Memória Afetiva dos Irmãos Villas-Boas e do Parque do Xingu

 

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Das férias adolescentes a pesquisas científicas entre os índios do Xingu, o rico relato pessoal de George Zarur nos revela o ponto de vista do garoto que virou antropólogo ao conviver com índios e personalidades que guiaram momentos históricos, como o esforço para a criação do Parque Indígena do Xingu.  A relação com os índios e as pessoas que construíram o indigenismo brasileiro influenciaram a vida do futuro cientista e professor.
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George Zarur

The Villas-Bôas brothers
Orlando, Leonardo e Cláudio Villas Boas (via Wikipedia)

A amizade com os irmãos Villas-Boas, que enriqueceu minha existência, teve início em 1960 no Governo de Juscelino Kubitsheck, quando meu tio Nelio de Cerqueira Gonçalves foi designado Presidente da Fundação Brasil Central (FBC). A FBC construía na Ilha de Bananal, um hotel de turismo com projeto de Oscar Niemeyer, um hospital e uma pista de pouso. Hoje, as ruínas dessas obras são “curiosidade histórica”.

Após a saída de Rondon do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), os irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Boas, revoltados com os desmandos e a corrupção que tomaram conta do órgão indigenista encontraram abrigo na Fundação Brasil Central. Envolvidos na “Operação Bananal”, Orlando e Cláudio ensinavam os brancos a respeitar os índios e a valorizar sua maneira de ser, enquanto Leonardo tocava as obras civis. Assisti a manobras de impressionantes balsas, sob o seu comando, capazes de carregar quatro caminhões caçamba “FNM”. Os comboios eram impulsionados rio acima por heróicos motorzinhos de popa suecos da Marca “Archimedes” de 12 hp, cuja importância ainda será reconhecida para a história da Amazônia. A ouvir o “tactactac” dos Archimedes, presenciei a chegada à Santa Isabel do Morro, na Ilha de Bananal, de regatões de origem árabe, os barcos carregados de uma inacreditável diversidade de quinquilharias. Traziam encomendas de índios e sertanejos, negócios celebrados há muitos meses. Alimentos cortes de chita, panelas e bules de alumínio, cobertores, redes, alpargatas, brinquedos, exemplares de revistas e muito plástico.

Parque do Xingú

Darcy Ribeiro
Darcy Ribeiro, importante força na criação do Parque Indígena do Xingú (via Wikipedia)

Em 1961, durante o governo Jânio Quadros, Orlando e seus amigos usaram, por vezes, nossa casa em Brasília para encontros que levariam à criação do Parque do Xingú. Reuniram-se com José Aparecido de Oliveira (Chefe de Gabinete de Jânio Quadros), Jorge Ferreira, (jornalista do “O Cruzeiro”) e Clemente Mariani.

No Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão, apresentados a Orlando por Noel Nutels, redigiram argumentos para justificar a criação do Parque. O segundo filho de Orlando, atuante em defesa dos interesses indígenas, foi batizado com o nome de Noel, em homenagem a Nutels. Em 1961 saiu, finalmente, o decreto de criação do Parque, embora enorme área fosse subtraída da proposta original dos Villas-Boas.

A fundação do Parque do Xingú representou importantíssimo movimento na história das relações entre índios e brancos no Brasil. Integrou a revolução cultural que inventou Brasília, a bossa nova, Grande Sertão: Veredas” e “Formação Econômica do Brasil”. Rondon, nos primórdios do século XX, assegurou aos índios o direito à vida, em um tempo em que o evolucionismo biológico preconizava sua extinção física.

Os Villas Boas iniciaram uma nova era em que a diversidade cultural e a garantia da terra eram consideradas pilares da política indigenista. Lutaram pela gradativa tomada de consciência pelos índios do valor de sua identidade e da importância de sua organização política. A resistente identidade dos índios do Xingú deve-se, em primeiro lugar, ao seu próprio discernimento, mas também, a longas conversas dos finais de tarde que líderes, como Megaron e Aretana, mantiveram com Cláudio e Orlando por anos a fio.

Irmãos Villas Boas

Orlando e Cláudio Villas Boas (J.P. arquivo da família Villas Bôas, Wikimedia)
Orlando e Cláudio Villas Boas (J.P. arquivo da família Villas Bôas, Wikimedia)

Em 1961, antes de minhas férias de Julho no Xingu, Orlando acompanhou-me, a pedido de minha mãe, a uma das poucas lojas de Brasília, para comprar meu presente de aniversário de quinze anos. Não tirou os olhos de uma carabina calibre 22 fabricada na então Tchecoeslováquia, popularmente conhecida por “CZ”. O nome tcheco era tão complicado que a abreviatura bastava para a identificação. Desejava outra coisa, uma bicicleta a motor, como uma “Mobilete” (Caloi) ou “Monareta” (Monark), mas Orlando convenceu-me com o argumento de que “aquela era a arma dos índios e dos sertanistas”. Tenho-a até hoje e a trato como uma jóia.

Orlando era um comunicador espontâneo, uma fonte perene de afeto, o que o fazia capaz de tranqüilizar índios pintados para a guerra ou de conseguir o apoio dos políticos de Brasília. Fascinavam sua inteligência e vivacidade. Cláudio era quieto e estudioso. Podia discorrer por longos períodos sobre Filosofia do Direito, capacidade que aliava à de exímio atirador. Ficava por horas, sem errar uma única vez, a atirar de revolver em folhinhas vistas com dificuldade a boiar a mais de trinta metros na correnteza do Xingu. Leonardo faleceu em 1963 e o antigo Posto Indígena “Capitão Vasconcelos” passou a se chamar “Posto Leonardo Villas-Boas”.

Xingu: guerra, aventura e antropologia

Continuei a visitar o Xingu. Em 1963, uma caminhada de cerca de seis quilômetros por estreita trilha na mata separava o Posto Leonardo da Aldeia Kamaiurá. Hoje, a estrada que a substituiu não chega a ser uma rodovia, mas permite o trânsito de caminhões. Em companhia de dois estudantes da Universidade de Brasília, cheguei à aldeia Kamaiurá, cuja população preparava-se para abandoná-la devido a um iminente ataque dos índios Txicão, denominados Ikpeng, nos tempos de hoje. Retornamos correndo para o Posto Indígena, quando fomos ultrapassados por Kamaiurás em fuga, muito mais rápidos. Encontramos ameaçadoras flechas txicão a sinalizar árvores da trilha, segundo o clássico artifício de guerra psicológica.

Descalço, fui picado na sola do pé por um animal que não consegui ver, mas, é claro, pensei imediatamente em alguma cobra venenosa. Minha perna ficaria em breve totalmente imobilizada. Cheguei ao Posto Leonardo pulando em um só pé, abandonado por meus colegas que preferiram sua segurança à companhia de um saci pererê improvisado. Fui examinado por Paulo Vanzolini e pelo médico e antropólogo físico Pedro Lima. O diagnóstico foi “picada de Formigão”, a célebre formiga Tocandira. Paulo Vanzolini cantarolava músicas caipiras e ensaiava as letras de um futuro grande sucesso. No dia seguinte já voltava a andar normalmente.

Devido à ameaça de ataque iminente, o Posto Leonardo se transformara em campo de refugiados que buscavam a proteção dos “caraíbas” (termo que designava os “brancos”). Centenas de pessoas, quase a totalidade dos índios do Xingú, passaram a noite acordadas, em estado de pânico coletivo. Era tanta gente aglomerada ao redor das casas do Posto, que não havia espaço para se deitar. Além do que, dormir não seria possível, dada a conversa gritada, nervosa, dos presentes. Muitos passaram sede, com medo de descer os quinze metros que separavam o Posto do Ribeirão Tuwatuwari. Muitos passaram fome, pois, na fuga apressada tudo tinham deixado na aldeia e os mantimentos do posto rapidamente se esgotaram.

Após três dias, constatou-se que os Txicão tinham se distanciado e os refugiados voltaram para suas aldeias. O medo tinha suas razões, pois os Txicão haviam atacado recentemente a Aldeia Waurá, de onde seqüestraram duas mulheres. Rondaram diversas outras aldeias.

Em 1964, estudante do ensino médio, acompanhei ao campo, o antropólogo Eduardo Galvão. Galvão, hoje quase esquecido, foi o primeiro brasileiro a conquistar um Ph. D em antropologia no Exterior, na Columbia University, com Charles Wagley, que mais tarde seria também meu orientador. Gozava de merecido prestígio. Bondosamente designou “monitor” o estudante que ajudou a carregar as peças de uma coleção etnográfica que permanece até o presente sob a guarda da UNB. Pedro Agostinho da Silva, aluno pós-graduado de Galvão, ensinou-me a fazer o diário de campo. Incumbiram-me da descrição dos objetos trocados na cerimônia comercial denominada “Moitará”.

O milagre da comunidade Iawalapiti

Menina Yawalapiti brinca na estrutura da nova oca de seu tio
Menina Yawalapiti brinca na estrutura da nova oca de seu tio

Os xinguanos sofreram pesadamente com epidemias trazidas pelos brancos, contra as quais populações indígenas isoladas não possuem defesas. Particularmente cruéis foram os efeitos da epidemia de sarampo de 1954, quando etnias inteiras desapareceram. Após esses devastadores surtos de gripe e sarampo, a malária endêmica transformou-se no principal fator a diminuir a esperança de vida dos índios do Xingu. Pelo que fui informado quase desapareceu, mas estaria a recrudescer recentemente.

A uma distância de pouco mais de 1 km do Posto Leonardo existia uma casinha habitada pelos sobreviventes Iawalapiti encontrados por Orlando entre os Kamaiurá. Ali viviam pouco mais de uma dezena de pessoas em torno dos seus gentis líderes, os irmãos Kanato e Sariruá. Orlando e Cláudio reconstituíram diversas aldeias, permitindo o reviver de comunidades inteiras. Saíam reunindo os sobreviventes de tribos dizimadas espalhados nas aldeias que restaram. Atualmente, centenas de descendentes dos moradores daquela casinha vivem em uma bela aldeia na confluência do Ribeirão Tuwatuwari com o Rio Kuluene.

A impressionante recuperação demográfica de populações como a xinguana é motivo de júbilo para quem acompanha a situação dos índios brasileiros. Cumpre ressaltar o papel desempenhado pela Escola Paulista de Medicina (hoje Universidade Federal de São Paulo) no Alto Xingu. Vi o médico Roberto Baruzzi, professor da instituição e seus alunos se desdobrarem na assistência e em pesquisa sobre a saúde indígena, campo do conhecimento específico por eles delimitado. Na Escola Paulista foi criada a cadeira “Saúde Indígena”, cuja área de atuação era o Parque do Xingu.

 

As ameaças ao cotidiano Xinguano

O Xingu dos anos 60 era uma terra contestada por brancos que tentavam seguidamente invadi-la.

Caçadores de peles de animais como onça e ariranha de quando em quando adentravam a região do Djauarum. Os índios avisavam Cláudio que saía em perseguição dos invasores. Certa vez, ao lado de Cláudio, persegui caçadores de pele denunciados pelos gritos de uma ariranha ferida à bala, que produzia um som agudo que lembrava o de um ser humano em desespero. Houve troca de tiros na qual usei meu presente de aniversário, mas os invasores conseguiram fugir graças a um motor de popa mais potente. Por vezes, eram capturados e recebiam de Cláudio e Orlando a informação de que não deveriam mais retornar, pois se o fizessem ficariam à mercê dos índios. Assim foi preservado o Parque do Xingu.

Em 1965, Eduardo Galvão e outros professores foram exonerados da UnB por razões políticas. Quase todo o corpo docente da Universidade demitiu-se solidariamente. Estudante de graduação passei um período com Herbert Baldus no Museu Paulista, mas retornei à Brasília e me formei em economia. Só voltaria à antropologia no último ano da universidade com a chegada de Roque Laraia e Júlio César Melatti do Rio de Janeiro. Mas o contato com Orlando e Cláudio não foi perdido, amigos da família, que sempre nos visitavam em Brasília.

Retornei ao Xingu em 1971/72, acompanhado de minha esposa, a antropóloga Sandra Beatriz Zarur, para a pesquisa de campo da minha tese de mestrado no Museu Nacional. Lá estavam os Villas-Boas. Orlando no Posto Leonardo no Sul do Parque. Cláudio, desde os anos 60, no Posto do Djauarum, que assistia os grupos do Norte da área: Suyá, Kayabi, Juruna e Kayapó Txucahamãe.

Os assim denominados “xinguanos”, distribuídos segundo uma distância maior ou menor do Posto Leonardo, compõem a “área cultural do Alto Xingu” descrita por Galvão. Compartilham uma cultura comum, apesar das diferenças lingüísticas. O Alto Xingu é a melhor prova negativa da hipótese de Sappir-Whorf, que postula relações diretas entre língua e cultura, pois com línguas diversas, os xinguanos têm os mesmo costumes, rituais e sociedade. Já os habitantes do Norte do Parque têm culturas contrastantes e línguas diferentes. Sua única forma de articulação provinha da influência do Posto do Djauarum. Nessa viagem de 71/72 permanecí quase todo o tempo na pequena e distante Aldeia Aweti, no Alto Xingu.

Os dois postos indígenas funcionavam como centros de assistência à saúde. Pessoas doentes buscavam os cuidados competentes da enfermeira Marina Villas Boas, esposa de Orlando. Vilinhas, Orlando Villas Boas Filho, hoje Professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, chorava forte como é dever de todo bebê. Estivesse Cláudio entre nós, estaria orgulhoso a provocar o sobrinho para debater Filosofia do Direito. Foi no improvável cenário do Djauarum, que ouvi Cláudio falar em Hans Kelsen.

Orlando e Cláudio procuravam manter os índios em suas aldeias, distantes dos postos. Com boas razões, consideravam nefasta a relação muito próxima com “civilizados”. Desestimulavam o contato com estranhos. Além da transmissão de doenças preocupavam-nos a desestruturação do modo de vida tradicional e a perda da identidade. Travaram duras lutas com missionários que tentavam adentrar o Xingu com a Bíblia sob o braço. Enfrentaram garimpeiros e os já mencionados caçadores de peles. O contato da grande maioria dos índios do Alto Xingu com não índios dava-se essencialmente no Postos, onde obtinham bens que, rapidamente, se tornaram indispensáveis, como facas e facões, machados, panelas de alumínio, tesouras e anzóis.

Era grande a preocupação dos Villas-Boas com a base aérea do Jacaré, situada a algumas poucas dezenas de quilômetros do Posto Leonardo. Ali moravam o sargento que a comandava e alguns soldados. Era o próximo pouso do Correio Aéreo Nacional (CAN) após o Posto Leonardo. Tornou-se um ponto de contato entre índios e brancos não controlado pela administração do Parque. Era foco de disseminação de doenças, inclusive de doenças sexualmente transmissíveis. Um tema popular de pintura corporal entre os xinguanos era o escudo da FAB. A relação com a FAB era complicada, pois o Parque dependia inteiramente dos aviões do CAN.

Contrastes: o Xingu no século XXI

Voltei ao Parque apenas em 2004, quando, na grande aldeia Iawalapiti dos tempos atuais, todos os índios do Alto Xingu prestaram merecida homenagem a Orlando, com a realização de um belo Kwarup, festa para mortos ilustres. Marina e filhos honraram-me ao me convidar para ocupar no ritual posição junto à família Villas-Boas.

Fila de índios se apresentando para cerimônia do Kuarup (Noel Villas Boas, Wikimedia)
Fila de índios se apresentando para cerimônia do Kuarup (Noel Villas Boas, Wikimedia)

Pude constatar, nessa rápida visita, que não se bebe mais água dos rios e ribeirões do Alto Xingu, pois a poluição das nascentes obrigou à perfuração de poços artesianos. A tradicional cena das mulheres equilibrando um caldeirão na cabeça na beira do Ribeirão tornou-se mais rara. Motocicletas, tratores, caminhões e barcos a motor de propriedade dos índios transitavam entre as aldeias.

Nos velhos tempos, após cruzar o cerrado do Vale do Araguaia, com escalas em Aragarças e Xavantina, os DC3 da FAB (restos norte-americanos da Segunda Guerra Mundial) voavam sobre uma mata sem fim, até pousar no Posto Leonardo. Hoje, os limites do Parque são evidentes do ar, pois é reta a linha demarcatória que separa a mata verde escura do Parque dos intermináveis cultivos de soja, que, com fertilizantes e agrotóxicos poluem as águas dos formadores do Xingu.

Os índios do Alto Xingu não se alimentavam da carne dos grandes mamíferos. A principal fonte de proteína era o pescado. Os únicos mamíferos caçados eram macacos. Em 1972, em um campo próximo às então aldeias Aweti e Mehinakú, presenciei, do alto de uma pequena elevação, a uma cena extraordinária, que lembrava os filmes das savanas africanas. Centenas, talvez milhares, de veados e cervos pastavam pacificamente, sem medo dos seres humanos. Estavam acostumados com o convívio com os índios do Xingú que não lhes trazia perigo. Soube que décadas mais tarde, em gesto de boa vizinhança, os xinguanos convidaram os índios xavante para caçar nesse campo. Com o uso do fogo na caçada, em um único dia os caçadores Xavante teriam matado mais de 30 veados e cervos.

No Xingu da década de 70 não havia circulação da moeda corrente nacional. Tampouco havia uma “moeda” local que servisse de meio de troca. Além dos poucos objetos pessoais que cada pessoa possuía, de alto valor eram as contas de miçanga cor azul rei fabricadas na então Tcheco-eslováquia, que só podiam ser encontradas na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro. Utilizavam-nas na elaboração de colares e pulseiras que funcionavam como ornamento, e símbolo de prestígio. Algo parecido com “jóias” na sociedade européia. Possuí-las, no Xingu era uma forma de entesourar riqueza. Aceitavam, mas com pouco entusiasmo, a miçanga de fabricação nacional, menor, vermelha ou azul clara.

Os índios, com a exceção dos que moravam nos postos não costumavam usar qualquer vestimenta. E se o faziam era como enfeite, não como abrigo para o frio, ou menos ainda, devido às noções de pudor importadas da sociedade ocidental.

 

O exemplo de bem estar da vida xinguana

Era uma vida cotidiana relaxada e alegre. Nunca presenciei o castigo físico de crianças. O tempo fluía lentamente com reuniões de todos os homens no final da tarde em frente à casa das flautas, nas quais as mulheres não podiam entrar. A rotina diária era bem diferente para homens e para mulheres. Enquanto essas ficavam, a maior parte do dia, em pequenos grupos perto da luz da porta das grandes casas xinguanas conversando, ralando mandioca e em outras atividades domésticas, os homens passavam um bom tempo nas redes, a pescar ou conversar em frente à casa dos homens.

Havia notável sincronia entre o bem estar individual, a vida ritual e a vida econômica, equilíbrio que pode estar abalado nos tempos atuais. Os xinguanos eram altamente “individualistas”, isto é, os anseios e necessidades individuais ocupavam um primeiro plano e eram respondidos pela sociedade. Sem querer idealizar a vida tradicional do Xingu, pode-se afirmar que a sociedade era concebida como um instrumento para o bem estar e felicidade da maioria dos indivíduos. Porém, o complexo da feitiçaria criava uma situação de tensão permanente.

Trabalhava-se muito pouco, segundo alguns cálculos, os homens, em média, três horas e meia. As mulheres talvez uma hora a mais. O resto do tempo era dedicado a dançar e a conversar. Todo começo de manhã o “capitão” da aldeia fazia um discurso tendo como tema, por exemplo, a necessidade de “vencer a preguiça”. Tinha-se, em geral, o suficiente para uma boa alimentação, muito melhor do que a de nossos pobres urbanos e uma vida saudável e tranqüila, apesar da malária que grassava e da lembrança terrível de epidemias devastadoras. As crianças enchiam os pátios com o som alegre das brincadeiras. A população estava em franco crescimento.

O Parque do Xingú era uma área isolada, protegida pelas distâncias e pela floresta. O único acesso dava-se por vôos supostamente semanais dos DC3 do Correio Aéreo Nacional, por um dos quais, certa vez, esperei mais de mês em Goiania. Hoje é accessível por estradas. Além das fazendas que o cercam, centros urbanos, como Canarana, crescem em suas fronteiras. O contato com os brancos tornou-se permanente.

Só espero que no Xingu seja para sempre ouvida a alegria ruidosa das crianças livres.

Que seus pais conservem a capacidade de se horrorizar com os castigos sofridos pelos filhos dos caraíbas.

Que os velhos continuem respeitados e honrados. E que todos vivam em ambientes de solidariedade e afeto desconhecidos pela cultura ocidental contemporânea.

Uma terra em que, como dizia meu querido amigo Orlando: “seja o velho, dono da história; o homem, dono da aldeia; e a criança, dona do futuro”.

 

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Ataque a indígenas em Mato Grosso do Sul é tragédia anunciada, diz membro do CDDPH

Luciana Lima (Agência Brasil)

O ataque ao acampamento indígena Tekoha Guaiviry, ocorrido ontem (18), no município de Amambai, em Mato Grosso do Sul, é tragédia anunciada, disse hoje (19) o vice-presidente do Conselho dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), Percílio de Souza Lima Neto. De acordo com o conselheiro, há muito tempo a região é palco de conflitos entre os interesses dos índios e das empresas de agronegócio.

“Toda violência contra comunidades indígenas em Mato Grosso do Sul já estava anunciada há longo tempo. Nós já constatamos que não há espaço para os interesses indígenas, e há uma crescente discriminação contra os integrantes dessa comunidade”, disse. Ele apontou a especulação pelas terras como principal motivo dos conflitos. O ataque pode ter levado à morte o líder dos Guarani Kaiowá, cacique Nísio Gomes, de 54 anos de idade, que, de acordo com relato dos índios, foi baleado e o corpo levado pelos pistoleiros.

O cacique ainda não foi encontrado, segundo o Ministério Público Federal (MPF), que confirmou o desaparecimento do chefe indígena. Há informações de que dois índios – uma mulher e um criança de 5 anos – também foram levados pelos pistoleiros. Os indígenas disseram que cerca de 40 homens encapuzados e armados invadiram o acampamento localizado entre Amambai e Ponta Porã.

A Polícia Federal começou ontem a investigar o caso a pedido do MPF. Representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) também acompanham as investigações.

Terra Indígena Amambaipeguá

Cerca de 60 índios moravam no acampamento, mas, de acordo com a polícia, somente dez estavam no local para dar informações. Assutados com a violência, muitos buscaram proteção na mata. Ontem, os policiais encontraram sangue humano no local indicado pelos índios onde o cacique teria foi baleado. Amostras do sangue foram recolhidas para análise pericial.

A área ocupada pelos Guarani Kaiowá faz parte da região denominada Terra Indígena Amambaipeguá. O processo de demarcação da área começou em junho de 2008 e, desde então, foi interrompido diversas vezes por decisões judiciais, em ações movidas por produtores rurais da região e forças políticas municipais e estaduais.

De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), nos últimos oito anos, cerca de 200 índios foram mortos em conflitos de terra. A assessoria do conselho informou que os indígenas ocuparam o trecho da terra que está em processo de demarcação no início deste mês.

Edição: Aécio Amado

O Código Florestal no mundo da escassez


Washington Novaes (publicado no Estado de São Paulo)

Aproxima-se a hora de votações decisivas no Senado do controvertido projeto de lei sobre um novo Código Florestal. E aumentam as preocupações, tantos são os pontos problemáticos que vêm sendo apontados por instituições respeitáveis como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciência, o Ministério Público Federal, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, o Museu da Amazônia, os comitês de bacias hidrográficas e numerosas entidades que trabalham na área, entre elas o Instituto SocioAmbiental e a SOS Mata Atlântica.

Não faltam motivos para preocupações graves. Entre eles:

  • a possibilidade de transferir licenciamentos ambientais para as esferas estadual e municipal, mais suscetíveis a pressões políticas e econômicas;
  • a anistia para ocupações ilegais, até 2008, de áreas de proteção permanente (reconhecidas desde 1998 como crime ambiental);
  • a redução de 30 para 15 metros das áreas obrigatórias de preservação às margens de rios com até 10 metros de largura (a proposta atinge mais de 50% da malha hídrica, segundo a SBPC);
  • a isenção da obrigação de recompor a reserva legal desmatada em todas as propriedades com até 4 módulos fiscais (estas são cerca de 4,8 milhões num total de 5,2 milhões; em alguns lugares o módulo pode chegar a 400 hectares);
  • a possibilidade de recompor com espécies exóticas, e não do próprio bioma desmatado; nova definição para “topo de morro” que pode reduzir em 90% o que é considerado área de preservação permanente.

São apenas alguns exemplos. Há muitos.

Para que se tenha ideia da abrangência dos problemas: o professor Ennio Candotti (ex-presidente da SBPC), outros cientistas e o Museu da Amazônia lembram que naquele bioma há uma grande variedade de áreas úmidas, áreas alagadas, de diferentes qualidades (pretas, claras, brancas), baixios ao longo de igarapés, áreas úmidas de estuários etc.; cerca de 30% da Amazônia pode ser incluída entre as áreas úmidas e cada tipo exige uma regulamentação específica, não a regra proposta no projeto. No Pantanal, são 160 mil quilômetros quadrados.

Mas não bastassem todas essas questões, recentes portarias ministeriais (Estado, 29/10) e do Ministério do Meio Ambiente mudaram – para facilitar – os procedimentos obrigatórios para licenciamento de obras de infraestrutura e logística, com o argumento de que há 55 mil quilômetros de rodovias, 35 portos e 12 mil quilômetros de linhas de transmissão de energia sem licenciamento – como se o problema estivesse nos órgãos ambientais, e não nos empreendedores/construtores.

Tudo isso ocorre no momento em que as últimas estatísticas dizem que o desmatamento na Amazônia permanece em níveis inaceitáveis: em sete meses deste ano foram mais de 1.800 km2, número quase idêntico ao de igual período do ano passado (Folha de S.Paulo, 1.º/11). E no momento em que se reduz a área de vários parques nacionais na Amazônia para facilitar a construção de hidrelétricas questionáveis (já discutidas várias vezes neste espaço).

Esquecendo a advertência do consagrado biólogo Thomas Lovejoy: o desmatamento no bioma já chegou a 18%; se for a 20%, poderá atingir o turning point (ponto de não retorno) irreversível, com consequências muito graves na temperatura e nos recursos hídricos, ali e estendidas para quase todo o País. É uma advertência reforçada por estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e do Escritório Meteorológico do Hadley Centre, da Grã-Bretanha. Já o professor Gerd Sparovek, da USP (Estado, 26/10), adverte: o passivo com o desmatamento no País já é de 870 mil km2.

E ainda se pode perguntar: mesmo admitindo a hipótese otimista de o Congresso rejeitar todas as mudanças indesejáveis – hipótese difícil, dado o desejo de grande parte dos congressistas de “agradar” ao eleitorado ruralista e a parte do amazônico (que vê no desmatamento oportunidade de empregos e renda) -, mudará o quadro, lembrando que o Ministério do Meio Ambiente (e, por decorrência, o Ibama) tem apenas cerca de 0,5% do Orçamento da União? Não esquecendo que o Ibama só tem conseguido receber cerca de 1% das multas que aplica a desmatadores.

Encruzilhada

Estamos numa encruzilhada histórica, reforçada pelo fato de a população do planeta ter chegado a 7 bilhões de pessoas e caminhar para pelo menos 9 bilhões neste século – o que exigirá o aumento da oferta de alimentos em 70%, quando o desperdício, hoje, nos países industrializados chega a um terço dos produtos postos à disposição; quando nas discussões do ano passado na Convenção da Diversidade Biológica se demonstrou que o mundo perda entre US$ 2,5 trilhões e US$ 4,5 trilhões anuais com a “destruição de ecossistemas vitais”; quando a “pegada ecológica” da humanidade, medida pela ONU, indica que estamos consumindo mais de 30% além do que a biosfera planetária pode repor.

Nesta hora, em que o até ex-ministro Delfim Netto, que admite nunca haver se preocupado antes com a questão, manifesta (no livro O que os Economistas Pensam da Sustentabilidade, de Ricardo Arnt) seu desassossego com a escassez de recursos naturais no mundo e a possibilidade de esgotamento, é preciso mudar nossas visões.

Admitir que tudo terá de mudar – matrizes energética, de transportes, de construção, de urbanização, nível de uso de terra, água, minérios, tudo. Relembrar o que diz há décadas o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud): se todas as pessoas tiverem o nível de consumo do mundo industrializado, precisaremos de mais dois ou três planetas para supri-lo.

A atual crise econômico-financeira está mostrando o quanto nos descolamos da realidade, com um giro financeiro anual (em torno de US$ 600 trilhões) dez vezes maior que todo o produto bruto no mundo no mesmo espaço de tempo (pouco mais de US$ 60 trilhões). Se não nos dermos conta dessa insustentabilidade, razão terá o índio Marcos Terena quando diz: “Vocês (os não índios) são uma cultura que não deu certo”.

A tarefa de levar aos brasileiros a realidade indígena

Cid Furtado, carta de abertura da 1ª edição da revista Brasileiros de Raiz

Em pleno século 21, o Brasil, tão reconhecido na aldeia global antevista pelo grande teórico da comunicação, Marshal Macluhan, tem dificuldades para reconhecer sua cultura original. Sua identidade mais pura. Permite assim, que a sociedade desconheça os habitantes da terra que existiam antes de a chamarmos Brasil. Milhões de índios tiveram suas vidas ceifadas pelo conquistador português e, ainda hoje, este País moderno permite a continuidade deste massacre, ensinando em suas escolas a história contada pelo vencedor, tratando-os com descaso e tornando-os invisíveis aos olhos da sociedade e governos.

Os indígenas só ganham visibilidade quando decidem lutar por seus direitos, enfrentando nossos preconceitos, ou quando surge um conflito com a sociedade não-índia. Essa situação, causada pela combinação de falta de informação e de iniciativa em mudá-la, foi o ponto de partida de nossa proposta de criar a revista Brasileiros de Raiz. Em suas páginas, vamos nos impor, permanentemente, a tarefa de levar ao cidadão brasileiro, informações sobre a realidade das comunidades indígenas de todo o País. Casualmente, enquanto preparávamos sua primeira edição, duas histórias nos chamaram a atenção para a importância do trabalho que pretendemos fazer.

Meu filho de 15 anos, cursando o 2º ano do ensino médio, numa das escolas consideradas de melhor nível de Brasília, explicou-me, conforme ouvira de seus professores, porque os indígenas teriam sido massacrados pelos colonizadores: “porque os portugueses presenciaram atos de antropofagia e teriam sido levados a crer que as comunidades indígenas brasileiras, de forma geral, tinham esta prática”. Esta seria a justificativa para os massacres.

O segundo relato aconteceu durante uma conversa recente com um ex-presidente da Funai. Ele me disse que seu filho, na 3ª série do ensino fundamental, também havia recebido informações, no mínimo distorcidas, estampadas em livro adotado por parte da rede de ensino da Capital Federal. Diz o livro que a chegada de escravos negros no Brasil deve-se ao fato de o índio não aceitar trabalhar.

Na verdade, na grande maioria das sociedades indígenas, homens e mulheres têm diferentes atribuições na comunidade. O indígena brasileiro não se adaptava a diversas práticas dos colonizadores, por diferenças culturais e muitos outros fatores como abrir mão de seu modo de vida, de sua liberdade e independência ou cumprir funções, tradicionalmente exercidas por mulheres nas comunidades indígenas. Detalhes culturais que fizeram e fazem toda a diferença na hora de analisar as questões indígenas.

Assim como muitos simpatizantes das causas indígenas, acreditamos que recolocar a história em seu trilho, dar voz e informações atualizadas e verdadeiras sobre os legítimos Brasileiros de Raiz, é uma importante contribuição para contarmos a verdadeira história dos povos indígenas.

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Revista Brasileiros de Raiz

A revista Brasileiros de Raiz surgiu como uma publicação dedicada exclusivamente à questão indígena com o intuito de trazer informações sem preconceitos sobre a realidade indígena brasileira. Para saber mais, entre em contato com redacao@brasileirosderaiz.com.br ou ligue para (61) 3202 30 92.
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10 anos de Rota Brasil Oeste: nos passos dos irmãos Villas Boas

Brasília ainda se espreguiçava quando pulei da cama, lavei o rosto para curar a noite mal dormida, comi algo rápido e me despedi de quem estava acordado. Era Abril de 2001, há pouco mais dez anos atrás.

Na garagem, o Santana prata – emprestado por minha avó – esperava devidamente decorado com os adesivos colados de última hora que comprovavam o apoio fundamental de empresas e indivíduos que acreditaram na ideia de revisitar os lugares e resgatar a história dos irmãos Villas Boas e da Expedição Roncador-Xingu.

A viagem que estava prestes para começar, na verdade, foi iniciada quase por acaso. Dois anos antes de iniciarmos a viagem, ao lado de três amigos (Bruno, Fábio e Pedro), todos alunos do curso de Comunicação da UnB, decidimos fazer um projeto final de curso que unisse algumas de nossas paixões: viajar, fotografar e escrever.

Como viabilizamos o projeto

Como a premissa em comum acordo, nos faltava decidir aonde ir e qual tema enfocar. Em meio a estas discussões, o acaso nos favoreceu. Ao atender o telefone na casa dos meus pais um dia, do outro lado da linha falava Orlando Villas Boas. Orlando era um antigo amigo da família e aconteceu de ligar naquele dia.

A ficha, literalmente, caiu na hora. Esta era uma oportunidade de adicionar uma dimensão histórica ao projeto. Sentamos para conversar e mudamos o rumo da ideia: passamos a trabalhar com o objetivo de revisitar a história dos irmãos Villas Boas e da Expedição Roncador-Xingu quase 60 anos depois de seu início.

Queríamos percorrer os mesmos caminhos, visitar as cidades fundadas e conversar com os pioneiros que viveram este desbravamento do Brasil central. Registrando tudo com fotos e textos sobre o que encontrávamos no caminho.

Passamos a canalizar nossos estudos nesta direção. Pesquisamos livros, artigos e arquivos fotográficos. Realizamos um amplo projeto de marketing para atrair patrocinadores. Entrevistamos pesquisadores e lideranças indígenas. Estabelecemos contatos e contamos com apoio da FUNAI, especialmente o privilégio de sermos acompanhados pelo indigenista Guilherme Carrano, que teve a paciência de nos aguentar e mostrar o quanto ainda éramos ignorantes e ingênuos.

Recebemos a ajuda de professores e empresas. Sem dinheiro para pagar hotel, em algumas cidades onde passamos fomos acolhidos por famílias, como a de seu Pedro, em Barra do Garças, e indivíduos, como Lúcia Kirsten em Nova Xavantina. Personalidades fantásticas, personagens de um Brasil autêntico e corajoso.

Acima de tudo, no entanto, nos marcou o carinho e dedicação com os quais fomos tratados pela família Villas Bôas. Não só tivemos o privilégio de ouvir os depoimentos de Orlando e Marina em primeira mão, mas fomos recebidos como filhos, com direito a bife com arroz e feijão no almoço (que Orlando comeu acompanhado de panetone!).

Quanto mais líamos, mais nos impressionávamos com a dimensão da aventura dos irmãos Villas Bôas e o quão pouco sabíamos sobre o que talvez tenha sido o maior projeto de colonização realizado no século XX e que culminou com a construção de Brasília – nossa cidade natal. Tão conhecidos nas décadas de 60 e 70, Cláudio, Orlando e Leonardo eram, na época nomes, estranhos para gerações mais novas.

Aventura digital

Além disso, para viabilizar nossa ideia de projeto “multimídia”, escolhemos publicar notícia directo da viagem via Internet, o que se tornou uma aventura à parte. Parece algo trivial, mas em 1999 a rede era um nicho que apenas começava a ser explorado. Ainda não havia, por exemplo, sistemas estabelecidos que facilitassem a administração de conteúdo. Isso para não falar da falta de estrutura para transmissão de dados.

Neste sentido, tivemos nosso lado de pioneirismo. Na época conseguimos apoio da operadora de telefonia via satélite Globalstar, que estava prestes a inaugurar a transmissão de dados para seus aparelhos. Inauguramos o serviço, que funcionava em 9600kbps (minha internet de casa hoje é mais de 100 vezes mais rápida!) e foi lançado dias antes de partirmos em abril de 2001. Assim, nos tornamos os primeiros jornalistas a realizar a atualização e publicação de um site de internet direto do Xingu e do interior do Centro-Oeste.

Meses antes de iniciar a viagem, Fabio descobriu um obscuro serviço na Internet chamado “blogger”. A ferramenta foi a solução para não termos de programar o HTML na mão e nos permitiu atualizar o site praticamente todos os dias e ainda ter algumas horas de sono. Nunca imaginávamos que alguns anos depois o termo “blog” seria associado a uma revolução na comunicação.

Foram dois anos de intensa pesquisa, mas nada podia nos preparar para a experiência de vida que iríamos ter ao acelerar o carro e deixar Brasília naquela manhã de Abril.

10 anos depois

Nos cerca de 30 dias em que percorremos cidades, estradas e rios que levaram décadas para ser explorados, descobrimos um Brasil ignorado pelas lentes da novela-das-oito, de impressionante riqueza étnica e cultural.

Também nos defrontamos com a violência, preconceito e desafios de regiões onde a lei do mais forte ainda se impõe de maneira cruel.

De dentro do Xingu, publiquei um artigo no qual citava grandes problemas que, na minha opinião, haviam se destacado: educação, preservação cultural, pressões econômicas e devastação ambiental.

Acredito que estas ainda são questões essenciais para o indigenismo nacional.

Educação e preservação da identidade cultural continuam como pauta constante de discussão e, como tudo que diz respeito ao índio, apresenta realidade extremamente heterogênea.

Nestes dez anos que se passaram e nos quais continuei acompanhando a questão indígena, mesmo que nem sempre estivesse dedicado ao assunto, nada me chocou tanto, quanto o preconceito em relação ao índio.

O maior exemplo disso é que num momento de ampla discussão sobre os direitos de minorias, como o atual, a questão sequer é citada. Aliás, o maior indício do nível deste preconceito é que muita vezes sequer é classificado como tal.

O pré-julgamento se manifesa muita vezes na forma de uma visão romântica e paternalista. o “puro e bom nativo” – conceito que sobrevive desde o século XIX.

Mas dano maior é causado por sua versão mais virulenta. É comum escutarmos frases que classificam o índio como um enxerto na sociedade nacional, algo que está aí para ser expurgado ou absorvido. Desde que desapareça.

Este problema é ainda maior nas comunidades ao redor de grandes reservas, onde o modo de vida indígena é visto como um atraso para a região. Como nos disse Valdon Varjão, primeiro político a entrevistarmos em nossa viagem: “desvirtuaram a intenção original que era colonizar toda essa região construindo estradas e novas cidades. A idéia não era catequizar índio e nem fazer Parque Indígena”.

Em 2001, quando visitamos a reserva xavante de Pimentel Barbosa, ouvimos diversos relatos dos atritos de índios e não-índios. Um cacique local nos contou – aos prantos – a situação da filha pequena que havia sido largada no corredor do hospital local, sem atendimento adequado, enquanto outros pacientes recebiam prioridade. Descobriu-se que a menina sofria de pneumonia e ela sobreviveu graças a iniciativa de uma enfermeira piedosa.

Nos quatro primeiros meses de 2011, 34 crianças da comunidade Xavante de Campinópolis morreram por falta de atendimento médico, muitas delas mortas por pneumonia.

Pressões econômicas e destruição ambiental caminham juntas a passos largos. Quando visitamos as comunidades, uma dos maiores ameaças ao seu modo de vida era o desmatamento e a poluição das cabeceiras dos afluentes do Xingu. Os rios são a principal fonte de alimentação e água para a região.

Na semana em que visitamos o Parque, o Brasil passava pelo auge da crise do apagão. Nunca íamos imaginar que a proposta de solução para o problema se tornaria na próxima grande ameaça à região.

As nascentes dos rios continuam sob a mercê da expansão agrícola desenfreada, mas hoje o grande perigo vem do norte: a construção da usina de Belo Monte. Fruto de uma concepção falida de desenvolvimento, seu impacto ambiental promete ser devastador.

Ironicamente, o debate mais avançado sobre desenvolvimento em nível internacional caminha na direção de conceitos há muito praticados e dominados pelo índio, como o efetivo equilíbrio entre exploração e preservação da natureza.

Há, por exemplo, uma forte e inovadora corrente de economistas com argumentos sólidos para não medirmos a riqueza de um país apenas pelo seu produto interno bruto. Isto já é feito com o índice de desenvolvimento humano e agora pretende-se estender o conceito para medirmos o valor econômico aos “serviços” prestados pelo meio-ambiente, como água potável, segurança alimentar, combate natural a pragas, etc.

Sob esta ótica do potencial econômico da natureza, chamada biocapacidade, o Brasil é a maior potência mundial (Relatório Planeta Vivo 2010, WWF). O grande risco é que ainda olhamos para estes recursos como se fossem bens infinitos a serem explorados inesgotavelmente. Neste sentido, ainda temos muito a aprender com quem enxerga a natureza não como dádiva divina, mas como a divindade em si.

Aragarças e Barra do Garças

Nossa primeira parada foi também a base de partida da expedição Roncardo-Xingu nos anos 40 e, mais tarde, também foi importante para o trabalho da Fundação Brasil Central.

Ouvimos uma declaração de Valdon Varjão, ex-garimpeiro, ex-senador biônico durante o governo militar, que resume a visão do “índio como atraso” para o país:

“Acho que os irmãos Villas Bôas desvirtuaram a intenção original (da expedição Roncador-Xingu) que era colonizar toda essa região construindo estradas e novas cidades. A idéia não era catequizar índio e nem fazer Parque Indígena.”

Um conceito desenvolvimentista antiquado, ligado à ideia do progresso como asfalto, fumaça e exploração desenfreada da natureza.

Nova Xavantina

Vivenciamos na pele algumas das tensões que estavam acesas na região. Próximo à cidade está o lendário garimpo de Araés, que fomos visitar. Chegando lá encontramos um grupo de garimpeiros que estavam no local ilegalmente. Desci do carro de peito aberto, com a coragem que só os ignorantes têm e fui recebido por senhor que agarrou minha camisa e logo revelou o fio do facão que ocultava nas suas costas. Felizmente, tudo acabou bem. Explicamos que não éramos na polícia e o porquê da nossa visita e eles concordaram em nos ceder uma entrevista. É claro, concordamos com absolutamente todas as opiniões deles.

Também nos levaram para ver a dimensão do estrago do garimpo na natureza local. De volta à cidade entrevistamos Sinvaldo Vieira Rodrigues, ex-garimpeiro que sofria de silicose, doença terminal causada pela respiração do pó da pedra. Ele nos contou que perdeu o irmão e mais de sessenta colegas vítimas do mesmo mal ou acidentes de trabalho nas minas. “A única coisa que o Araés já fez foi matar muita gente”, dizia.

Água Boa e Canarana

No final da década de 1960, o Governo Federal criou diversos incentivos à colonização do centro-oeste brasileiro. As oportunidades chamaram a atenção de agricultores gaúchos. Como várias outras localidades, Água Boa e Canarana foram fundadas por estes pioneiros.

Em 2001, a região era uma interessante mescla étnica, mas também palco de preconceito violento e muitos atritos. O problema é maior na região não apenas pela proximidade e choque de culturas, mas também pela incompetência do estado, que cedeu terras a agricultores dentro de áreas de ocupação indígena tradicional. Anos mais tarde, o mesmo estado que incentivou a ocupação da região expropriou vários pequenos produtores para criar reservas indígenas.

O ônus desta falta de preparo dos governos é pago até hoje, tanto por agricultores, quanto por índios.

Pimentel Barbosa, Xavantes

Passamos apenas uma tarde numa conversa rápida com os antigos sobre a chegada do não-índio à região. “O pessoal sabia que tinha outro povo por causa do jeito diferente da queimada, da fumaça. (…) Eu pensava que eles estavam todos pintados, por causa do pêlo na cara e no corpo”, nos contou Rupawe, que era adolescente quando duvidava dos boatos sobre “brancos” na região.

Menos protegidos que os xinguanos, os Xavantes conquistaram seu espaço com muita luta. Como nos contou Sereburã: “Nós mesmos tocamos os fazendeiros. Por isso que temos este espaço (reserva de Pimentel Barbosa) pequenininho hoje. Pra branco é grande, pra nós é pequeno. (…) Agora vivemos aqui, espero que vocês (não-índios) respeitem a gente e nossos direitos”.

Posto Leonardo, Xingu

Nada podia nos preparar para o que nos esperava no Xingu, um dos mosaicos étnicos mais ricos do mundo. O impacto daqueles meros dez dias é sentido até hoje. Estar lá nos levou a questionar e reavaliar diversos valores, ideais e outras tantas coisas que enxergamos como “naturais”. Era como se olhávamos a nossa realidade como algo estranho e artificial.
Finalmente entendemos o que levou três irmãos a abandonarem suas confortáveis vidas urbanas para se embrenharem por mais de 30 anos em uma luta contínua, enfrentando mata fechada, doença, violência, politicagem etc: a preservação da diversidade humana.

Organização dos Estados Americanos determina suspensão imediata de Belo Monte

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) solicitou oficialmente que o governo brasileiro suspenda imediatamente o processo de licenciamento e construção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte, no Pará, citando o potencial prejuízo da construção da obra aos direitos das comunidades tradicionais da bacia do rio Xingu.

 

De acordo com a CIDH, o governo deve cumprir a obrigação de realizar processos de consulta “prévia, livre, informada, de boa-fé e culturalmente adequada”, com cada uma das comunidades indígenas afetadas antes da construção da usina. O Itamaraty recebeu prazo de quinze dias para informar à OEA sobre o cumprimento da determinação.

A decisão da CIDH é uma resposta à denúncia encaminhada em novembro de 2010 em nome de varias comunidades tradicionais da bacia do Xingu pelo Movimento Xingu Vivo Para Sempre (MXVPS), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Prelazia do Xingu, Conselho Indígena Missionário (Cimi), Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), Justiça Global e Associação Interamericana para a Defesa do Ambiente (AIDA). De acordo com a denúncia, as comunidades indígenas e ribeirinhas da região não foram consultadas de forma apropriada sobre o projeto que, caso seja levado adiante, vai causar impactos socioambientais irreversíveis, forçar o deslocamento de milhares de pessoas e ameaçar uma das regiões de maior valor para a conservação da biodiversidade na Amazônia.

“Ao reconhecer os direitos dos povos indígenas à consulta prévia e informada, a CIDH está determinando que o governo brasileiro paralise o processo de construção de Belo Monte e garanta o direito de decidir dos indígenas”, disse Roberta Amanajás, advogada da SDDH. “Dessa forma, a continuidade da obra sem a realização das oitivas indígenas se constituirá em descumprimento da determinação da CIDH e violação ao direito internacional e o governo brasileiro poderá ser responsabilizado internacionalmente pelos impactos negativos causados pelo empreendimento”.

A CIDH também determina ao Brasil que adote medidas vigorosas e abrangentes para proteger a vida e integridade pessoal dos povos indígenas isolados na bacia do Xingu, além de medidas para prevenir a disseminação de doenças e epidemias entre as comunidades tradicionais afetadas pela obra.

“A decisão da CIDH deixa claro que as decisões ditatoriais do governo brasileiro e da Justiça, em busca de um desenvolvimento a qualquer custo, constituem uma afronta às leis do país e aos direitos humanos das populações tradicionais locais”, disse Antonia Melo, coordenadora do MXVPS. “Nossos líderes não podem mais usar o desenvolvimento econômico como desculpa para ignorar os direitos humanos e empurrar goela abaixo projetos de destruição e morte  dos nossos recursos naturais, dos povos  do Xingu e da Amazônia, como é o caso da hidrelétrica de Belo Monte”.

“A decisão da OEA é um alerta para o governo e um chamado para que toda a sociedade brasileira discuta amplamente este modelo de desenvolvimento autoritário e altamente predatório que está sendo implementado no Brasil”, afirma Andressa Caldas, diretora da Justiça Global. Andressa lembra exemplos de violações de direitos causados por outras grandes obras do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento do governo. “São muitos casos de remoções forçadas de famílias que nunca foram indenizadas, em que há graves impactos ambientais, desestruturação social das comunidades, aumento da violência no entorno dos canteiros de obras e péssimas condições de trabalho”.

Críticas ao projeto não vêm apenas da sociedade civil organizada e das comunidades locais, mas também de cientistas, pesquisadores, instituições do governo e personalidades internacionais. O Ministério Público Federal no Pará, sozinho, impetrou 10 ações judiciais contra o projeto, que ainda não foram julgadas definitivamente.

“Estou muito comovida com esta notícia”, disse Sheyla Juruna, liderança indígena da comunidade Juruna do km 17, de Altamira. “Hoje, mais do que nunca, tenho certeza que estamos certos em denunciar o governo e a justiça brasileira pelas  violações contra os direitos dos povos indígenas do Xingu e de todos que estão juntos nesta luta em defesa da vida e do meio ambiente. Continuaremos firmes e resistentes nesta luta contra a implantação do Complexo de Belo Monte”.

A decisão da CIDH determinando a paralisação imediata do processo de licenciamento e construção de Belo Monte está respaldada na Convenção Americana de Direitos Humanos, na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Declaração da ONU sobre Direitos Indígenas, na Convenção sobre Biodiversidade (CBD) e na própria Constituição Federal brasileira (Artigo 231).

Decisão do STF sobre Raposa pode levantar questionamento sobre outras demarcações

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello disse hoje (25) que, caso o Poder Judiciário opte por anular a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR) em área contínua, a decisão abre precedentes para questionamentos sobre outras áreas.

“Sem dúvida alguma, se o Supremo fixar que a demarcação deve ser setorizada por ilhas, evidentemente, isso se estenderá a todo o território nacional”, afirmou, durante o Encontro Nacional do Judiciário, pela manhã.

Já o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, destacou que “todas as possibilidades estão abertas” no julgamento, marcado para a quarta-feira (27), às 9h.

“Tenho a impressão de que, independentemente do resultado, esse julgamento vai balizar critérios para a demarcação de terras de fronteira e a participação dos estados nesse processo. O julgamento vai ser rico nesse tipo de orientação.”

Ele avaliou o julgamento como “importante” e destacou a existência de “questionamentos sensíveis” sobre do tema. Para Gilmar Mendes, o Judiciário precisa “se debruçar” sobre o assunto, pois o país aguarda uma definição clara sobre a demarcação em Raposa Serra do Sol.

“Nos interessa preservar e proteger as áreas indígenas e também ter segurança jurídica. Espero que seja um momento inicial dessa definição [para nova demarcações]. Salve engano, é a primeira vez que o Supremo se debruça com largueza sobre esse tema, sobre a Constituição de 1988.”

Funai inicia demarcação de terras indígenas em Mato Grosso do Sul

Nove meses após firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Procuradoria Geral da República, a Fundação Nacional do Índio (Funai) inicia, neste mês, os trabalhos para a demarcação de terras indígenas no Mato Grosso do Sul (MS). Seis grupos de antropólogos chegam a partir de hoje (29) ao estado para identificar quais áreas eram ou ainda são, tradicionalmente, ocupadas por índios da etnia Guarani-Kaiowá e que, segundo estabelece a Constituição, serão reservadas a eles. Segundo Claudionor do Carmo Miranda, administrador-executivo regional da Funai Campo Grande, até 2010 os territórios devem ser demarcados e entregues aos índios.

Em entrevista à Agência Brasil, Miranda disse que os antropólogos devem percorrer 26 municípios da região sul do MS, entre eles Dourados, Amambai, Maracaju e Rio Brilhante. Durante 73 dias, os profissionais farão um estudo técnico e histórico que servirá de subsídio para relatório sobre quais são os locais a serem demarcados com território exclusivo para ocupação dos indígenas daquela região. O documento será encaminhado posteriormente ao Ministério da Justiça.

"O trabalho dos antropólogos é o começo de um longo processo", afirmou Miranda, lembrando que a demarcação segue um amplo caminho burocrático até ser concluída. "Porém é o começo. Enfim, o governo federal atende a um grito da comunidade indígena da região e cumpre com um compromisso já firmado há quase um ano."

De acordo com ele, relatórios do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) apontam que a situação dos índios Guarani-Kaiowá está entre as mais precárias do país. As atuais reservas ocupadas pela etnia têm a maior concentração de habitantes por quilômetros quadrado. O "confinamento" tem causado inúmeros problemas às tribos.

"Lá [nas reservas do sul do MS], encontramos desnutrição, alcoolismo, muitos índios presos, mortes de forma violenta e até casos de suicídio", enumera o administrador regional da Funai. "O Guarani-Kaiowá que era nômade agora vive numa área em que só cabe a sua casa. Isto acaba atingindo a auto-estima deles."

Para Miranda, a forma como Mato Grosso do Sul foi colonizado acarretou essa redução das áreas ocupadas pelos índios. Segundo ele, incentivados pelo governo federal, agricultores e pecuaristas a acabaram se instalando em terras indígenas e "espremendo" os antigos habitantes em áreas remanescentes.

A expectativa dele é que a nova demarcação devolva aos Guarani-Kaiowá seus territórios históricos e colabore para o fim dos problemas enfrentados pela etnia.

Agricultores se mobilizam para evitar demarcação de terras indígenas em MS

A Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul) está mobilizando os produtores rurais sul-mato-grossenses para tentar impedir o início dos trabalhos de demarcação de territórios indígenas na região sul do estado.

Representantes da entidade reuniram-se ontem (29) com agricultores do município de Dourados (a 220 quilômetros de Campo Grande) para discutir possíveis ações para evitar que os antropólogos contratados pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que estão no local, comecem a levantar locais tradicionalmente ocupados pela etnia Guarani-Kaiowá.

Para a Famasul, as pesquisas, que oficialmente começam no próximo dia 10, são “absurdas” e visam a “engessar” o setor produtivo do estado. “As terras que eles [a Funai] querem transformar em reservas foram tituladas [para os agricultores] pelos governos federal e estadual”, disse o presidente da Comissão Técnica de Assuntos Indígenas e Fundiários da entidade, Dácio Queiroz, em discurso durante o evento.

“Temos articulado uma série de ações para impedir o cumprimento do TAC [Termo de Ajustamento de Conduta, firmado entre Funai e Procuradoria Geral da República e que prevê a demarcação]. Também estamos fazendo uma série de estudos para embasar nossa posição”, completou.

Segundo ele, reuniões com produtores rurais de outras cidades serão realizadas e ações judiciais devem ser abertas. “Se o governo federal está nos levando ao limite da tolerância, temos que dizer isso”.

Levantamento realizado pelo Conselho Regional de Economia do Mato Grosso do Sul, e apresentado ontem aos agricultores de Dourados, aponta que os 26 municípios incluídos no roteiro de pesquisa dos grupos de trabalho da Funai são responsáveis por 20% do Produto Interno Bruto (PIB) do estado. Nestas cidades, também há previsão de grandes investimentos do setor sucroalcooleiro.

De acordo com a Famasul, dos 851 milhões de hectares de área total do Brasil, 107 milhões já são terras indígenas, ou seja, 12,6%. Enquanto isso, 214 milhões de hectares são pastagens e lavouras, responsáveis pela geração de 40% do PIB nacional, nos cálculos da entidade.

“Quando criamos uma reserva, engessamos uma área”, afirmou o deputado estadual Zé Teixeira (DEM), que também participou da reunião em Dourados. “Estão impedindo o crescimento do país que é o celeiro do mundo.”

Lingüista defende preservação de línguas indígenas para manter cultura dos povos

A presença de 17 etnias indígenas na primeira semana do 8º Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros levou o professor de linguística da Universidade de Brasília (UnB) Ayron Rodrigues ao local, para falar sobre a importância de se preservar suas línguas originais.

De acordo com o professor, que é especialista em línguas indígenas, cada povo tem uma língua. Hoje, eles são cerca de 200 no país, mas já foram bem mais.

“Calculamos que, há 500 anos, havia cerca de 1.250 línguas. Note que já houve uma perda de 85% das línguas e cada língua corresponde a um povo, portanto são tantos povos também que desapareceram, são cerca de mil povos, uma média de 20 povos por ano. Desaparecendo as línguas, estão desaparecendo as culturas também. Essa é a importância de preservar as línguas, os povos, porque é conhecimento humano que está desaparecendo”, explicou.

Segundo ele, este processo ainda está acontecendo. Ou seja, ainda hoje, povos indígenas desaparecem a cada dia, no mundo todo. O professor atribuiu as causas do fenômeno à globalização.

“Há 15 anos, a Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] alertou às nações que o conhecimento cultural do mundo está diminuindo. A variedade de conhecimento. Com a globalização, está se intensificando o processo de eliminar as minorias, de uma maneira ou de outra. E isso leva embora as línguas e o conhecimento que é transmitido através delas. E isso é um fenômeno global”, apontou Ayron Rodrigues.

Entretanto, o professor é otimista em relação ao Brasil. Para ele, há pelo menos 10 anos, o Ministério da Cultura percebeu o problema, após o alerta da Unesco, quando encarregou o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de criar um programa de salvaguarda do patrimônio imaterial do país.

“Nesse sentido, foi constituída uma comissão no Iphan, há menos de três anos, para estudar as maneiras de realizar isso com respeito às linguas. Agora, também conseguiu-se motivar o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], a incluir perguntas sobre as línguas que são faladas no país”, relatou.

Ele disse que, embora oneroso para o governo, o processo de inclusão das perguntas sobre as línguas faladas pelas famílias no Censo de 2010 (medição geral feita pelo IBGE de 10 em 10 anos) permitirá que os trabalhos de pesquisa linguística tenham mais precisão.

“É a primeira vez que vamos ter um levantamento oficial, porque o que se sabe até hoje, não é de fonte oficial, é reunindo informações de pesquisadores que trabalham, cada um cuidando de uma área. É assim que sabemos que temos cerca de 200 línguas ainda”, contou o professor.

Demarcação de terras indígenas não é incompatível com soberania, afirma Jobim

A demarcação de terras indígenas não é incompatível com a soberania nacional. Foi o que afirmou hoje (4) o ministro da Defesa, Nelson Jobim, durante audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados.

“Evidentemente que terra indígena não está imune à penetração dos militares. Isso está em decreto do presidente Fernando Henrique Cardoso.”

Segundo o ministro, uma reserva indígena “não é uma zona de exclusão de brasileiros, é uma zona de integração”.

Em referência à Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), Jobim afirmou que um dos pontos que devem ser decididos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do caso é o regime jurídico das reservas indígenas. O Supremo analisa várias ações que questionam a demarcação da reserva em área contínua, conforme prevê o decreto de homologação, de 2005.

“É fundamental que [o STF] defina o regime jurídico sobre essas terras [indígenas], está na Constituição, são terras da União afetadas ao usufruto indígena.”

Ainda sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol, o ministro disse que “o que nos resta é aguardar a manifestação do Supremo”.