou a 60 por mil nascidos vivos, quase o triplo do índice verificado entre a população brasileira". A Folha publicou a reportagem sem destaque.

No sábado, 5 de fevereiro, o jornal editou novo relato do mesmo jornalista, "Verba do Fome Zero para índio fica parada". O texto mostrava que o governo de Mato Grosso do Sul tinha deixado de aplicar cerca de R$ 1 milhão recebido do governo federal para o programa Fome Zero na área indígena. Estávamos, portanto, diante de uma grande tragédia: crianças desnutridas e sem amparo.

No dia 8, terça, morreu a menina Caiuá de três anos e 11 meses. O jornal publicou apenas uma nota perdida no meio do noticiário político. Era a segunda criança indígena anônima que morria neste ano, de acordo com o relato do correspondente. A outra, um bebê de oito meses, morrera em janeiro. Quinze crianças morreram em 2004.

O jornal tinha a obrigação de levar seus leitores para o meio da tragédia, de transformar os números em rostos e nomes, de abandonar a notícia fria da morte por um relato local, que mostrasse as condições de vida daquelas famílias que estão perdendo crianças por falta de alimento em pleno século 21.

O jornal tem agora o dever de iniciar uma investigação séria: para onde vão de fato os recursos empregados em tantos programas sociais dos governos federal, estadual e municipais? Se a Funai e os governos conhecem o problema há tanto tempo, se o problema está limitado a um grupo social e a uma região demarcada, por que não conseguiram impedir as mortes?

Este, infelizmente, é um grande caso para os jornais. O correspondente da Folha em Campo Grande teve sensibilidade para perceber a relevância do drama. A Redação em São Paulo não soube, no entanto, dar ao caso a dimensão que exigia.

Questionei o jornal e recebi o seguinte depoimento do editor de Brasil, Fernando de Barros e Silva: "Difícil dizer que o assunto foi desdenhado. Noticiamos na edição de quinta a morte da menina com razoável destaque. E na sexta voltamos a mostrar que o governo agiu tardiamente em relação ao problema, ampliando o Bolsa-Família já com o estrago consumado. Mostramos ainda que entidades ligadas aos índios vêem a medida como um "paliativo cínico" e criticam a ausência de medidas estruturais para ao menos equacionar o problema a médio prazo.

Isso posto, acho não só legítimo como razoável que o ombudsman veja no episódio uma oportunidade jornalística mal aproveitada. Não vejo assim, mas a discussão é relevante. São tantos e tão cotidianos os escândalos sociais no Brasil que acabamos todos, de alguma forma ou em algum momento, reagindo de forma apática ou anestesiada a muitas coisas intoleráveis".

Artigo reproduzido sob autorização do autor

Kalunga, uma remanescente de quilombo no sertão de Goiás

 

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O que significa calunga ou kalunga?

Calunga ou Kalunga é o nome atribuído a descendentes de escravos fugidos e libertos das minas de ouro do Brasil central que formaram comunidades auto-suficientes e viveram mais de duzentos anos isolados em regiões remotas, próximas à Chapada dos Veadeiros. São três comunidades, nos municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre de Goiás.

A mais populosa comunidade está situada no município de Cavalcante, com pouco mais de duas mil pessoas, distribuídas nas localidades do Engenho II, Prata, Vão do Moleque e Vão das Almas, sendo esta última a mais recente a se integrar no seio do município (cerca de trinta anos).

Mais recentemente alguns estudos têm indicado a presença de calungas também em regiões do Tocantins, nos arredores de Natividade e regiões isoladas do Jalapão.

Durante todo este período, houve miscigenações com índios, posseiros, fazendeiros brancos, e também forte influência de padres católicos, dando lugar a uma cultura hibridizada, característica que se manifesta na alimentação e no forte sincretismo religioso da mistura do catolicismo e de ritos africanos.

A expressão também significa “Tudo de bom” em dialeto banto africano.

O que são os quilombolas?

Quilombolas é designação comum aos escravos refugiados em quilombos, ou descendentes de escravos negros cujos antepassados no período da escravidão fugiram dos engenhos de cana-de-açúcar, fazendas e pequenas propriedades onde executavam diversos trabalhos braçais para formar pequenos vilarejos chamados de quilombos.

Mais de duas mil comunidades quilombolas espalhadas pelo território brasileiro mantêm-se vivas e atuantes, lutando pelo direito de propriedade de suas terras consagrado pela Constituição Federal desde 1988.

fonte: Wikipedia
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A história de Zé Merenda, levando alimentos em lombo de burro para as escolas nas comunidades Quilombolas

 

Kalunga, uma remanescente de quilombo no sertão de Goiás

Construída pela comunicação oral, a história do quilombo Kalunga ainda guarda segredos. Para entendê-la é preciso voltar no tempo, quando no Brasil não havia estradas, nem liberdade. “O meu avô era kalunga. Esse era kalunga mesmo, daqueles que vinha lá de cima, pra fugir dos patrão, não era?”, conta Dona Joana Torres, de 109 anos, moradora da comunidade Engenho II.

Eram meados de 1700 quando os Senhores Bartolomeu Bueno e João Leite da Silva iniciaram a colonização na região de Goiás (que foi sendo chamada de “minas dos Goyases” – nome de um povo indígena que vivia naquela região, onde havia muito ouro) provocando um processo de povoamento. As populações nativas entre outras, foram escravizadas, destruídas ou conseguiram fugir e procurar novo habitat.

Como precisava de mais mão de obra, os africanos foram levados para a província,  diretamente dos portos de Santos, Salvador e/ou Rio de Janeiro. Eles eram obrigados a “esquecer” suas origens: língua pátria, religião, identidade. Com jornadas de horas debaixo de sol quente, ainda eram vítimas das torturas, do tronco, do chicote, entre outros. E onde havia escravidão, também havia várias formas de resistência. A mais forte delas era a fuga individual ou coletiva, quando formavam os quilombos – o termo é banto e quer dizer acampamento guerreiro na floresta.

E foi assim que surgiu o quilombo no sertão goiano, que abriga hoje, cerca de 4.500 pessoas, na zona rural dos municípios de Teresina de Goiás, Cavalcante e Monte Alegre. Com o tempo, se acostumaram e se ambientaram com o sertão goiano. Venceram as dificuldades do caminho e as condições precárias que o ambiente ofereciam, descobrindo ao mesmo tempo que poderiam utilizar os recursos ali disponíveis para a reconstrução de suas vidas. Chamaram este lugar de Kalunga, o que na língua banto também significa lugar sagrado, de proteção.

Como vivem os calungas hoje?

Desde o período em que começaram a habitar aquelas serras, pouca coisa mudou. Com os seus ancestrais adquiriram os conhecimentos necessários para a sobrevivência naquelas terras. Isso é notado no cultivo das roças e na preservação da natureza. Atualmente, 93% do território kalunga ainda continua intacto.

O carro, por exemplo, não serve no meio daquelas serras. São poucas as estradas que dão acesso ao território, geralmente localizadas nas áreas periféricas. Dentro do Kalunga mesmo, só a pé ou no lombo de mula, uma vez que o cavalo não é ideal para a vida e trabalho dos kalungueiros.

O jeito é encarar as serra e os vãos e seguir a caminhada. É assim que eles fazem para ir as roças localizadas próximas ou muito distantes das moradias. E é a pé que eles levam as ferramentas e trazem a produção de suas roças. É comum ver mulheres, homens e crianças de várias idades andando quilômetros carregando “na cacunda” sacas com ramas e raízes de mandioca, sacas de arroz e frutas que são encontradas no caminho.

Quando localizam uma boa faixa de terra para o cultivo, não se preocupam muito com a distância, pois sabem que é lá que poderão cultivar alimentos para o sustento das famílias. “Com o tempo fica perto, a gente precisa não precisa? Então.”, afirma Sr. Dermetrino Santos, de Vão de Almas.

E assim está sendo feito há quase 300 anos, as distâncias são vencidas pela necessidade de sobrevivência. O frio na época de inverno é enfrentado com fogo e aconchego humano, o abastecimento de água é fornecido pelos rios que banham a região. É preciso ter braços fortes para carregar o líquido vital em latões ou baldes de até 50 litros cada.

Este trabalho pode ser o responsável pela dignidade daquele povo. Gente simples e muito humilde, mas com o coração maior que até o próprio território do Kalunga. Seguem adiante lutando e socorrendo quem precisar no meio do caminho. Eles não se importam com as dificuldades, mas não toleram a pobreza, que beira a todo o momento a vida deles. Mas a todo instante, esta possibilidade é afastada pela força e vontade de trabalho do povo sertanejo que vive no nordeste de Goiás.

A luz é um artigo de luxo dentro do Kalunga, mas hoje algumas famílias já podem contar com este benefício. Muitos outros kalungueiros nunca viram uma lâmpada acesa, a não ser muito longe de seus lares. Mas mesmo assim, eles se viraram ao longo dos anos com a candeia de cera de abelha aratim, que extraem do cerrado, ou de óleo, que buscam na cidade.

Sem luz, não podem ter nenhum eletrodoméstico que facilite suas vidas. Mas eles seguem adiante, com ou sem luz, pois sabem que seus braços e pernas podem suprir esta carência. “Que isso, luz pra modi quê? Aqui, nós tem muita coisa, óia a roça, que bonita. Dorme logo que o dia anoitece e levanta com os galo”, conta dona Lió, moradora do povoado Ema e considerada a mãe do lugar.

Viver no kalunga é coisa para gente forte, de bom coração, trabalhadora, e acima de tudo, para aqueles que tem fé em Deus e no seu trabalho.

Hoje, eles já estão ganhando espaço entre os governantes e é importante que outras pessoas também conheçam os kalunga, mas não como quem conhece algo “raro”, mas com o respeito que se merece. Porque quando o olhar é de respeito, a história agradece.

Sobre o trabalho

O trabalho de campo foi realizado entre os dias 27 de dezembro de 2003 e 16 de fevereiro de 2004 pelos jornalistas Aline Cântia e Leonardo Boloni, sob a orientação do professor e doutor em comunicação, Fernando Resende.

Era época de festas e de chuva. Um tempo em que as pessoas lidam muito com a terra, e portanto, há muito trabalho e esperança para o ano vindouro.É neste período que se dão os festejos do Natal e da Folia de Reis. A comunidade tem um ciclo de eventos baseado nas épocas de plantio e colheita. A agricultura decide muito de suas vidas e faz com que eles ajam de maneira diversa de acordo com o período do ano.

E assim, foi possível acompanhar um pouco do dia a dia desse povo acolhedor e cheio de historias. Durante os dias de convivência com vários núcleos familiares, conhecemos um pouco sobre o modo de agir e de pensar dos moradores, além de acompanhar várias atividades como a produção da farinha, o plantio das roças, a pescaria e a instalação de uma rede de energia elétrica que beneficia hoje, 72 famílias na comunidade do Engenho II, em Cavalcante.

A partir dessa experiência, a proposta é criar uma revista impressa temática – um instrumento para trocas de informação e experiências entre as comunidades remanescentes de quilombo do Brasil, que somam cerca de 700. A partir de uma cultura de comunicação entre os quilombolas, será possível criar pautas relevantes e comuns para a discussão e implementação de projetos de desenvolvimento local. Proporcionar um espaço onde as pessoas poderão refletir e valorizar a própria cultura, além de se informar sobre outros métodos de produção agrícolas, saúde, meio ambiente e cidadania, ao mesmo tempo que também divulgará as suas atividades.

Neste momento, após o trabalho de campo e uma constante reflexão sobre o jornalismo e sua interdisciplinaridade – onde se cruzam estudos como a história e a antropologia – estamos finalizando a produção da primeira edição e em busca de parcerias para a publicação deste m
aterial.

Autores

Leonardo Boloni é jornalista e repórter-fotográfico formado pela Uniube – Universidade de Uberaba, Minas Gerais. Além de trabalhos na mídia impressa diária, vem se dedicando à investigação jornalística cultural.

Entre suas principais reportagens, destacam-se os trabalhos com os índios Xavante do Mato Grosso; a população rural na região sul da Bahia, V edição dos Jogos dos Povos Indígenas, em Marapanim-PA; as festas populares, o Congado e Moçambique na cidade de Uberaba, o carimbó do Pará e o projeto Brasil Quilombola, com a comunidade Kalunga, no nordeste goiano.

Aline Cântia é jornalista, pós-graduada em Jornalismo e Práticas Contemporâneas pelo UNI-BH e mestranda em Estudos Literários pela UFMG. Com experiência de radiojornalismo, também vem estudando a interdisciplinaridade no jornalismo e a produção de grandes reportagens.

Entre seus trabalhos, encontram-se cursos e oficinas de rádio, matérias publicadas em jornais mineiros e nas Revista Super Interessante e Voz – Cidadania e Cultura, locução e produção jornalística na Rádio Itatiaia e mais recentemente, o trabalho no projeto Brasil Quilombola, com a Comunidade Kalunga.

Sem pudor, ética ou vergonha

OBS – Íntegra da matéria da Veja analiasada aparece abaixo do texto a seguir.

A edição da revista Veja de 28 de abril traz um belo exemplo do que irresponsabilidade, preconceito e interesses econômicos podem fazer com o jornalismo. O texto "Sem fé, lei ou rei" aborda o conflito entre índios cinta-largas e garimpeiros no interior de Rondônia. Talvez a única função positiva do artigo seja como exemplo nas escolas de comunicação do que não devemos fazer enquanto profissionais ou pessoas. O fato trágico, no entanto, é que ele circula na revista de maior número de leitores no país e serve apenas para alimentar rixas e distorcer a realidade. 

Em primeiro lugar, uma análise puramente jornalística e formal. A reportagem começa com uma citação de um cronista português do século XVI, Pero de Magalhães Gândavo. O europeu concluiu que os índios não possuíam os fonemas "f", "l" ou "r". Sem isso, eles não poderiam ter "fé, lei ou rei". Assim, estariam fadados à barbárie eterna. Este abre dita o tom do por vir, afinal, o mesmo tipo de dedução lógica e raciocínio foi aplicado pelo autor e editores. 

Qualquer veículo de comunicação que se preze tem a apuração como exigência mais preciosa para uma matéria de qualidade. No caso, parece que tudo isso foi jogado para fora. Não há, por exemplo, qualquer contextualização histórica sobre o assunto, que já ocupou as páginas dos jornais tantas vezes nos últimos anos. Não cita sequer que ano passado a Funai retirou cerca de 5 mil garimpeiros da terra indígena e que uma força-tarefa já havia sido criada para acompanhar o caso. Ou que vários organismos internacionais ligados aos direitos humanos também emitiram relatórios sobre a questão e visitaram a área. Outro erro grave: não há nenhuma resposta às críticas, o governo federal e a Funai não foram ouvidos e, muito menos, os índios.

É estranho que o repórter esteja escrevendo diretamente de Espigão dOeste e não traga nenhuma fonte local. O investimento da revista em mandar um repórter para lá não traz qualquer novidade além da informação que caciques têm casas na cidade e andam de carro importado, algo noticiado ao longo da semana pelas TVs. A aldeia, segundo o próprio texto, fica a 20km. Por estar tão perto e serem protagonistas no assunto, será que não seria uma boa ouvir os moradores dessa aldeia? E os garimpeiros? Também não tiveram vez. Nenhum pôde comentar a perda dos 29 companheiros brutalmente assassinados. Talvez porque eles tenham falado durante toda a semana para a imprensa nacional que esteve de olho na região. Além disso, em nenhum momento, os editores ou o repórter lembraram de ouvir algum especialista sobre o tema. O único erudito citado é nosso valioso Pero de Magalhães Gândavo e sua teoria. 

Por outro lado, vários políticos, que também falaram ao público durante esta última semana, voltaram a ter amplo espaço. A lista de aspas conta com governadores e deputados. E nós sabemos que muitas vezes nossos políticos podem ser sensíveis à atuação de grupos de pressão interessados em garimpo, extração de madeira ou a ampliação da fronteira agrícola. Mas o ministro da Justiça foi duramente condenado pela Veja ao dizer que "todo dia é dia de índio". Será isso tão condenável do chefe da pasta do governo responsável pela defesa da população indígena brasileira? Será isso um grande erro?

A falta de conhecimento e o preconceito são latentes na matéria. Um exemplo é o trecho: "Os índios são idolatrados. No Brasil do século XXI, todo dia é dia de índio. Os selvagens são vistos como defensores da floresta e guardiães de culturas e línguas que precisam ser preservadas a todo custo". Usar um termo como "selvagem" é digno dos cronistas portugueses que inspiram o texto. Mais triste, porém, é que um "civilizado" diga que os índios são idolatrados e apela para uma certa ironia velada sobre o real valor da cultura indígena. Uma vez, certo alemão franzino e baixinho, de bigode apertado, também questionou o valor de se preservar a cultura de certa minoria religiosa. Deu no que deu. E quanto à idolatria incondicional deste conceito de índio-pop que nos é apresentado? Aposto que o bodoque de Raoni compartilha paredes ao lado da Sandy no quarto das adolescentes. É assim?

Certa vez, entrevistei um xavante de Areões, terra indígena próxima a Água Boa, MT. Ele começou a contar-me que sua filha de 4 anos quase morreu no hospital local porque os médicos se negavam a tratar da pneumonia da menina. Aos prantos, ele terminou de me dizer que foi preciso apelar para todas as instâncias, causar uma confusão no hospital e contar com a boa alma de uma enfermeira. Ele vive na expectativa e reza para que sua filha não adoeça de novo. Na realidade, e o tom dessa matéria comprova isso, os índios sofrem talvez o mais forte preconceito racial no Brasil de hoje.

Outro argumento que deveria ter parado na pena dos cronistas portugueses de 500 anos atrás é: "Donos de 12% de todo território nacional, os cerca de 410 000 índios – fossem a Funai mais competente e o governo menos leniente – não deveriam ter problema algum além do tédio e da obesidade, que já está se transformando em doença nas tribos do Xingu".

O problema começa com a generalização. Os 410 000 índios brasileiros eram cerca de 100 mil em meados do século passado e retomaram seu processo de crescimento de forma inesperada. Nos anos de 1950 a mentalidade por trás da criação de terras indígenas era de se ter um espaço para deixar de lado aquele povo agonizante até desaparecem. A mesma lógica impera hoje quando questionamos porque dar milhares de hectares para este bando de gente que deve sumir mesmo.

As cerca de 200 etnias brasileiras têm realidades totalmente distintas. Algumas mal têm terra para sobreviver, vivem à beira do asfalto pedindo esmola ou sobrevivendo de artesanato. Mas os grandes "latifúndios indígenas" – como são descritos no texto – ocorrem principalmente em regiões como a Amazônia, onde existem estados como Roraima, que tem 300 mil habitantes e duas vezes a área do estado de São Paulo.

Mas nada melhor que os termos "obesidade e tédio" para nos elucidar mais sobre a intenção do texto. Com toda propriedade a matéria diz que ambos são "problemas de saúde no Xingu". Quem diz isso? A Funasa? Ou Pero de Magalhães Gândavo? A matéria não cita a fonte do dado. Além dos ecos do antigo discurso de que os índios são preguiçosos, nada poderia estar mais distante da realidade. Afinal, o que causa obesidade e tédio é ficar inventando besteiras e comendo hambúrguer na frente do computador.
 
Em suma, a revista Veja perdeu a oportunidade de aprofundar o tema dos conflitos indígenas, um assunto extremamente complexo e distante do pensamento minimalista e maniqueísta do texto. Talvez seu único mérito – que aparece afogado no meio de tantas distorções, exageros e irresponsabilidades – seja afirmar que o índio pode ter os mesmos defeitos como qualquer outro ser humano. Corrupção, chantagem, disputas de poder, traição, ganância etc., são fatos da vida de qualquer comunidade humana, seja ela indígena ou não. Infelizmente a imprensa brasileira é cada vez mais influenciada por esta nossa face vergonhosa e obscura. 

Fernando Zarur
Equipe Rota Brasil Oeste

Confira, abaixo, íntegra da matéria da revista Veja:

Veja – 28/04/2004

"Sem fé, lei ou rei"

A Funai fez das reservas indígenas áreas de preservação de sua própria burocracia e agora enfrenta acusações de corrupção.

Com o primitivismo característico do homem europeu culto e nobre do século XVI, o cronista português Pero de Magalhães Gândavo diagnosticou o que a seu ver seria a mácula original do caráter do

silvícola brasileiro. Depois de uma viagem ao Brasil em 1570, ele escreveu que os índios não podiam ser mesmo grande coisa, pois na língua deles "não se acham F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei". A confusão mental de Gândavo, que não via ordem ou justiça possíveis em uma sociedade estranha se ela não reproduzisse fielmente os vocábulos de seu próprio idioma, não difere muito da imagem que seus contemporâneos tiveram dos índios. Cinco séculos depois, essa imagem praticamente se inverteu. Os índios são idolatrados. No Brasil do século XXI, todo dia é dia de índio. Os selvagens são vistos como defensores da floresta e guardiães de culturas e línguas que precisam ser preservadas a todo custo.

Na semana passada, com a descoberta de um massacre cometido pelos índios cintas-largas contra 29 brasileiros que garimpavam diamantes em sua reserva no Estado de Rondônia, a idéia de que o índio pode ser tão cobiçoso, cruel e mesquinho como qualquer outro ser humano voltou a ser cogitada. Não sem certa resistência, em especial da imensa burocracia federal encarregada de tutelar os selvagens brasileiros, a Fundação Nacional do Índio (Funai). Mércio Pereira Gomes, presidente da Funai, e seu chefe, Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, justificaram o ataque dos índios como um ato de defesa de suas terras. Ambos lembraram que os garimpeiros estavam "cometendo um crime". Qual? Prospectar diamante em áreas indígenas. Pero de Magalhães Gândavo ficaria deveras contente em ouvir tais justificativas. Descobriria que estivera certo todos esses séculos. Se as maiores autoridades do país encarregadas da política indigenista reconhecem que os índios podem matar quem garimpa em suas terras então está claro que são mesmo uma gente sem fé, lei ou rei. Tanto os tutelados quanto seus protetores, diria um cronista moderno. Como outros ministérios e órgãos do governo do PT – os mais notórios deles aqueles ligados à reforma agrária -, a Funai vem ajudando a criar no país uma falsa "questão indígena". Donos de 12% de todo o território nacional, os cerca de 410.000 índios – fossem a Funai mais competente e o governo menos leniente – não deveriam ter problema algum além do tédio e da obesidade, que já está se transformando em doença nas tribos do Xingu.

O próprio PT deu o alerta sobre essa nova forma de atuação proativa da Funai. No ano passado, o governador petista de Mato Grosso do Sul, José Orcírio Miranda dos Santos, o Zeca do PT, pediu ao presidente a substituição dos três administradores da Funai no Estado. Segundo o governador, funcionários da Funai estavam transportando em seus carros índios terenas para uma área invadida com o objetivo de "aumentar o contingente de conflito". Agora outro governador, Ivo Cassol, de Rondônia, vê na atuação da Funai o catalisador de discórdia e tensão em seu Estado. O governador corroborou as acusações feitas por um bispo de Ji-Paraná, em Rondônia, dom Antonio Possamai, segundo quem a Funai faz vistas grossas ao uso por contrabandistas das pistas de pouso existentes na reserva dos índios cintas-largas. "A Funai sabe de tudo. Contrabandistas pousam seus aviões em pistas da própria Funai, que vê tudo e não fala. Até o acompanhamento da negociação das pedras de diamante é feito sob os olhos dos funcionários do órgão", acusa o governador Cassol. Uma comissão de deputados federais liderada por Alberto Fraga, do PTB do Distrito Federal, esteve na semana passada em Espigão dOeste, cidade distante 20 quilômetros da reserva onde ocorreu o massacre. Fraga reclamou do controle total que a Funai tem do acesso ao território indígena. Disse Fraga: "Nem a Polícia Federal pode entrar na reserva, e o que se ouve na cidade é que o comércio de diamantes é acertado com os caciques na presença do pessoal da Funai".

O governo já fora informado da tensão na área da Reserva Roosevelt e nada fez para esfriar a temperatura elevada devida à cobiça de índios, garimpeiros e, como sustentam o governador, o bispo e o deputado, dos funcionários da Funai. Os cintas-largas se confundem com a população não índia de Espigão dOeste. Os caciques vivem parte do tempo nas melhores casas da cidade, que eles compraram com o dinheiro do comércio de diamantes. As propriedades dos caciques nas cidades de Cacoal e Pimenta Bueno estão entre as mais caras. Em Cacoal, por exemplo, o cacique João Bravo tem uma mansão com cercas eletrificadas e vigilância eletrônica. Só usam carros do ano. Eles preferem as caminhonetes como a Hilux 3.0. A de um dos filhos do cacique Bravo é equipada com DVD-player. Muitos dos chefes índios apontados como suspeitos de comandar o massacre dos garimpeiros na semana passada já respondem a processo na Justiça Federal. Eles são acusados de formação de quadrilha, garimpagem ilegal e contrabando.

A força-tarefa comandada pela Funai, que cercou a reserva dos cintas-largas depois do massacre dos garimpeiros, atua de forma bastante peculiar. As estradas de acesso à reserva estão fechadas e os carros são minuciosamente revistados. Mas, por alguma razão misteriosa, as revistas visam apenas aos veículos que se dirigem à cidade de Espigão dOeste e à reserva. Os que saem não sofrem nenhum tipo de revista. No dia 19 de abril, índios paramentados de índios entraram livremente no Congresso Nacional, ocuparam as mesas dos parlamentares e fizeram discursos em saudação a eles próprios. Com as tribos indígenas prósperas, donas de latifúndios tão vastos e sob a tutela da Funai, fica a pergunta: quem vai cuidar da tribo dos garimpeiros? A cultura deles pode não ser tão atraente do ponto de vista antropológico, mas certamente atrairia a curiosidade de cronistas seiscentistas como Magalhães Gândavo. Eles gostavam de perdedores.

Leonardo Coutinho, de Espigão dOeste