Entrevista: Dr. Roberto Baruzzi – Saúde no Parque

Atendendo em todo o Parque Indígena Xingu, a Escola Paulista de Medicina (EPM) tem um importante papel na saúde dos índios da região. Trabalhando a quase trinta anos na reserva, atualmente a EPM, em convênio com o Ministério da Saúde, é responsável pelo distrito especial indígena do Xingu.

O médico Roberto Baruzzi foi o principal responsável pelo o início desta parceria, “O Orlando (Villas Bôas) já conhecia nosso currículo, havia muito interesse em nos encontrar, faltava só o momento propício”.

Grupo – Como começou o envolvimento da Escola Paulista de Medicina no Xingu?

Dr. Baruzzi – Nós já tínhamos iniciado um trabalho conjunto no vale do Araguaia, com médico, enfermeiros e alunos. Por acaso em 1964, eu vinha lá do Araguaia, no Sul do Pará, e o avião desviou da rota e posou no Parque para deixar um piloto da FAB na base do Jacaré. Aí eu desci no Posto Leonardo e veio o Orlando trazendo um doente. Eu fui ver este doente e fiquei interessado, né. Voltei pra São Paulo e fiquei querendo encontrar os Villas Bôas, eu percebi que era uma política diferente lá.

dentistasxingu.jpgEntão, acontece que eu li no Jornal que o Cláudio ia ser operado no (hospital) Santa Catarina e fui lá vê-lo. Mas eu titubiei um pouco, quando cheguei, ele tinha tido alta. Então, perdi a oportunidade. Depois li no Jornal que o Orlando ia fazer uma palestra e fui lá, eu já conhecia o Orlando mesmo. Mas quando entrei no corredor, cruzei com ele, nos cumprimentamos e ficou por isso mesmo.

Mantendo equipes permanentes dentro do Parque, a Escola Paulista de Medicina presta atendimento médico e odontológico aos índios do Xingu. Foto: Fábio Pili

Depois de uns tempos aconteceu do Orlando vir trazer um doente. Quem atendeu a porta foi um residente meu que havia estado comigo no Araguaia, então ele me chamou. Aí recebi um convite para fazer uma avaliação das condições de saúde do Parque. O Orlando já conhecia nosso currículo, tinha visto no jornal, já havia muito interesse em nos encontrar, faltava só o momento propício.

Então fomos, e vimos que era preciso uma ação regular de saúde. O Parque foi criado em 61 e estávamos em 65, precisávamos de um plano regular de vacinação, um plano regular de assistência e uma retaguarda hospitalar. Então, a cidade mais próxima do Xingu, na verdade, era São Paulo. Que todos os centros urbanos eram muitos distantes, mas São Paulo tinha a linha da FAB semanal. O avião saía daqui, o DC3, da época da Segunda Guerra, banco lateral, desconfortável, mas levava vinte pessoas para onde você queria.

Daí foi ótimo, muito bom porque o hospital daqui funcionou como retaguarda hospitalar. Então estabelecemos que iriam quatro equipes periódicas no ano. Cada aldeia, graças à ficha médica, começou a ter um plano de vacinação e chamávamos o índio pelo nome e, ao mesmo tempo, em caso de emergência, tínhamos a retaguarda hospitalar. Este foi o plano, íamos quatro vezes por ano: janeiro, abril, julho e setembro.

Grupo – De que maneira vocês faziam o trabalho de prevenção de epidemias na época?

Dr. Baruzzi – Em 1965 houve um grande risco de doenças que poderiam ser evitadas por vacinas. O sarampo era uma grande ameaça. Tinha havido, onze anos antes, em 54, uma epidemia que pegou 600 índios e morreram 114. Isto está descrito nos relatórios do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e tem até um livro do José Mauro Vasconcelos, o romancista, onde ele conta um episódio deste. Então, tínhamos esta memória muito triste. E a malária tinha uma incidência muito grande, era a principal causa no momento de mortalidade e doenças.

Por outro lado, encontramos também índios chamados de cultura pura. Que estavam ainda em relativo isolamento com a sociedade brasileira. O acesso ao Parque era só por avião e era controlado e os índios também não tinha facilidade pra sair. Isto me chamou a atenção também pela diversidade dos índios lá dentro. Na época eram 14 tribos, completamente diversas e pertencentes aos quatro maiores troncos linguísticos: Aruak, karibi, jê e o tupi.

Este foi o panorama que encontramos. Fomos muito bem aceitos porque havia o preparo também do Orlando e do Cláudio, explicando o que nós fomos fazer, o que era a vacina. Não houve grandes problemáticas.

Grupo – E como era a relação de vocês com os Pajés?

Dr. Baruzzi – Nós levamos conosco o compromisso de respeitar ao máximo a cultura dos índios e respeitar a prática dos Pajés. Quer dizer, desde o começo tivemos um bom relacionamento com eles. As coisas quase se complementam, eles têm o sistema deles e a lógica deles. O teoria das doenças deles obedece a outro mecanismo que não o nosso. Para nós é o agente, o vírus, para eles tem outras explicações. Mas os dois se congregam em benefício da saúde.

Muitas vezes chegávamos numa casa e o Pajé estava fazendo o trabalho dele, os cânticos, a fumaça, enfim, a pajelança. A gente assistia a pajelança e vice-versa, as vezes, chegávamos antes e o Pajé esperava. Às vezes a gente dizia, "essa criança tem que sair, tem que ir pra São Paulo" e o Pajé, "ah, não sei, vou pensar". Porque o Pajé faz toda aquela proteção, né. O trabalho do Pajé é tão interessante que, por exemplo: uma vez nós fizemos os curso do agente e saúde no Diauarum e levávamos os índios do Alto Xingu. Eles só iam depois que o Pajé os preparasse para que eles fossem, para enfrentar as entidades malígnas da parte norte.

Então, nós sempre tivemos um bom relacionamento com os Pajés. Como diz o Orlando: "O médico ajuda a curar, o Pajé leva a fama e cobra". E cobra em espécie (geralmente colar de caramujo) faz parte, né.

Grupo – E como você acha que o Pajé entendia a ação do médico?

Dr. Baruzzi – Eu acho o seguinte, eles viam mais um reforço, "chegou mais alguém para me ajudar na saúde". É muito difícil para nós dizermos que entendemos o mecanismo do Pajé e ele dizer que entende o nosso trabalho. São linhas diferentes de compreensão.

Grupo – Atualmente, a atuação da Escola Paulista de Medicina continua do mesmo jeito?

Dr. Baruzzi – No ano passado (1999) foram criados os distritos sanitários indígenas, que ficam ligados ao Ministério da Saúde, à Fundação Nacional da Saúde. Lá tem o setor de saúde indígena, esta é a nova política. São 34 distritos em todo o país, divididos por critérios geográficos, étnicos e epidemológicos. Para fazer estes distritos, o Ministério da Saúde faz um convênio com entidades que atuam na área, no caso do Xingu – como nós estamos há muito tempo lá – o convênio é com a Escola Paulista de Medicina. Somos responsáveis pelo distrito especial indígena do Xingu.

Nossa sede é Canarana, uma cidade de mais ou menos 26 anos, fundada por gaúchos. Lá tem hospital, temos casa, tem a casa do índio, funciona na nossa base. Ela fica no sul do Parque. Para chegar lá a gente pega um avião pequeno em Goiânia e tem gente que vai por terra mesmo.

Grupo – A Escola Paulista de Medicina mantém equipes permanentes dentro do Parque?

Dr. Baruzzi – Mantemos. Tem médico, enfermeira e hoje trabalhamos também com a formação do agente indígena de saúde. Isto é uma coisa dos últimos anos, a comunidade escolhe quem vai fazer os cursos. É um curso de capacitação e formação. Isto tudo é muito complexo. E o índio tem, por exemplo, a dificuldade da alfabetização, uns escrevem bem e outros não.

O curso aborda todas as condições de saúde, como acontece a doença… Quer dizer, a idéia

é preparar pessoas para fazer o primeiro atendimento, as coisas mais simples. Porque na aldeia ele está trabalhando com a sua comunidade e ele tem a facilidade de comunicar com o posto. Comunicando com o posto, o pessoal de saúde vai e busca o paciente. O posto comunica com Canarana onde tem o hospital e Canarana comunica com a gente.

Então, este curso está caminhando. Caminhando tão bem, que alguns já estão passando pra próxima fase: o auxiliar indígena de enfermagem. Conseguimos que o governo reconhecesse essa figura. Esta é uma coisa nova também no país.

Posto Leonardo Villas Bôas

Leonardo Villas Bôas, ao lado de Orlando, Cláudio e personalidades como Marechal Rondon, Noel Nutels e Darcy Ribeiro, foi um dos idealizadores do Parque Indígena do Xingu. Infelizmente, no mesmo ano da criação da reserva, 1961, Leonardo morreu de problemas cardíacos. Como homenagem ao seu trabalho desde o início da Expedição, o antigo posto indígena Capitão Vasconcelos, principal base do Alto Xingu, foi renomeado Leonardo Villas Bôas.

Localizado às margens do rio Tuatuari, o posto atende a mais de oito etnias, como Kuikuros, Kalapalos, Iaualapiti, Kamaiurá, Waurá e Aweti. O local foi escolhido ainda na época do avanço da Expedição Roncador Xingu, pois era necessária a construção de uma ampla pista de pouso, com capacidade para receber aviões maiores, melhorando a capacidade de abastecimento do grupo.

casapostoleonardo.jpgDepois de procurar em diversas praias, finalmente foi encontrado um local ligeiramente elevado e plano, com terreno firme, banhado por um rio de águas limpas e com peixe em abundância. O índio Parú, rezador e raizeiro dos iualapiti, acompanhou Orlando na busca e lembra que os expedicionários sofriam muito com falta de abastecimento, comendo apenas mel e peixe.

Antiga casa de Orlando (esq.) ao lado da casa onde morou Marina Villas Bôas. Os prédios continuam sendo utilizados como alojamento. Foto: Fernando Zarur

O trabalho de apenas cinco índios Iualapiti, conta Parú, conseguiu abrir e inaugurar em pouco tempo o campo de pouso. Utilizando aeronaves, especialmente do CAN (Correio Aéreo Nacional, serviço da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos), foi possível trazer material e pessoal, especialmente médicos e enfermeiros, para atender aos indígenas. A base rapidamente tornou-se um dos principais pontos de apoio à Expedição.

Foi no posto Leonardo que Orlando Villas Bôas conheceu sua mulher, Marina, trabalhou e morou até 1973. Após anos dentro do parque, o sertanista foi substituído por Olímpio Serra, administrador do Xingu por três anos. Olímpio foi responsável pela contratação dos primeiros índios como funcionários da recém-criada Fundação Nacional do Índio (Funai).

O posto continuou administrado por não-índios até 1981, quando assumiu a chefia do parque o indigenista Cláudio Romero. Ele foi um dos principais articulistas para, finalmente em 1982, transferir a administração do Xingu a um índio, o cacique Megaron, da tribo Kaiapó.

Uma das primeiras medidas de Megaron foi transferir para índios o controle dos postos indígenas e de vigilância do parque. Assim, a administração do Leonardo ficou a cargo do índio Piracumã, da tribo Iaualapiti, irmão do cacique Aritana e atual diretor do Parque Indígena do Xingu.

Atualmente chefiado por Kokoti Aweti, o posto continua sendo um dos pontos mais movimentados do Xingu. Além de receber visitantes e pesquisadores durante o ano inteiro, a unidade presta atendimento médico, odontológico e abastece toda a região do Alto Xingu.