O lugar do índio

E mais uma vez o País assiste, preocupado, ao agravamento do conflito entre índios, posseiros e fazendeiros em Roraima e Mato Grosso do Sul por causa de terras reivindicadas pelos primeiros, mas que ainda não tiveram seu arrastado processo de demarcação concluído. Segundo este jornal , das 618 áreas indígenas identificadas no País, 19 ainda estão em processo de demarcação e 177 por demarcar. Dos 12,44% do território nacional que incluem (cerca de 106,39 milhões de hectares), uns 11% estão com a demarcação concluída.

O Ministério da Justiça garante que homologará a demarcação como área contínua da Raposa Serra do Sol, em Roraima, que fazendeiros e posseiros plantadores de arroz (uns 700, segundo a Funai) querem que seja demarcada como um “arquipélago”, preservando as terras que reivindicam como suas, embora ocupadas há séculos por uns 15 mil índios macuxis, ingaricós, tauarepangues, uapixangas e patamonas. Os plantadores de arroz têm forte apoio político no Estado, começando pelo governador e passando por um senador que, como presidente da Funai no governo Sarney, desprezou os estudos que reconheciam uma área contínua para os ianomâmis, também em Roraima, retalhou-a e permitiu a entrada de milhares de garimpeiros, dos quais buscava o voto, candidato que era a governador; os garimpeiros foram retirados no governo Collor, que promoveu a demarcação contínua.

A principal alegação contra a homologação de 1,67 milhão de hectares de Raposa Serra do Sol é a de que, somada a outras áreas, ela colocaria mais de 50% do território do Estado como área indígena e impediria o “desenvolvimento econômico de Roraima”. Mas quem consultar uma carta enviada em junho do ano passado ao presidente da República por Márcio Santilli, ex-presidente da Funai, hoje no Instituto Socioambiental – que acompanhou Lula numa das “caravanas da cidadania” que visitou a área em 1993 -, somada essa reserva às demais no Estado se chega a 46,17% dos 22,42 milhões de hectares do território do Estado. Sobram mais de 12 milhões de hectares, nos quais vivem cerca de 350 mil pessoas (324 mil no Censo de 1991).

Muita terra para pouco índio, como dizem os adversários da homologação?

Primeiro, é preciso lembrar que, antes da colonização, os índios ocupavam todas as terras. Depois, como lembra Santilli, os 12 milhões de hectares que não são área indígena constituem um território maior que o de Pernambuco, onde vive uma população 24 vezes maior. Além disso, os 31.322 índios de Roraima constituem 40% da população rural de Roraima e são donos da maior parte do rebanho bovino do Estado. Só que não conseguem recursos para cuidar dele, diz, ao contrário dos plantadores de arroz, que têm financiamentos de bancos oficiais, mesmo não sendo proprietários das terras onde plantam (freqüentemente, com documentos de outras terras).

A homologação não é um ato apressado e imprudente, conclui. A demarcação de Raposa Serra do Sol está feita desde 1993. Mas sua homologação foi retardada pelo governo federal anterior, que até abriu prazo para contestações, afinal rechaçadas pelo próprio Ministério da Justiça e pelo Superior Tribunal de Justiça.

É certo que há situações complicadas a resolver, geradas pelo poder político de Roraima, que criou municípios dentro da área indígena (quando ela já estava identificada) e permitiu a invasão de posseiros e fazendeiros. Mas caberá ao Ministério da Justiça encontrar alternativas – provavelmente a de atribuir outras terras da União a quem reivindica. Mais difícil será o conflito federativo decorrente da criação dos municípios.

Tão complicado quanto o de Roraima, talvez mais, é o conflito de Mato Grosso do Sul, em que milhares de índios guaranis/kaiowás, terenas e caiabis invadiram várias fazendas porque exigem que sua área seja ampliada dos atuais 1.600 hectares em que vivem para 9.400. Segundo o presidente da Funai, a área pertence a eles, de acordo com “estudo feito por antropólogo brasileiro há pelo menos três gerações”.

Esses índios, cerca de 10 mil, não têm como viver de acordo com sua cultura no exíguo território de que dispõem. Em 2001, o livro Conflitos de Direitos Sobre as Terras Guarani/Kaiowá no Estado do Mato Grosso do Sul (Conselho Indigenista Missionário, Comissão Pró-Índio de São Paulo e Ministério Público Federal) já registrava na área 301 suicídios de índios desde 1986.

Embora outro livro – Kandire – o Paraíso Terreal (Te Corá Editora), do psiquiatra Sérgio Lecovitz – entenda que não se podem atribuir os suicídios apenas a fatores relacionados com choques culturais, outros pesquisadores entendem que eles são causa relevante. Sem espaço para serem índios, obrigados a viver fora de sua cultura, muitos guaranis/kaiowás cumprem a terrível trajetória: bóia-fria, alcoólatra, mendigo, louco. E muitos vão ao suicídio. Como o adolescente que no dia seguinte ao seu casamento se enforcou numa árvore e deixou escrito na areia, sob seus pés: “Eu não tenho lugar” (em 1994, após uma visita à área, o então procurador-geral da República, Aristides Junqueira, escreveu que “no Mato Grosso do Sul uma vaca tem mais espaço para viver que uma pessoa”).

Esses índios eram centenas de milhares no século 16, no Paraguai, na Argentina e no Brasil (RS, SC, PR, MS, SP, RJ e ES), escreveu o antropólogo Pierre Clastres, para quem “em poucos povos se testemunha uma religiosidade tão intensamente vivida: queremos ser deuses, eles dizem; mas só somos homens” (As Belas Palavras, Papirus Editora, 1990). Hoje são uns poucos milhares, que não desistem de buscar – como eles dizem – a “Terra Sem Mal”.

Ainda agora está em evidência o livro A Controvérsia de Valladolid (Companhia das Letras), em que Jean-Claude Carrière – roteirista de alguns dos melhores filmes de Buñuel – revive debate, mediado por um representante do papa, em que, na Espanha do século 16, se discutia se os índios americanos tinham ou não alma, podiam ou não ser escravizados ou mortos pelos colonizadores. Precisaremos de outro papa?

Washington Novaes
Texto originalmente publicado na coluna do autor em “O Estado de São Paulo”

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