A tarefa de levar aos brasileiros a realidade indígena

Cid Furtado, carta de abertura da 1ª edição da revista Brasileiros de Raiz

Em pleno século 21, o Brasil, tão reconhecido na aldeia global antevista pelo grande teórico da comunicação, Marshal Macluhan, tem dificuldades para reconhecer sua cultura original. Sua identidade mais pura. Permite assim, que a sociedade desconheça os habitantes da terra que existiam antes de a chamarmos Brasil. Milhões de índios tiveram suas vidas ceifadas pelo conquistador português e, ainda hoje, este País moderno permite a continuidade deste massacre, ensinando em suas escolas a história contada pelo vencedor, tratando-os com descaso e tornando-os invisíveis aos olhos da sociedade e governos.

Os indígenas só ganham visibilidade quando decidem lutar por seus direitos, enfrentando nossos preconceitos, ou quando surge um conflito com a sociedade não-índia. Essa situação, causada pela combinação de falta de informação e de iniciativa em mudá-la, foi o ponto de partida de nossa proposta de criar a revista Brasileiros de Raiz. Em suas páginas, vamos nos impor, permanentemente, a tarefa de levar ao cidadão brasileiro, informações sobre a realidade das comunidades indígenas de todo o País. Casualmente, enquanto preparávamos sua primeira edição, duas histórias nos chamaram a atenção para a importância do trabalho que pretendemos fazer.

Meu filho de 15 anos, cursando o 2º ano do ensino médio, numa das escolas consideradas de melhor nível de Brasília, explicou-me, conforme ouvira de seus professores, porque os indígenas teriam sido massacrados pelos colonizadores: “porque os portugueses presenciaram atos de antropofagia e teriam sido levados a crer que as comunidades indígenas brasileiras, de forma geral, tinham esta prática”. Esta seria a justificativa para os massacres.

O segundo relato aconteceu durante uma conversa recente com um ex-presidente da Funai. Ele me disse que seu filho, na 3ª série do ensino fundamental, também havia recebido informações, no mínimo distorcidas, estampadas em livro adotado por parte da rede de ensino da Capital Federal. Diz o livro que a chegada de escravos negros no Brasil deve-se ao fato de o índio não aceitar trabalhar.

Na verdade, na grande maioria das sociedades indígenas, homens e mulheres têm diferentes atribuições na comunidade. O indígena brasileiro não se adaptava a diversas práticas dos colonizadores, por diferenças culturais e muitos outros fatores como abrir mão de seu modo de vida, de sua liberdade e independência ou cumprir funções, tradicionalmente exercidas por mulheres nas comunidades indígenas. Detalhes culturais que fizeram e fazem toda a diferença na hora de analisar as questões indígenas.

Assim como muitos simpatizantes das causas indígenas, acreditamos que recolocar a história em seu trilho, dar voz e informações atualizadas e verdadeiras sobre os legítimos Brasileiros de Raiz, é uma importante contribuição para contarmos a verdadeira história dos povos indígenas.

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Revista Brasileiros de Raiz

A revista Brasileiros de Raiz surgiu como uma publicação dedicada exclusivamente à questão indígena com o intuito de trazer informações sem preconceitos sobre a realidade indígena brasileira. Para saber mais, entre em contato com redacao@brasileirosderaiz.com.br ou ligue para (61) 3202 30 92.
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Pare Belo Monte: NÃO à mega usina na Amazônia

Assine a petição contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte!

Confira carta da Avaaz.org sobre o assunto:

"O Presidente do IBAMA se demitiu ontem devido à pressão para autorizar a licença ambiental de um projeto que especialistas consideram um completo desastre ecológico: o Complexo Hidrelétrico de Belo Monte.

A mega usina de Belo Monte iria cavar um buraco maior que o Canal do Panamá no coração da Amazônia, alagando uma área imensa de floresta e expulsando milhares de indígenas da região. As empresas que irão lucrar com a barragem estão tentando atropelar as leis ambientais para começar as obras em poucas semanas.

A mudança de Presidência do IBAMA poderá abrir caminho para a concessão da licença – ou, se nós nos manifestarmos urgentemente, poderá marcar uma virada nesta história. Vamos aproveitar a oportunidade para dar uma escolha para a Presidente Dilma no seu pouco tempo de Presidência: chegou a hora de colocar as pessoas e o planeta em primeiro lugar. Assine a petição de emergência para Dilma parar Belo Monte – ela será entregue em Brasília, quando conseguirmos 150.000 assinaturas:

https://secure.avaaz.org/po/pare_belo_monte/?vl

Abelardo Bayama Azevedo, que renunciou à Presidência do IBAMA, não é a primeira renúncia causada pela pressão para construir Belo Monte. Seu antecessor, Roberto Messias, também renunciou pelo mesmo motivo ano passado, e a própria Marina Silva também renunciou ao Ministério do Meio Ambiente por desafiar Belo Monte.

A Eletronorte, empresa que mais irá lucrar com Belo Monte, está demandando que o IBAMA libere a licença ambiental para começar as obras mesmo com o projeto apresentando graves irregularidades. Porém, em uma democracia, os interesses financeiros não podem passar por cima das proteções ambientais legais – ao menos não sem comprarem uma briga.

A hidrelétrica iria inundar 100.000 hectares da floresta, impactar centenas de quilômetros do Rio Xingu e expulsar mais de 40.000 pessoas, incluindo comunidades indígenas de várias etnias que dependem do Xingu para sua sobrevivência. O projeto de R$30 bilhões é tão economicamente arriscado que o governo precisou usar fundos de pensão e financiamento público para pagar a maior parte do investimento. Apesar de ser a terceira maior hidrelétrica do mundo, ela seria a menos produtiva, gerando apenas 10% da sua capacidade no período da seca, de julho a outubro.

Os defensores da barragem justificam o projeto dizendo que ele irá suprir as demandas de energia do Brasil. Porém, uma fonte de energia muito maior, mais ecológica e barata está disponível: a eficiência energética. Um estudo do WWF demonstra que somente a eficiência poderia economizar o equivalente a 14 Belo Montes até 2020. Todos se beneficiariam de um planejamento genuinamente verde, ao invés de poucas empresas e empreiteiras. Porém, são as empreiteiras que contratam lobistas e tem força política – a não ser claro, que um número suficiente de nós da sociedade, nos dispormos a erguer nossas vozes e nos mobilizar.

A construção de Belo Monte pode começar ainda em fevereiro.O Ministro das Minas e Energia, Edson Lobão, diz que a próxima licença será aprovada em breve, portanto temos pouco tempo para parar Belo Monte antes que as escavadeiras comecem a trabalhar. Vamos desafiar a Dilma no seu primeiro mês na presidência, com um chamado ensurdecedor para ela fazer a coisa certa: parar Belo Monte, assine agora:

https://secure.avaaz.org/po/pare_belo_monte/?vl

Acreditamos em um Brasil do futuro, que trará progresso nas negociações climáticas e que irá unir países do norte e do sul, se tornando um mediador de bom senso e esperança na política global. Agora, esta esperança será depositada na Presidente Dilma. Vamos desafiá-la a rejeitar Belo Monte e buscar um caminho melhor. Nós a convidamos a honrar esta oportunidade, criando um futuro para todos nos, desde as tribos do Xingu às crianças dos centros urbanos, o qual todos nós podemos ter orgulho."

Avaaz.org

Leia mais:

Porque não devemos construir a usina de Belo Monte

Um dos mais polêmicos projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) liderado pela então ministra e agora presidente Dilma Roussef, a usina de Belo Monte promete ser um dos maiores crimes ambientais já realizados no Brasil.

Entenda o porquê:

Parte 1

Parte 2

Outras razões para não construirmos a usina de Belo Monte:

– Em outubro de 2009, um painel de especialistas debruçou-se sobre o Estudo de Impacto Ambiental realizado pelo governo e questionou os estudos e a viabilidade do empreendimento. Um mês antes, em setembro, diversas audiências públicas haviam sido realizadas sob uma saraivada de críticas, especialmente do Ministério Público Estadual, seguido pelos movimentos sociais, que apontava problemas em sua forma de realização (leia mais).

– Em fevereiro de 2010, o Ministério do Meio Ambiente concedeu a licença ambiental, também sem esclarecer questões centrais em relação aos impactos socioambientais. (leia mais)

– O ex-ministro da Agricultura e coordenador do Centro de Agronegócio da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Roberto Rodrigues, defende que o Brasil desperdiça, anualmente, o equivalente a três usinas de Belo Monte ao não utilizar o bagaço e a palha da cana-de-açúcar. (leia mais)

– O deslocamento de uma comunidade de sua área de origem, cultura e meio de vida, como já observado em outros casos de deslocamento compulsório por hidrelétricas, podem não ser indenizáveis por programas de apoio ou dinheiro. (leia mais)

– Belo Monte envolve a construção de uma usina sem reservatório e que dependerá da sazonalidade das chuvas. Por isso, em época de cheia a usina deverá operar com metade capacidade mas, em tempo de seca, a geração pode ir abaixo de mil MW, o que somado aos vários passivos sociais e ambientais coloca em xeque a viabilidade econômica do projeto. (leia mais)

– O país deveria investir em eficiência energética, reduzindo o desperdício de energia – hoje calculado em 38% – e apostando na modernização do parque hidrelétrico já existente.
Colocando em prática tais medidas até 2020, não somente o meio ambiente seria beneficiado com a redução da necessidade de usinas hidrelétricas, como também seria possível uma economia da ordem de R$ 33 bilhões para os consumidores (baixe o estudo em PDF)

– Se construída, a usina vai desviar e secar o Rio Xingu em um trecho de 100 quilômetros, conhecido como a Volta Grande, deixando o rio seco e povos indígenas, ribeirinhos, populações extrativistas e agricultores familiares sem água, peixe e meios de transporte. (leia mais)

O Relatório de Impacto Ambiental do Ibama listou os impactos da hidrelétrica, no qual o Ministério de Minas e Energia refuta, corrobora e aponta possíveis intervenções:

1. Geração de expectativas quanto ao futuro da população local e da região;
2. Geração de expectativas na população indígena;
3. Aumento da população e da ocupação desordenada do solo;
4. Aumento da pressão sobre as terras e áreas indígenas;
5. Aumento das necessidades por mercadorias e serviços, da oferta de trabalho e maior movimentação da economia;
6. Perda de imóveis e benfeitorias com transferência da população na área rural e perda de atividades produtivas;
7. Perda de imóveis e benfeitorias com transferência da População na área urbana e perda de atividades produtivas;
8. Melhorias dos acessos;
9. Mudanças na paisagem, causadas pela instalação da infra-estrutura de apoio e das obras principais;
10. Perda de vegetação e de ambientes naturais com mudanças na fauna, causada pela instalação da infra-estrutura de apoio e obras principais;
11. Aumento do barulho e da poeira com incômodo da população e da fauna, causado pela instalação da infraestrutura de apoio e das obras principais;
12. Mudanças no escoamento e na qualidade da água nos igarapés do trecho do reservatório dos canais, com mudanças nos peixes;
13. Alterações nas condições de acesso pelo Rio Xingu das comunidades Indígenas à Altamira, causadas pelas obras no Sítio Pimental;
14. Alteração da qualidade da água do Rio Xingu próximo ao Sítio Pimental e perda de fonte de renda e sustento para as populações indígenas;
15. Danos ao patrimônio arqueológico;
16. Interrupção temporária do escoamento da água no canal da margem esquerda do Xingu, no trecho entre a barragem principal e o núcleo de referência rural São Pedro durante 7 meses;
17. Perda de postos de trabalho e renda, causada pela desmobilização de mão de obra;
18. Retirada de vegetação, com perda de ambientes naturais e recursos extrativistas, causada pela formação dos reservatórios;
19. Mudanças na paisagem e perda de praias e áreas de lazer, causada pela formação dos reservatórios;
20. Inundação permanente dos abrigos da Gravura e Assurini e danos ao patrimônio arqueológico, causada pela formação dos reservatórios;
21. Perda de jazidas de argila devido à formação do reservatório do Xingu;
22. Mudanças nas espécies de peixes e no tipo de pesca, causada pela formação dos reservatórios;
23. Alteração na qualidade das águas dos igarapés de Altamira e no reservatório dos canais, causada pela formação dos reservatórios;
24. Interrupção de acessos viários pela formação do reservatório dos canais;
25. Interrupção de acessos na cidade de Altamira, causada pela formação do Reservatório do Xingu;
26. Mudanças nas condições de navegação, causada pela formação dos reservatórios;
27. Aumento da quantidade de energia a ser disponibilizada para o Sistema Interligado Nacional – SIN;
28. Dinamização da economia regional;
29. Interrupção da navegação no trecho de vazão reduzida nos períodos de seca;
30. Perda de ambientes para reprodução, alimentação e abrigo de peixes e outros animais no trecho de vazão reduzida;
31. Formação de poças, mudanças na qualidade das águas e criação de ambientes para mosquitos que transmitem doenças no trecho de vazão reduzida;
32. Prejuízos para a pesca e para outras fontes de renda e sustento no trecho de vazão reduzida.

Entrevista Orlando Villas Bôas

Em 1944, Orlando, Cláudio e Leonardo já haviam deixado São Paulo e integravam o quadro da "Marcha para o Oeste" se passando por sertanejos analfabetos. Pouco tempo depois, quando foram desmascarados, passaram a comandar certas atividades nas bases de apoio. Com a descoberta dos índios no caminho e a desistência do chefe oficial, coronel Vanique, de acompanhar a vanguarda da expedição, os três irmãos assumiram o comando da equipe que iria desbravar o oeste brasileiro.

Rota:Como você vê, hoje, a expedição?

Orlando: A expedição foi um movimento de interiorização criado pelo Getúlio. O Brasil Central era uma área vazia. Você vê, por exemplo, a Serra do Roncador, hoje, deve ter umas quinze cidades. Tudo isso foi idéia do Getúlio, ele queria provocar o processo de interiorização.

Rota: E a região central brasileira era totalmente desconhecida?

Orlando: Nós fizemos avançada no rio Maritsauá e não tinha nada, só índio. Que nos deram sustos prá daná. Hoje está cheio de cidades, e era isso que o Getúlio queria. Porque quando ele saiu de vôo e foi até o Araguaia, ele voltou escandalizado. Ele disse: “É o branco do Brasil Central.” Quer dizer, nós estamos em um país vazio. E naquela época, o mundo estava em guerra. Na Europa levataram essa perspectiva do espaço vital. A Europa estava superpovoada, e falava-se de ocupar esses vazios do Brasil Central com as populações excedentes européias. Um cidadão, grande político europeu, não sei se era francês, declarou que já estava na hora de ocupar os vazios do Brasil Central com as populações excedentes da Europa. Aí ele veio aqui e foi muito mal recebido, o presidente do estado não quis recebê-lo. Ele não quis receber a figura do governo francês, por causa das declarações que ele deu lá. E então essa idéia começou a ceder devagarinho, porque não estávamos disposto a ceder terras para a população européia, o Brasil estava demograficamente explodindo. Isso que eu estou falando é 1943, 44, tínhamos 40 milhões de habitantes. Agora, veja você, hoje nós temos 200 milhões! Um salto canalha! Pra você ver uma coisa, em 50, 60 anos, triplicou a população! Daí veio o plano da "Marcha para o Oeste".

Chegando na margem do Rio das Mortes, a expedição tinha de caminhar com Coronel Vanique (primeiro chefe da expedição), mas ele tirou o corpo fora por causa dos índios xavantes. Foi quando o (ministro) João Alberto chegou e disse assim: "Coronel, porque que tu não fazes o seguinte, tchê. Ponha a vanguarda da expedição com estes três rapazes, os três irmãos Villas Bôas, eles são dispostos". Aí, o Vanique ficou no Rio das mortes e nós entramos com a expedição. Quer dizer, o Cláudio e o Leonardo. Fiquei porque o grupo, eram oito sertanejos, teria que ter o abastecimento e eu cuidava da tropa. Toda semana eu, Vergílio e mais outro sertanejo, nós saímos com quatro ou cinco mulas levando a carga pro pessoal da expedição. Nisso nós levamos um ano atravessando a Serra do Roncador até que chegamos nas matas do Rio Kuluene. Pelo caminho nós íamos fazendo ranchos e os índios iam queimando os ranchos. Tinha que ter um cuidado danado, a gente chegava com a tropa amarrava os burros e eles cortavam a corda durante a noite e chegava de manhã e a burrada tinha fugido toda. Aí você precisava procurar burro… putz… era um perigo desgraçado porque tinha índio pra daná naquele tempo mas eles não atacaram a gente nenhuma vez. Só uma vez que eles fizeram uma tocaia muito grande.

Foi uma sorte nossa, os trabalhadores estavam caminhando, eram mais ou menos uns 15 trabalhadores, e o encarregado do rumo era o Cláudio, ele estava com a bússola. Chegou uma hora lá que começou uma gritaria de índio do lado direito da picada, era mulher, criança e homem fazendo barulho e avançando. O Cláudio reuniu todos num lugar só e ficou ali e aquela coisa se aproximando, se aproximando. Por uma sorte danada, tinha um cupim enorme na picada e o Cláudio resolveu subir nele – era um cerrado baixo – para ver se enxergava alguma coisa da gritaria que estava chegando. Só que o Cláudio subiu olhando para cá e a gritaria vinha do outro lado, quando ele subiu foi exatamente na hora que um grupo de uns 40 ou 50 índios xavantes com uma folha de palmeira na frente levantou e saiu correndo, eles iam chegando camuflados. Aí o Cláudio gritou pro pessoal, nossos homens eram todos armados, mandando apontar os mosquetões pra cima e deu uma descarga de tiro pro ar. A gritaria parou e os índios de cá fugiram, eles ficaram com medo daquele tiroteio danado, mas não foi nenhum tiro pro lado deles. Aí os índios passaram a nos vigiar e nos seguir. Há uns 500m, 1km na picada a gente percebia eles nos acompanhando. Até que nós chegamos na mata, lá os índios voltaram. Os xavantes não gostam de mata, eles são índios do cerrado. Ali nós fizemos um campo que hoje é uma cidade chama-se Garapu e no rastro nosso, esses acampamentos todos que fomos fazendo, foram se transformando em cidades: Canarana, Água Boa, Garapu… Hoje tem mais ou menos 18 cidades na Serra do Roncador.

Veja Também:

O fascínio de uma das regiões mais inexploradas do mundo e as visitas ilustres à expedição.

Os momentos de tensão durante os anos da Marcha para o Oeste.

Orlando e sua esposa, Marina Villas Bôas, contam um pouco sobre a família do índio brasileiro, a situação da mulher e da criança na tribo.

Documentário

Ouça o documentário produzido para o Rota Brasil Oeste sobre o trabalho dos irmãos Villas Bôas e a Marcha para o Oeste.

Invasão Branca

No pouco tempo que estivemos no Alto Xingu, foi possível perceber a dimensão, complexidade e o pouco interesse da mídia sobre a questão indígena. Seria necessário um trabalho maior e mais aprofundado para mostrar a situação atual da reserva, porém, nestes dez dias que passamos entre as aldeias e Posto Indígena Leonardo Villas Bôas conhecemos alguns dos problemas da comunidade xinguana.

Enfrentando cada uma destas questões há várias décadas, o índio está cada vez mais preparado para encará-las com seus próprios recursos. No livro “Parentesco, Ritual e Economia no Alto Xingu”, publicado no ano de 1975, o antropólogo George Zarur aborda este tema: “o ideal é que a Funai possa se limitar a uma assistência básica e garantir a terra e que os xinguanos tenham a consciência de uma realidade que lhes permita entender o valor de sua cultura nativa(…), é importante que seja transferido aos índios os instrumentos ideológicos para uma interação simétrica e com dignidade com a sociedade nacional”. Vinte e seis anos depois, o movimento indígena continua lutando contra o excesso de interferência de instituições externas como o Instituto Sócio-Ambiental, a Funasa e a própria Funai.

riokuluene.jpgDiferente de outras áreas índigenas do Brasil, que foram praticamente dizimadas, o Xingu foi privilegiado pelo bem sucedido trabalho político e de preservação realizado pelos irmãos Villas Bôas. Atualmente, esta responsabilidade recai sobre os ombros de lideranças esclarecidas, como o cacique Aritana. Sofrendo pressões das mais diversas formas, ele continua firme na defesa dos interesses xinguanos: “O Orlando já fez coisa demais para nós, agora é nossa vez de cuidar daqui. Nós não queremos mais o branco mandando e defendendo a gente, queremos que os próprios índios se relacionem com o governo, mandem documentos, contratem médicos e professores”, afirma o cacique.

Rio Kuluene, um dos ameaçados pela devastação das nascentes fora da área indígena do Xingu. Foto: Fernando Zarur

Preservação Cultural

Em primeiro lugar, é preciso lembrar a heterogeneidade entre as etnias, que varia muito com a liderança. Os Yawalapiti, liderados pelo cacique Aritana, são um exemplo de consciência ambiental e cultural. A aldeia, assim como todas as outras, tem diversas interferências do mundo externo, como televisão, barco a motor e rádio. No entanto, os Yawalapiti ainda obedecem a um cotidiano tipicamente indígena: não há horário para comer, o trabalho é coletivo e os rituais religiosos são muito respeitados.

Manter este estilo de vida, aparentemente simples, depois de mais de meio século de contato com o não-índio pode ser considerado uma façanha. Esta luta teve início na década de 1950, quando os irmãos Villas Bôas começaram a conversar e a preparar alguns índios para reagir ao inevitável processo de devastação cultural vindo dos grandes centros urbanos. Parú, pai de Aritana, conta que Orlando o ensinava a lidar com os brancos, explicando como muitas coisas aconteciam lá fora. “Ele (Orlando) falava pra mim: ‘Estou ensinando você, e você precisa passar isso para os seus filhos e netos’. Foi isso que fiz”, conta Parú.

Por outro lado, nem todas as tribos do Alto Xingu compartilham desta mentalidade. Diversos povos estão ameaçados a perder sua cultura original. Recentemente, algumas aldeias vêm sendo assediadas por empresários norte-americanos interessados em investir em turismo dentro do Parque. O projeto sofreu forte objeção das lideranças e foi vetado pela Funai. O turismo significaria a destruição da identidade étnica do Xingu, transformando-a em artificial. Mesmo assim, um pequeno hotel foi construído dentro da aldeia Kamaiurá.

Educação

É necessário um enorme cuidado com a educação dentro do Xingu. Os índios sentem a necessidade de educar e conscientizar o jovem, porém, este pode ser um dos caminhos mais rápidos para a aculturação. O ideal, na visão do cacique Aritana, seria contar com professores da própria aldeia, que conhecessem e respeitassem o cotidiano tradicional da tribo. Esta preparação já está sendo feita, mas por enquanto não existem profissionais indígenas formados.

Os professores não-índios que atuam no Posto Leonardo Villas Bôas sofrem com uma série de obstáculos, como salários atrasados e falta de preparo específico sobre a realidade xinguana. O material didático utilizado, por exemplo, foi produzido pelo município de Gaúcha do Norte-MT e utiliza ilustrações de índios garimpando ou entre padres.

Atualmente, quem mais tenta investir na educação xinguana é o Instituto Sócio-Ambiental (ISA), organização não governamental que atua na questão indígena em todo território nacional. Com plantas para construção de escolas e programas educacionais prontos, o instituto enfrenta a resistência das lideranças do Alto Xingu para lançar seus projetos.

Exploração Econômica

A exploração econômica de seus recursos naturais é outra questão de extrema importância para os índios do Alto Xingu. A interferência de instituições e empresas internacionais dentro do território indígena, é um problema constante.

O próprio trabalho do Instituto Sócio-Ambiental – com a intenção de ajudar e procurar alternativas de renda para a comunidade indígena – não é visto com bons olhos na região. “Eles vem para cá e começam a fazer os projetos, a gente não sabe de nada. Além do mais, ninguém pediu para eles virem para cá” afirma Kokoti, chefe do Posto Indígena Leonardo Villas Bôas.

O último projeto do instituto nesta área, está relacionado à produção de óleo de pequi, em parceria com a indústria de cosméticos Natura. Quando chegamos a aldeia Yawalapiti, os homens estavam sentados no centro da aldeia lendo uma edição da revista Exame. Na matéria, este projeto estava descrito como uma ótima oportunidade de negócio, sob o título: “O Tesouro Verde”. Aritana reclamou da mesma forma: nenhum índio do Alto Xingu havia sido consultado previamente sobre a iniciativa. Financiado por grandes organizações internacionais, o ISA tem uma forte presença entre a comunidade ao norte do Parque, mas é visto com muita desconfiança pelas lideranças do sul.

A biodiversidade, aliás, é um dos pontos mais vulneráveis do Parque. São muitas as histórias de pesquisadores estrangeiros que ganharam bilhões de dólares a custo do conhecimento indígena. Cada vez mais, as ervas e os segredos de raizeiros, como Parú, são alvo das multinacionais. O tradicional urucum, por exemplo, foi patenteado por entidades americanas. A banha de sucuri, usada há anos pelos índios como alívio para contusões, teve seu princípio ativo descoberto e hoje é utilizado em diversos medicamentos.

Da mesma forma que as plantas, o subsolo do Xingu está entre os mais visados no mundo. A região ainda é preservada da exploração de empresas do ramo, mas há quem veja isso como um grande problema para o futuro.

Um exemplo de como essas ameaças são reais é o mistério de um helicóptero que visitou a reserva por volta de março deste ano. Os índios Mehinako avistaram a aeronave pousando próximo às roças da aldeia. Ao aproximarem-se, os tripulantes levantaram vôo rapidamente e fugiram. Por mais de uma vez, o barulho das hélices foi ouvido dentro do Parque e a Funai foi comunicada, mas até agora os propósitos destas visitas são desconhecidos.

Devastação ambiental

Nos últimos anos, porém, a principal preocupação dos xinguanos é a devastação da cabeceira dos rios que formam a bacia do Xingu. Com o avanço do desmatamento das fazendas em torno da reserva, em poucos anos as águas que abastecem todas as aldeias do Parque podem estar contaminadas com agrotóxicos e metais pesados. Além disso, toda a a

limentação indígena é baseada no peixe. Caso haja uma diminuição nos cardumes, haverá fome entre as tribos.

Visando solucionar este assunto, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) já começou um programa para construir poços artesianos como alternativa de água potável. No entanto, isto seria um paliativo para uma situação que será desesperadora para a maior parte das aldeias do Xingu.

É urgente a criação de um movimento de conscientização para a preservação das margens dos rios formadores do Xingu, não só pelos índios, mas também pela preservação de todo o ecossistema da região.

Xingu 40 Anos

O Parque Indígena do Xingu é considerada a maior e uma das mais famosas reservas do gênero no mundo. Criado em 1961, durante o governo de Jânio Quadros, foi resultado de vários anos de trabalho e luta política, envolvendo os irmãos Villas Bôas, ao lado de personalidades como Marechal Rondon, Darcy Ribeiro, Noel Nutels, Café Filho e muitos outros.

Localizado ao norte do Mato Grosso, numa área com cerca de 30 mil quilômetros quadrados, seu território abriga mais de uma dezena de etnias, entre elas: Waurá, Kayabi, Ikpeng, Yudja, Trumai, Suiá, Matipu, Nahukwa, Kamaiurás, Yawalapitis, Mehinakos, Kalapalos, Aweti, Kuikuro.

Sobre a idéia original do Parque, Orlando Villas Bôas conta que a intenção era conservar os povos e a natureza da região. “O governo brasileiro, ao criar o Parque, procurou cumprir dois importantes objetivos: constituir uma reserva natural para a fauna, flora e, sobretudo, fazer chegar diretamente às tribos sua ação protetora”, explica o sertanista.

futebolxingu.jpgEm 40 anos de existência, o Xingu passou por diversas mudanças que coincidem com a história da questão indígena nas últimas décadas. No início, a filosofia aplicada pelos Villas Bôas visava proteger o índio do contato com a cultura dos grandes centros urbanos. Na época, por exemplo, não era permitido nem usar chinelos ou andar de bicicleta, para que nada mudasse no cotidiano tribal.

Cada vez mais popular no Xingu, o esporte é praticado por quase todas as aldeias, em campos improvisados no pátio central. Foto: Bruno Radicchi

Com a saída de Orlando e Cláudio Villas Bôas da direção do Parque, em 1973, este pensamento começou a mudar. O administrador seguinte, Olímpio Serra, começou a contratação dos primeiros funcionários indígenas da Funai, dando o primeiro passo para uma maior representação das comunidades.

Em 1982, o Xingu teve seu primeiro diretor índio, o cacique Megaron, da tribo Kaiapó. Desde então, outros começaram a se preparar e assumir diversos cargos dentro do Parque. Atualmente, eles detêm a maioria dos postos administrativos, protegendo suas próprias fronteiras e prestando assistência à comunidade.

Hoje, o caminho buscado pelas comunidades é a fundação de sociedades indígenas e Organizações Não Governamentais (ONG). O próprio Parque Indígena do Xingu conta com cinco dessas associações. Desse total, a mais abrangente é a Associação Terra Indígena Xingu (Atix), criada em 1994, que tem a pretensão de alcançar uma grande abrangência política dentro do Parque.

O indigenista Guilherme Carrano, que acompanhou a formação de diversas organizações indígenas, explica que uma das principais vantagens deste tipo de iniciativa é a autogestão da comunidade. “A criação de uma associação ou ONG possibilita que os índios busquem apoio para seus projetos sem intermediários”, afirma Carrano.

Uma das principais lideranças xinguanas, o cacique Aritana, da tribo Yawalapiti, acredita que o movimento indígena precisa lutar para garantir sua autonomia total, sem depender do não-índio. “O Orlando já fez coisa demais para nós, agora é nossa vez de cuidar daqui. Nós não queremos mais o branco mandando e defendendo a gente, queremos que os próprios índios se relacionem com o governo, mandem documentos, contratem médicos e professores”, afirma o cacique.

Entrevista: Dr. Roberto Baruzzi – Saúde no Parque

Atendendo em todo o Parque Indígena Xingu, a Escola Paulista de Medicina (EPM) tem um importante papel na saúde dos índios da região. Trabalhando a quase trinta anos na reserva, atualmente a EPM, em convênio com o Ministério da Saúde, é responsável pelo distrito especial indígena do Xingu.

O médico Roberto Baruzzi foi o principal responsável pelo o início desta parceria, “O Orlando (Villas Bôas) já conhecia nosso currículo, havia muito interesse em nos encontrar, faltava só o momento propício”.

Grupo – Como começou o envolvimento da Escola Paulista de Medicina no Xingu?

Dr. Baruzzi – Nós já tínhamos iniciado um trabalho conjunto no vale do Araguaia, com médico, enfermeiros e alunos. Por acaso em 1964, eu vinha lá do Araguaia, no Sul do Pará, e o avião desviou da rota e posou no Parque para deixar um piloto da FAB na base do Jacaré. Aí eu desci no Posto Leonardo e veio o Orlando trazendo um doente. Eu fui ver este doente e fiquei interessado, né. Voltei pra São Paulo e fiquei querendo encontrar os Villas Bôas, eu percebi que era uma política diferente lá.

dentistasxingu.jpgEntão, acontece que eu li no Jornal que o Cláudio ia ser operado no (hospital) Santa Catarina e fui lá vê-lo. Mas eu titubiei um pouco, quando cheguei, ele tinha tido alta. Então, perdi a oportunidade. Depois li no Jornal que o Orlando ia fazer uma palestra e fui lá, eu já conhecia o Orlando mesmo. Mas quando entrei no corredor, cruzei com ele, nos cumprimentamos e ficou por isso mesmo.

Mantendo equipes permanentes dentro do Parque, a Escola Paulista de Medicina presta atendimento médico e odontológico aos índios do Xingu. Foto: Fábio Pili

Depois de uns tempos aconteceu do Orlando vir trazer um doente. Quem atendeu a porta foi um residente meu que havia estado comigo no Araguaia, então ele me chamou. Aí recebi um convite para fazer uma avaliação das condições de saúde do Parque. O Orlando já conhecia nosso currículo, tinha visto no jornal, já havia muito interesse em nos encontrar, faltava só o momento propício.

Então fomos, e vimos que era preciso uma ação regular de saúde. O Parque foi criado em 61 e estávamos em 65, precisávamos de um plano regular de vacinação, um plano regular de assistência e uma retaguarda hospitalar. Então, a cidade mais próxima do Xingu, na verdade, era São Paulo. Que todos os centros urbanos eram muitos distantes, mas São Paulo tinha a linha da FAB semanal. O avião saía daqui, o DC3, da época da Segunda Guerra, banco lateral, desconfortável, mas levava vinte pessoas para onde você queria.

Daí foi ótimo, muito bom porque o hospital daqui funcionou como retaguarda hospitalar. Então estabelecemos que iriam quatro equipes periódicas no ano. Cada aldeia, graças à ficha médica, começou a ter um plano de vacinação e chamávamos o índio pelo nome e, ao mesmo tempo, em caso de emergência, tínhamos a retaguarda hospitalar. Este foi o plano, íamos quatro vezes por ano: janeiro, abril, julho e setembro.

Grupo – De que maneira vocês faziam o trabalho de prevenção de epidemias na época?

Dr. Baruzzi – Em 1965 houve um grande risco de doenças que poderiam ser evitadas por vacinas. O sarampo era uma grande ameaça. Tinha havido, onze anos antes, em 54, uma epidemia que pegou 600 índios e morreram 114. Isto está descrito nos relatórios do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e tem até um livro do José Mauro Vasconcelos, o romancista, onde ele conta um episódio deste. Então, tínhamos esta memória muito triste. E a malária tinha uma incidência muito grande, era a principal causa no momento de mortalidade e doenças.

Por outro lado, encontramos também índios chamados de cultura pura. Que estavam ainda em relativo isolamento com a sociedade brasileira. O acesso ao Parque era só por avião e era controlado e os índios também não tinha facilidade pra sair. Isto me chamou a atenção também pela diversidade dos índios lá dentro. Na época eram 14 tribos, completamente diversas e pertencentes aos quatro maiores troncos linguísticos: Aruak, karibi, jê e o tupi.

Este foi o panorama que encontramos. Fomos muito bem aceitos porque havia o preparo também do Orlando e do Cláudio, explicando o que nós fomos fazer, o que era a vacina. Não houve grandes problemáticas.

Grupo – E como era a relação de vocês com os Pajés?

Dr. Baruzzi – Nós levamos conosco o compromisso de respeitar ao máximo a cultura dos índios e respeitar a prática dos Pajés. Quer dizer, desde o começo tivemos um bom relacionamento com eles. As coisas quase se complementam, eles têm o sistema deles e a lógica deles. O teoria das doenças deles obedece a outro mecanismo que não o nosso. Para nós é o agente, o vírus, para eles tem outras explicações. Mas os dois se congregam em benefício da saúde.

Muitas vezes chegávamos numa casa e o Pajé estava fazendo o trabalho dele, os cânticos, a fumaça, enfim, a pajelança. A gente assistia a pajelança e vice-versa, as vezes, chegávamos antes e o Pajé esperava. Às vezes a gente dizia, "essa criança tem que sair, tem que ir pra São Paulo" e o Pajé, "ah, não sei, vou pensar". Porque o Pajé faz toda aquela proteção, né. O trabalho do Pajé é tão interessante que, por exemplo: uma vez nós fizemos os curso do agente e saúde no Diauarum e levávamos os índios do Alto Xingu. Eles só iam depois que o Pajé os preparasse para que eles fossem, para enfrentar as entidades malígnas da parte norte.

Então, nós sempre tivemos um bom relacionamento com os Pajés. Como diz o Orlando: "O médico ajuda a curar, o Pajé leva a fama e cobra". E cobra em espécie (geralmente colar de caramujo) faz parte, né.

Grupo – E como você acha que o Pajé entendia a ação do médico?

Dr. Baruzzi – Eu acho o seguinte, eles viam mais um reforço, "chegou mais alguém para me ajudar na saúde". É muito difícil para nós dizermos que entendemos o mecanismo do Pajé e ele dizer que entende o nosso trabalho. São linhas diferentes de compreensão.

Grupo – Atualmente, a atuação da Escola Paulista de Medicina continua do mesmo jeito?

Dr. Baruzzi – No ano passado (1999) foram criados os distritos sanitários indígenas, que ficam ligados ao Ministério da Saúde, à Fundação Nacional da Saúde. Lá tem o setor de saúde indígena, esta é a nova política. São 34 distritos em todo o país, divididos por critérios geográficos, étnicos e epidemológicos. Para fazer estes distritos, o Ministério da Saúde faz um convênio com entidades que atuam na área, no caso do Xingu – como nós estamos há muito tempo lá – o convênio é com a Escola Paulista de Medicina. Somos responsáveis pelo distrito especial indígena do Xingu.

Nossa sede é Canarana, uma cidade de mais ou menos 26 anos, fundada por gaúchos. Lá tem hospital, temos casa, tem a casa do índio, funciona na nossa base. Ela fica no sul do Parque. Para chegar lá a gente pega um avião pequeno em Goiânia e tem gente que vai por terra mesmo.

Grupo – A Escola Paulista de Medicina mantém equipes permanentes dentro do Parque?

Dr. Baruzzi – Mantemos. Tem médico, enfermeira e hoje trabalhamos também com a formação do agente indígena de saúde. Isto é uma coisa dos últimos anos, a comunidade escolhe quem vai fazer os cursos. É um curso de capacitação e formação. Isto tudo é muito complexo. E o índio tem, por exemplo, a dificuldade da alfabetização, uns escrevem bem e outros não.

O curso aborda todas as condições de saúde, como acontece a doença… Quer dizer, a idéia

é preparar pessoas para fazer o primeiro atendimento, as coisas mais simples. Porque na aldeia ele está trabalhando com a sua comunidade e ele tem a facilidade de comunicar com o posto. Comunicando com o posto, o pessoal de saúde vai e busca o paciente. O posto comunica com Canarana onde tem o hospital e Canarana comunica com a gente.

Então, este curso está caminhando. Caminhando tão bem, que alguns já estão passando pra próxima fase: o auxiliar indígena de enfermagem. Conseguimos que o governo reconhecesse essa figura. Esta é uma coisa nova também no país.

Entrevista: cacique Aritana Yawalapiti

O cacique Aritana, 51 anos, é hoje a mais respeitada liderança do Alto Xingu. Desde quando assumiu a chefia dos Yawalapiti, há cerca de 20 anos, ele luta pela preservação da cultura e dos hábitos dos índios xinguanos. “É muito difícil mostrar aos jovens a importância de manter nossos costumes, mas com conversa eles estão vendo que é melhor sermos o que a gente é: índio”, explica o cacique.

Preparado desde cedo para ser cacique, Aritana conheceu os irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas ainda criança, no final da década de 1950. “Aprendi muito com eles sobre a importância de se preservar os hábitos antigos”, conta o chefe. Sob estas influências, ele se tornou um grande líder da causa indígena dentro e fora do Xingu.

Grupo – A educação indígena, desde a época que os Villas Bôas estavam no parque, era uma questão polêmica. Eles defendiam que o índio deveria ter o mínimo possível de contato com a cultura do branco. Como está isso hoje?

aritanaentrevista.jpgAritana – É triste, mas eu acho que alguns projetos de educação estão acabando com a cultura do Alto Xingu. Já vejo que os jovens não gostam mais tanto de falar sua língua, preferem usar roupa e estão mais interessados nas coisas do branco. O problema é que os professores ensinam os valores dos brancos e os jovens param de respeitar as tradições. O Kuarup, por exemplo, é uma festa muito séria e importante pra gente. É a festa dos mortos. E no último Kuarup eu percebi que alguns jovens achavam que isso é brincadeira.

Na época do Orlando (Villas Bôas), por exemplo, havia preocupação em manter a cultura e a educação do jeito do índio. Eu era pequeno e ficava chateado, perguntando porque o Orlando não dava chinelo e bicicleta. Depois é que eu fui entender que era pra gente manter a força na perna. Se a criança anda de chinelo o dia todo ela não consegue mais subir em árvore.

"É o índio que tem que falar seu direito, que tem que preparar documento. A saúde, é o branco que está mandando, a mesma coisa a educação. Mas eu quero é que o índio contrate o médico, o professor, e manda pra cá". Foto: Fernando Zarur

Grupo – Existem propostas de geração de renda para as aldeias, principalmente por meio do turismo. Como você vê essa situação?

Aritana – Estão sempre procurando a gente para fazer projetos. Nossa aldeia aqui é o primeiro lugar em que eles passam, mas eu sempre digo que não. A primeira proposta que recebi era pra colocar lanchas de luxo e um avião trazendo gente de uma fazenda perto do parque para a aldeia. Recebemos propostas quase todo dia. Recusamos porque não queremos nem precisamos do dinheiro de branco para viver bem aqui.

Outras tribos já aceitaram porque querem dinheiro. O problema aqui é que as tribos que aceitam visitas de turistas deviam reunir as lideranças do Xingu para conversar sobre a questão, mas isso não acontece. Tivemos uma reunião em Brasília para discutir o problema, e foi uma discussão brava, mas nós não abrimos mão da nossa posição contra turismo aqui. Tem que ser firme. No final, todo mundo que aceita turista se arrepende.

Grupo – E você acha que o índio está bem representado politicamente pela Funai e pelas ONGs que trabalham por aqui?

Aritana – Não queremos mais o branco mandando e defendendo a gente. A gente quer que os próprios índios se relacionem direto com o governo e mandem documentos falando dos problemas. A saúde é o branco que está mandando. A mesma coisa com a educação. Mas eu quero que o índio contrate o médico, o professor e mande pra cá. É só assim que a gente vai poder cuidar bem de verdade dos nossos interesses.

Grupo – E no futuro, quando os novos estiverem no comando das aldeias, como vai ser?

Aritana – Nós ensinamos aos jovens que é bom aprender a língua do branco para não ser enganado. O que tem que acontecer é aprender o que o branco tem de bom, mas não perder nossa cultura. Hoje a gente já usa barco a motor para as viagens longas e tem televisão na aldeia pra saber das notícias, mas eu não deixo as crianças verem televisão muito tempo.

Os índios aqui do Alto (Xingu) são mais preservados, mas os do Baixo tiveram mais contato com os brancos, então eles ficaram dependentes das coisas de branco. Os Caiabis, por exemplo, vieram da região de Rio Peixoto, que foi estragada por seringueiros e garimpeiros. Eles gostam muito daqui do Xingu, mas ainda precisam muito das coisas do branco, como roupa, sabonete e sal. Aqui a gente tem tudo que precisa.

Posto Leonardo Villas Bôas

Leonardo Villas Bôas, ao lado de Orlando, Cláudio e personalidades como Marechal Rondon, Noel Nutels e Darcy Ribeiro, foi um dos idealizadores do Parque Indígena do Xingu. Infelizmente, no mesmo ano da criação da reserva, 1961, Leonardo morreu de problemas cardíacos. Como homenagem ao seu trabalho desde o início da Expedição, o antigo posto indígena Capitão Vasconcelos, principal base do Alto Xingu, foi renomeado Leonardo Villas Bôas.

Localizado às margens do rio Tuatuari, o posto atende a mais de oito etnias, como Kuikuros, Kalapalos, Iaualapiti, Kamaiurá, Waurá e Aweti. O local foi escolhido ainda na época do avanço da Expedição Roncador Xingu, pois era necessária a construção de uma ampla pista de pouso, com capacidade para receber aviões maiores, melhorando a capacidade de abastecimento do grupo.

casapostoleonardo.jpgDepois de procurar em diversas praias, finalmente foi encontrado um local ligeiramente elevado e plano, com terreno firme, banhado por um rio de águas limpas e com peixe em abundância. O índio Parú, rezador e raizeiro dos iualapiti, acompanhou Orlando na busca e lembra que os expedicionários sofriam muito com falta de abastecimento, comendo apenas mel e peixe.

Antiga casa de Orlando (esq.) ao lado da casa onde morou Marina Villas Bôas. Os prédios continuam sendo utilizados como alojamento. Foto: Fernando Zarur

O trabalho de apenas cinco índios Iualapiti, conta Parú, conseguiu abrir e inaugurar em pouco tempo o campo de pouso. Utilizando aeronaves, especialmente do CAN (Correio Aéreo Nacional, serviço da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos), foi possível trazer material e pessoal, especialmente médicos e enfermeiros, para atender aos indígenas. A base rapidamente tornou-se um dos principais pontos de apoio à Expedição.

Foi no posto Leonardo que Orlando Villas Bôas conheceu sua mulher, Marina, trabalhou e morou até 1973. Após anos dentro do parque, o sertanista foi substituído por Olímpio Serra, administrador do Xingu por três anos. Olímpio foi responsável pela contratação dos primeiros índios como funcionários da recém-criada Fundação Nacional do Índio (Funai).

O posto continuou administrado por não-índios até 1981, quando assumiu a chefia do parque o indigenista Cláudio Romero. Ele foi um dos principais articulistas para, finalmente em 1982, transferir a administração do Xingu a um índio, o cacique Megaron, da tribo Kaiapó.

Uma das primeiras medidas de Megaron foi transferir para índios o controle dos postos indígenas e de vigilância do parque. Assim, a administração do Leonardo ficou a cargo do índio Piracumã, da tribo Iaualapiti, irmão do cacique Aritana e atual diretor do Parque Indígena do Xingu.

Atualmente chefiado por Kokoti Aweti, o posto continua sendo um dos pontos mais movimentados do Xingu. Além de receber visitantes e pesquisadores durante o ano inteiro, a unidade presta atendimento médico, odontológico e abastece toda a região do Alto Xingu.

Xingu: Primeiras Impressões II

Acordamos com o movimento ao raiar do dia. No meio da aldeia encontramos alguns homens, inclusive Ualá e seu tio avô Aiupu, que conhecemos em Brasília. Acompanhando o resto da aldeia, seguimos para tomar nosso banho matinal. O que impressionou no Tuatuari, afluente do Xingu, foram a água inacreditavelmente morna e a quantidade de peixes que pulavam.

Conversando com o pessoal descobrimos um fato curioso: a maior parte dos Yawalapiti é vascaína. Entre os mais de duzentos índios da tribo, existem apenas cinco flamenguistas e o Ualá, que é fluminense. Depois disso, fomos convidados para ver a pesca com timbó.

Parte da tradição xinguana, este tipo de pesca acontece uma vez por ano, quando o rio começa a baixar. Os índios fecham um pequeno canal com redes de pesca e batem n’água com uma planta chamada timbó. A seiva deste cipó entorpece os peixes, deixando-os sem oxigênio. Em desespero eles começam a nadar próximo à superfície, boiar e até pulam pra dentro das canoas, estrategicamente posicionadas.

criancasxingu.jpgDepois de uma reza para que os peixes pulem, o timbó começa a ser batido. Os primeiros a terem direito de pescar são as crianças pequenas, ou aqueles que ainda não se envolveram com mulheres. Aritana explica que isto faz parte do treino de uso do arco e flecha, “nós não podemos ajudar em nada, eles flecham e guardam o que pegam, não tocamos os peixes deles nem com o pé”. Certo tempo depois, a pesca é liberada para todos. Ao final da manhã, as canoas voltaram carregadas de dois Trairões, alguns Tucunarés e centenas de Curimatás. Mesmo assim, muita gente achou a pescaria fraca.

Alguns meninos da tribo Yawalapiti posam para foto. Foto: Pedro Ivo Alcântara

Esta foi a segunda e última vez que este tipo de pescaria acontece neste ano, saímos frustrados porque não levamos as máquinas fotográficas. Mas eles explicam que isto é necessário, senão o peixe acaba. Parte do produto da pesca foi repartido entre as casas da aldeia e a outra parte foi separada, ela estava reservada para os kamaiurá, tribo que mora longe do rio e havia sido convidada para uma partida de futebol ao final da tarde.

Almoçamos beiju com três Tucunarés escolhidos especialmente por Aritana. Conversamos com o cacique até a chegada do caminhão com o time kamaiurá. Os times entraram em campo devidamente uniformizados, enquanto a platéia assistia saboreando pescado com beiju. Assistimos o início do jogo, mas o cansaço foi batendo. Aritana providenciou redes para todos e cochilamos durante o segundo tempo. O placar final foi Iaulapiti 2 X 7 Kamaiurá.

Por volta das 17h nos reunimos com Aritana, Aiupu e mais alguns homens da aldeia. Explicamos com calma como era nosso projeto e constatamos que teríamos de vir para o Posto Leonardo Villas Bôas, localizado a cerca de 6km da aldeia. Isto foi necessário porque precisamos carregar as baterias dos equipamentos e o posto tem gerador.

Aritana nos levou de caminhonete para o posto da Funai, dirigido por seu irmão Kokoti. Para nossa alegria, fomos alojados na casa que foi do Orlando Villas Bôas na época em que esteve no Xingu. A casa fica em frente ao Tuatuari, limpinho, quente, bom para beber, tomar banho e lavar roupa. Resumindo, estamos num histórico hotel cinco estrelas em pleno Xingu.