Kuarup – Parte III

foto5.jpgO ritual do Kuarup (nome de uma madeira) revive a narrativa religiosa dos índios do Xingu, centrada na figura de Mawutzinin, relativa à vida e à morte de seres humanos. Por seu papel na criação do mundo, dos homens e das coisas, Mawutzinin tem sido comparado a "Deus" ou, de outra forma, ao "demiurgo" (na tradição platônica, também divino). Mawutzinin é um ser eterno, antropomorfo, responsável pela criação dos primeiros seres humanos, a partir de troncos de árvore. Mawutzinin é também, o responsável pela criação da sociedade, após ceder as filhas que criou de troncos Kuarup para casamento com as onças. Dadas tais características, o conceito de “Deus” parece-nos que melhor ajuda à compreensão, em uma tradução cultural livre, uma metáfora que busque, sobretudo, a inteligibilidade do leitor ocidental.

Há vários registros da narrativa dramatizada através do ritual do Kuarup. Existe um volume inteiro sobre o tema em que o ritual e o complexo de idéias associadas são descritas2 .

Os primeiros homens, em uma das versões colhida por Agostinho teriam sido criados a partir da madeira Kuarup. Segundo a narrativa colhida por Villas Bôas, o primeiro Kuarup teria sido realizado com o objetivo de trazer os mortos de volta à vida. Abaixo transcrevemos a versão dos Villas Bôas3 , por ser em português mais claro que o "dialeto do contato" transcrito por Agostinho e, também, por representar uma versão menos detalhada mas, possivelmente, mais "universalmente" xinguana da narrativa:

"Mavutsinim (o primeiro homem no mundo) queria que os seus mortos voltassem à vida. Foi para o mato, cortou três toros da madeira de Kuarup, levou para a aldeia e os pintou. Depois de pintar, adornou os paus com penachos, colares, fios de algodão e braçadeiras de penas de arara.

Feito isso, Mavutsinim mandou que fincassem os paus na praça da aldeia, chamando em seguida o sapo cururu e a cutia (dois de cada), para cantar junto dos Kuarup. Na mesma ocasião levou para o meio da aldeia, peixes e beijus para serem distribuídos entre o seu pessoal. Os maracá-êp (cantadores), sacudindo os chocalhos na mão direita, cantavam sem cessar em frente dos Kuarup, chamando-os à vida.

Os homens da aldeia perguntavam a Mavutsinim se os paus iam mesmo se transformar em gente, ou se continuariam sempre de madeira como eram. Mavutsinim respondia que não, que os paus de Kuarup iam se transformar em gente, andar como gente e viver como gente vive.

Depois de comer os peixes, o pessoal começou a se pintar, e a dar gritos, enquanto fazia isso. Todos gritavam. Só os maracá-êp é que cantavam. No meio do dia terminaram os cantos, o pessoal, então, quis chorar os Kuarup, que representvam seus mortos, mas Mavutsinim não permitiu, dizendo que eles, os Kuarup, iam virar gente, por isso não podiam ser chorados.

Na manhã do segundo dia Mavutsinim não deixou que o pessoal visse os Kuarup. "Ninguém pode ver" – dizia ele. A todo o momento Mavutsinim repetia isso. O pessoal tinha que esperar. No meio da noite desse segundo dia os toros de pau começaram a se mexer um pouco. Os cintos de fios de algodão e as braçadeiras de penas tremiam também. As penas mexiam como se estivessem sacudidas pelo vento. Os paus estavam querendo transformar-se em gente.

Mavutsinim continuava recomendando ao pessoal para que não olhasse. Era preciso esperar.

Os cantadores – os cururus e as cutias – quando os Kuarup começaram a dar sinal de vida cantaram para que se fossem banhar logo que vivessem. Os troncos se mexiam para sair dos buracos onde estavam plantados, queriam sair para fora. Quando o dia principiou a clarear, os Kuarup do meio para cima já estavam tomando forma de gente, aparecendo os braços, o peito e a cabeça. A metade de baixo continuava pau ainda.

Mavutsinim continuava pedindo que esperassem, que não fossem ver. "Espera…espera…espera" – dizia sem parar. O sol começava a nascer. Os cantadores não paravam de cantar. Os braços do Kuarup estavam crescendo. Uma das pernas já tinha criado carne. A outra continuava pau ainda. No meio do dia os paus começavam a virar gente de verdade. Todos se mexiam dentro dos buracos, já mais gente do que madeira.

Mavutsinim mandou fechar todas as portas. Só ele ficou de fora, junto com os Kuarup. Só ele podia vê-los, ninguém mais. Quando estava quase completa a transformação de pau para gente, Mavutsinim mandou que o pessoal saísse das casas para gritar, fazer barulho, promover alegria, rir alto junto dos Kuarup. O pessoal, então, começou a sair de dentro das casas.

Mavutsinim recomendava que não saíssem aqueles que durante a noite tiveram relação sexual com as mulheres. Um, apenas, tinha tido relações. Este ficou dentro da casa. Mas não agüentando a curiosidade, saiu depois. No mesmo instante, os Kuarup pararam de se mexer e voltaram a ser pau outra vez.

Mavutsinim ficou bravo com o moço que não atendeu à sua ordem. Zangou muito, dizendo: – O que eu queria era fazer os mortos viverem de novo. Se o que deitou com mulher não tivesse saído de casa, os Kuarup teriam virado gente, os mortos voltariam a viver toda vez que se fizesse Kuarup. Mavutsinim, depois de zangar, sentenciou:

– Está bem. Agora vai ser sempre assim. Os mortos não reviverão mais quanto se fizer Kuarup. Agora vai ser só festa.

Mavutsinim depois mandou que retirassem os buracos os toros de Kuarup. O pessoal quis tirar os enfeites, mas Mavutsinim não deixou. Tem que ficar assim mesmo, disse. E em seguida mandou que os lançassem na água ou no interior da mata. Não se sabe onde foram largados, mas estão lá até hoje lá, no Morená."

O Kuarup só é realizado para pessoas ilustres, seja por um critério de "sangue", seja por um critério de liderança política ou econômica. A sociedade xinguana apresenta duas classes tradicionais, o "morekwat" (na lingua Aweti) ou "morerekwat", (em Kamaiurá) os descendentes uma classe hereditária de chefes, originários dos primitivos índios de cada tribo. Os "morekwat" têm o direito (teórico) à propriedade do pátio da aldeia e uma posição de destaque em determinados rituais. A eles cabem os discursos e representar a aldeia no momento do recebimento ou oferta de presentes em rituais, especialmente, nos de caráter intertribal. Possuem o direito ao uso de uma pintura característica no braço.

Além da chefia tradicional há, ainda, a liderança emergente do contato interétnico, índios que melhor falam o português e desempenham a função de intermediários culturais com a sociedade caraíba. Em um trabalho anterior4 , denominei-os "capitães", termo que embora seja usado pelos índios como tradução de "morekwat" enfatiza a relação com a sociedade nacional brasileira.

Opostos aos "morekwat" (lideranças hereditárias tradicionais) e "capitães" (lideranças novas resultantes do contato interétnico) estão os "camara", transformação do termo português "camarada".

Normalmente, os "morekwat" e "capitães", por sua situação estratégica nos diversos rituais, possuem a indispensável capacidade de mobilização econômica, que lhe permite acionar uma forte rede de parentes e outras pessoas, para a produção de alimentos e, assim, "pagar" rituais maiores, como é o caso do Kuarup, o maior de todos. Há um intricado sistema de prestações e contraprestações, que se inicia com a iniciativa dos familiares da pessoa morta e vai se desdobrando até atingir todas tribos do Xingú.

Tradicionalmente, o Kuarup era realizado, apenas, para os "morekwat" (hoje, também, para "capitães" e outras pessoas importantes), pois eram esses chefes tradicionais associados aos p

rimeiros índios, que viveram a narrativa do Kuarup. A realização de um Kuarup, em homenagem a determinada pessoa ilustre, representa, portanto, o reconhecimento de que esta pessoa estaria associada aos primeiros índios que conviveram com Mawutzinim. A realização de um Kuarup significa, assim, uma grande honraria, o reconhecimento de que o homenageado passa a ser situado no mesmo nível dos que conviveram com Mawutzinim, isto é, são incorporados ao povo descrito na narrativa religiosa e passam a integrá-la.

A idéia de convívio com a divindade apresenta um claro paralelo com a situação dos santos católicos que, também, convivem em proximidade com a divindade. Outro paralelo é a questão da transgressão na narrativa do Kuarup, na medida em que o processo de ressurreição é interrompido, pelo fato de um dos índios ter mantido relações sexuais enquanto acontecia. É desnecessário elaborar a idéia do sexo como transgressão e seus efeitos no Cristianismo, como aparece na expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Durante a quaresma, a "abstinência" não se fazia, tradicionalmente, apenas com o jejum de alimentos.

Por outro lado, a proibição do sexo durante o Kuarup pode estar associada à criação da vida por um método não "biológico". Para que haja a plena criação da vida pela divindade não pode haver a criação da vida pelos homens, através do método que lhes é próprio, o sexo. Um método inviabiliza o outro. Quando Mawutzinin diz que "agora é só festa" está dizendo que resta o método humano de criação de vida.

O kwarup que assistimos foi oferecido pelos índios Yawalapiti, em associação com as demais tribos de língua Aruak, os Mehinaku e Waurá. Esses índios, chegaram antes dos demais e foram abrigados nas casas dos Yawalapiti. Os homens vieram dançando, acompanhados por algumas poucas mulheres, principalmente meninas, fazendo, na dança, uma fila paralela à dos homens. As demais mulheres chegaram discretamente.

Depois de muita dança, alguns índios foram para o mato cortar um tronco do arvore kwarup. Foi construída uma cobertura de palha, um "rancho", em frente à "Casa dos Homens", sob o qual foi fincado o tronco no chão. O tronco foi descascado e aplainado para receber a pintura.

foto2.jpgO tronco do Kuarup recém colocado e decorado. No chão os arcos, cocares e maracás dos dois cantadores, que tinham, por um breve momento, interrompido sua atividade. Foto: Sandra Zarur

Dois cantadores, que lá se encontravam, previamente, deram continuidade ao seu trabalho, acompanhados por seus maracás. A tradução que me fizeram foi a seguinte da letra da música:

"Auíre ("morekwat" em Ywalapiti, "chefe"), você está sendo pintado,
Sua pintura está ficando muito bonita".

foto3.jpgEste e outros refrãos parecidos são repetidos, e o que é importante é que se dirigem ao tronco como a uma pessoa humana. A pintura (de sapo) é, não apenas, humana, como é aquela só de uso dos chefes importantes. O tronco é decorado com os mais belos ornamentos masculinos, como cinto de algodão colorido (dois são colocados), colar de caramujo, e cocar de penas. Tudo em tamanho maior do que seria usado por humanos vivos, pois sua dimensão é adequada à do tronco.

Os cantadores apoiados no arco e com o maracá na mão direita. Foto: George Zarur.

No primeiro dia de efetiva realização do ritual (os demais dias foram preliminares) começaram a chegar as demais tribos, que foram se instalando ao redor da aldeia iawalapiti. No final da tarde e começo da noite foi feita uma fogueira em frente ao tronco do kwarup. Os homens de cada uma dessas aldeias visitantes vieram dançando e cantando e um deles se aproximava para recolher o fogo com que se aqueceriam suas fogueiras na fria noite xinguana.

foto4.jpgUm dos índios veio correndo e tirou um dos cintos de algodão do tronco do kwarup. Este é uma ação que só os grandes campeões da luta huka-huka têm o direito de realizar. É como um desafio ao grande chefe que está em processo de revivescência no tronco.

Dança do Kuarup. Foto: George Zarur

A visita de outras tribos é, sempre, um processo considerado muito perigoso, especialmente devido à possibilidade de feitiçaria, que pode ser realizada com um resto humano qualquer, como um pouco de cabelo. Há muita tensão. A entrega do fogo às tribos visitantes e as danças associadas não interrompem o cantochão do cantadores.

foto5.jpgDurante a noite, há um momento que corresponde ao da ressurreição do homenageado, que estaria, fugazmente, presente no tronco da mesma maneira que na narrativa religiosa acima transcrita. Segundo me informou um dos morekwat yawalapiti, no Kuarup que homenageou Cláudio Villas Bôas, em um dado momento, as penas do cocar teriam mexido. No Kuarup de seu pai (Kanato), os morekwat yawalapiti, os irmãos Aretana e Piracumã, relataram-nos terem ouvido um farfalhar, um vento, na cobertura de palha que cobre o Kuarup e em seguida ter visto o pai de pé, em frente ao tronco. Piracumã informou ter desmaiado com a visão.

O aprendizado do ritual pelas crianças. Foto: George Zarur

Este momento é o da virtual ressurreição do morto. Corresponde ao instante em que os troncos da narrativa religiosa começam tomar vida. Foi quando Orlando retornou e esteve perto de nós. Foi o momento em que a família de Orlando se aninhou junto ao tronco e três amigos de Orlando, um dos quais o autor deste artigo, foram chamados para sentar-se próximo à família e ao tronco.

O momento seguinte foi das carpideiras, cinco mulheres de idade, enroladas em cobertores que choravam , um choro tristíssimo, repetido, com voz muito baixa. Não é difícil comparar tal costume com o das carpideiras mediterrâneas. A diferença é a notável delicadeza do choro baixo das xinguanas, embora no Nordeste brasileiro, por exemplo, também haja "incelenças" muito belas e, também, delicadas.

Parecia haver uma alternância e, por vezes, uma disputa, entre as vozes masculinas dos cantadores e as femininas das carpideiras. Como se os homens estivessem estimulando o morto a reviver e as mulheres chorando, cantando tal impossibilidade.

Pela noite inteira ouvem-se as vozes ritmadas dos cantadores e, até um dado instante, bem baixinho, o choro sentido das carpideiras.

A manhã seguinte, com os primeiros raios de sol, são ouvidos os gritos, por meio dos quais as tribos visitantes, que dormiram ao redor da aldeia, anunciam sua chegada. Acaba o choro e a atividade dos cantadores. Nota-se perfeitamente, que se inicia outra etapa do ritual. Chegam os índios e, rapidamente, começam as lutas de huka-huka, primeiro, uma a uma, entre os campeões das diferentes tribos e, depois, lutas simultâneas, principalmente, entre indivíduos mais jovens que ainda não se afirmaram como bons lutadores. Houve um momento em que havia perto de 30 lutadores, simultaneamente, em atividade.

Foto 6: Huka-huka: notar a pintura de peixe do lutador da esquerda e de onça, do lutador da direita. A narrativa completa da origem dos homens faz menção à luta dos peixes contra as onças. Foto: George Zarur

A mãe de um dos lutadores, uma mulher kamaiurá, entrou no círculo dos lutadores e
fez um discurso político, em defesa de Takumã, o capitão Kamaiurá. Gritou para que todos ouvissem que "Takumã não era feiticeiro".

O morekwat yawalapiti ajoelha-se frente ao morekwatde cada das tribos visitantes recém-chegadas e lhes oferece, em hospitalidade, peixe e beiju, que o chefe visitante, vai, posteriormente distribuir à sua tribo. Em se tratando de "morekwats", uo seja, chefes por "nobreza de sangue", alguns dos que recebem a oferenda são muito jovens. Ficam sentados nos bancos em que são esculpidas cabeças de gavião, de seu uso exclusivo, e assumem uma postura corporal de superioridade, uma "pose aristocrática". Posteriormente às lutas há um moitará, ritual de trocas, em que cada tribo oferece os produtos de sua especialidade (arquetipicamente, os Aruak, a cerâmica; os tupis, o arco preto; e os karib, os colares de caramujo).

O ritual é encerrado com o lançamento do tronco do Kuarup na água. Houve, porém, no Kuarup do Orlando, uma inovação: entre o Moitará e o lançamento dos toros na água, houve a reunião de boa parte dos presentes, para a apresentação de um vídeo. Sentados frente à tela nas poucas cadeiras disponíveis, o Embaixador do Canadá e a família Villas Boas. O vídeo falava da possível poluição das nascentes do Xingu e, após os chefes yawalapiti, falou um visitante Xavante, filho do chefe e ex-parlamentar Mário Juruna e o representante de uma ONG, ao que parece apoiada pela Embaixada canadense, interessada em avaliar a possível poluição das nascentes do Xingu.

Embora o evento tenha representado uma quebra da seqüência do ritual tradicional, não aconteceu uma ruptura com sua lógica, como apontaram alguns puristas. A inclusão de um espaço para os caraíbas em um ritual de articulação política entre sociedades distintas, apenas reforçou o próprio ritual como instrumento de diálogo e articulação interétnica.

2 Kwarup, Mito e Ritual no Alto Xingu, de autoria de Pedro Agostinho da Silva (Edusp, )
3 Xingu: os índios, seus mitos, de Orlando Villas Bôas e Cláudio Villas Bôas – Ed. Kuarup)
4 George Zarur, Parentesco, Ritual e Economia no Alto Xingú. Brasília, Funai, 1975.

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