Canarana

Situada no nordeste matogrossense, Canarana nasceu do processo de colonização gaúcha no estado. Fundada em 1979, por iniciativa da Cooperativa Agropecuária Mista Canarana Ltda (Coopercana) o município compartilha com a vizinha Água Boa – MT a mesma origem histórica.

Apesar de ter sido visitada por bandeirantes no século XVI, os primeiros a se fixarem na região vieram dos estados de Goiás e Maranhão na segunda metade da década de 1940. Eram aproximadamente 200 famílias que tiveram terras desapropriadas nos seus estados de origem e foram assentadas no local pela Fundação Brasil Central. Nessa época, estava em construção a BR-158, que seguia o traçado aberto pela Expedição Roncador-Xingu. Devido à falta de planejamento na ocupação, da primeira leva de agricultores, poucos permaneceram na região.

dc32.jpgNo início da década de 1970, o governo federal criou programas de incentivo à colonização do Centro-Oeste brasileiro. Organizados em cooperativas, os agricultores gaúchos vieram para o Mato Grosso atraídos pelos financiamentos federais para a compra de grandes propriedades de terra. Dois anos mais tarde, chegaram os primeiros colonos, ao todo 300 famílias, em sua maioria, gaúchas. No ano de 1976, Canarana virou distrito de Barra do Garças e três anos depois se tornou um município autônomo.

No início da colonização, o DC3 da Coopercana serviu para trazer os primeiros colonos e mantimentos para a região. Foto: Pedro Ivo Alcântara.

Assim como a maioria das cidades vizinhas, a principal atividade da economia local é a pecuária. Com rebanho bovino estimado em cerca de 350 mil cabeças de gado, a área de pasto do município é de 600 mil hectares. Uma das principais indústrias do gênero, na região funciona o Frigorífico Vale do Kuluene, com capacidade de 550 abates por dia.

A agricultura também é responsável por boa parte da receita municipal. Com uma área total de lavoura de 55 mil hectares, a soja destaca-se como o mais importante produto agrícola, com 43,5 mil hectares de área plantada e cerca de 2,1 milhões de sacas colhidas na última safra. Em segundo lugar, o plantio de arroz ocupa 10 mil hectares produzindo 380 mil sacas.

Atualmente, o turismo começa a despontar como uma nova alternativa econômica. Eliane Felten, secretaria municipal de agricultura (responsável pela área de turismo e meio ambiente), acredita que a cidade tem um enorme potencial no setor, principalmente por ser um dos únicos acessos por terra ao Parque Indígena do Xingu. “Temos como objetivo montar projetos de ecoturismo, a região é muito procurada por pescadores e queremos desenvolver essa atividade de maneira não predatória”, explica Felten.

Domingo, 13/05/2001

Engraçado, as fãs que ontem estavam se descabelando na porta do hotel, hoje nem apareceram…

Nesse domingo, dia das mães, Água Boa parecia mais uma cidade fantasma. Até os restaurantes estavam fechados.

O marasmo nos contaminou. Vamos amanhã para Canarana.

Fábio, Pedro e Equipe do Rota Brasil Oeste

Xingu: Primeiras Impressões I

Pela primeira vez deixamos de atualizar nossa página, mas fomos pegos por uma grata surpresa. Hoje fomos pela manhã à Atix (Associação Terra Indígena Xingu), em Canarana, e descobrimos que nossa lancha para descer o rio Kuluene já estava nos esperando no ponto combinado. Nos dividimos, Pedro e Fábio providenciaram 450 litros de gasolina e 27 frascos de óleo para abastecer o barco. Bruno, Guilherme e Fernando seguiram para o supermercado, onde compramos suprimentos para a viagem.

Ainda tivemos de organizar nossa bagagem, fechar o hotel, arranjar um frete e alguma coisa para fingir que almoçamos. Em três horas conseguimos botar tudo numa caminhonete e seguir para as margens do Kuluene. Bruno, Fernando e Pedro atravessaram os mais de 100km de estrada de terra na carroceria, o Fábio estava meio gripado e achamos melhor que ele fosse na cabine. Para nossa sorte, a chuva, que não havia aparecido nenhuma vez desde Brasília, resolveu cair.

embarquexingu.jpgAtravessamos diversas fazendas de gado e algumas matas ainda preservadas. Chegamos ao rio às 18h, descemos os tambores de combustível e nossa bagagem com a ajuda do motorista, Seu Reizinho, fretista e vereador de Canarana. Nos esperando estava Ualá, piloto e filho do cacique Aritana, da tribo Yawalapiti.

Equipamentos sendo carregados no barco para a viagem até a aldeia Yawalapiti. Foto: Fábio Pili

Saímos uma meia hora mais tarde, pegando o fim do dia no início da viagem, prevista para seis horas. Logo escureceu e continuamos navegando graças à habilidade de Ualá, acostumado a viajar de noite. Com muito vento e umidade, o frio começou a piorar cada vez mais. Nos encolhendo como podíamos, tentávamos improvisar algum apoio para a coluna e nos defender dos mosquitos, que não picavam, mas esborrachavam na cara.

Apesar de não termos lua, acompanhamos o caminho sob um céu incrivelmente estrelado. De vez em quando, o Guilherme iluminava os olhos dos jacarés nas praias, o que nos fazia encolher um pouco mais. Tremendo e morrendo de cansaço aportamos na aldeia Iaualapiti. Com fome, empoeirados, molhados e com frio subimos uma trilha passando pelas primeiras ocas, uma delas, ainda em construção, nos lembrava algo de outro mundo. Acordamos Aritana por volta da meia-noite, ele nos recebeu como todo grande chefe xinguano, usando apenas um cordão em torno da cintura.

Desembarcamos todos os apetrechos para dentro da oca da família de Aritana. Dentro da casa estava agradavelmente quente, volta e meia alguém atiçava o fogo de baixo das redes. Tentando não atrapalhar, o Bruno e o Guilherme amarraram as redes e o resto esticou os sacos de dormir.

Cerrado e chimarrão

O processo de colonização do Brasil é muito mais extenso do que é ensinado nas escolas. Não só as Capitanias Hereditárias, Bandeiras e a construção de Brasília, em 1960, resumem este processo. Uma importante parte da história recente da ocupação do país ainda é ignorada.

Há 58 anos atrás, a Expedição Roncador-Xingu e a Fundação Brasil Central construíram rodovias e fundaram cidades, criando novas fronteiras econômicas no Centro-Oeste brasileiro. No final da década de 1960, projetos do Governo Federal de incentivo à colonização da região, como o Proterra, chamaram a atenção de agricultores gaúchos, dando início a uma segunda onda de ocupação.

m1305.jpgLogo, trabalhadores rurais e pequenos proprietários do Rio Grande do Sul se organizaram em torno de cooperativas a fim de obter terras e maquinários financiados em 10 anos e a juros fixos no Mato Grosso. Segundo Elcides Salamoni (na foto ao lado), um dos colonos e fundador da extinta Cooperativa 31 de Março, “a colonização aconteceu devido ao alto preço da terra no sul. Não viemos por amor ao país, e sim para ficar rico.”

Nessa época, o tamanho médio da pequena propriedade no Rio Grande do Sul era de apenas 2,5 hectares, enquanto que o colono associado à 31 de Março que vinha para o Vale do Araguaia recebia um lote rural de 400 hectares e 3 lotes urbanos com 800 m2 cada. Segundo Salamoni, cidades como Água Boa e Canarana foram planejadas em Tenente Portela (RS), antes mesmo da vinda dos colonos. “Fizemos que nem Brasília, com ruas largas e espaço de sobra”, afirma o pioneiro.

Apesar de todos os incentivos, as dificuldades encontradas foram grandes. A área era completamente desabitada e sem infraestrutura. “Aqui não tinha nada, nem posto de gasolina. Tínhamos que trazer o diesel para as máquinas de Barra do Garças”, explica Salamoni. E completa: “Tivemos que construir toda a infraestrutura das cidades, desde a escola, igreja até as pontes”.

De 1974 a 1980, duas mil famílias gaúchas vieram para região de Água Boa (MT). Destas, 35 % tiveram sucesso e permaneceram, o que é considerada uma excelente média, bem acima dos 20% a 25% previstos para esse tipo de empreendimento. “Não trouxemos empresários, mas sim agricultores. Houve muitas frustrações e mesmo assim fomos bem sucedidos”, conta Salamoni.

Mesmo com todo o planejamento prévio, o processo de ocupação do Mato Grosso é muito criticado. O Projeto Proterra, por exemplo, não exigia qualquer estudo de impacto ambiental, o que gerou uma grande destruição da fauna e da flora local. Hoje Salamoni lamenta a ocupação desenfreada: “não tivemos a menor preocupação com o cerrado, queríamos fazer lavouras. Hoje estamos vendo rios assoreados e as terras virando areia.”

Sábado. 12/05/2001

fasaguaboa.jpgNão sabia que a gente estava com a popularidade tão alta. Lá pelas 8 da noite, uma legião de menininhas enlouquecidas ficaram gritando em frente ao hall do hotel. Foi algo como uma histeria coletiva. Eu tenho certeza que nenhum de nós quatro nunca foi tantas vezes chamado de lindo e maravilho (e coisas do tipo) por tantas garotas ao mesmo tempo. Ainda bem que montaram um esquema de segurança muito eficiente, senão estaríamos desnudos, arranhados e sujos de Boca Loca. Só não consigo entender bem o porquê de tanto barulho, a gente só fica tirando umas fotos por aí.

O assédio na porta do Hotel, logo que chegamos à cidade, nos assustou. Foto: Pedro Ivo Alcântara

Gostaria muito de agradecer ao pessoal da organização (infelizmente não tivemos oportunidade de conhecê-los ainda) pelo bom trabalho em zelar pela nossa integridade física.

Pedro

P.S.: Agora quero ver se o recepcionista do hotel não vai trocar o meu colchão de compensado maciço com aqueles cantores também hospedados aqui, são os… Sei lá! Acho que é do Jogo de Varetas, Baralho ou seria Dominó?

A indústria agropecuára em Água Boa

A história de Água Boa confunde-se com a evolução de sua economia. A fundação da cidade, em 1975, foi feita por colonos gaúchos que vieram para a região fugindo da escassez de terras para agricultura no Sul. Este movimento foi viabilizado por um planejamento prévio de desenvolvimento agrário, e auxiliado por programas governamentais de crédito para a terra.Água Boa começou como um município voltado para a agricultura. Os primeiros migrantes implantaram na região, por volta de 1974, a cultura do arroz, desenvolvida em propriedades de médio porte (basicamente 400 hectares) e apoiada por um sistema de cooperativas. Este método possibilitou uma rápida industrialização da produção, que, ainda na década de 70, era uma das maiores do país.

A introdução da soja veio alguns anos depois, com a necessidade de diversificação das culturas plantadas. Trazido por empresários paulistas ao Vale do Araguaia, o grão tornou-se a segunda atividade econômica do município.

No início da década de 90, o governo Collor acabou com o financiamento agrícola para as cooperativas que atuavam na região. Com isso, a estrutura produtiva do município foi abalada: a antiga associação, a Cooperativa Agropecuária Mista Canarana Ltda(Coopercana), entrou em falência. Eucides José Salamoni, um dos fundadores da instituição e vice-prefeito de Água Boa no período 1980-1986, diz que “a alternativa para a gauchada foi a pecuária: o investimento inicial era pouco e não dependia dos incentivos do governo.”

Parte considerável das terras destinadas à produção de grãos foram transformadas em pasto. O rebanho, dividido em propriedades com uma média de 1000 hectares, atinge hoje a quantidade de 450 mil cabeças de Nelore PO. Além disso, por ser localizada no centro do pólo pecuário do Vale do Araguaia e do Xingu, a cidade se destaca na comercialização de gado melhorado de raça. A Estância Bahia, maior da região, foi responsável, no final do ano passado, pela venda de 12,8 mil cabeças num único leilão, que movimentou R$ 5,2 milhões.

“Água Boa é a capital da comercialização de bovinos. Nossos leilões, realizados durante todos os fins de semana de junho a outubro, atraem investidores paulistas, paranaenses, goianos e estrangeiros”, afirma Cesar Friedrichs, um dos responsáveis pela Estância Bahia.

m1205.jpgEm busca da revitalização da agricultura e de alternativas para o pequeno produtor, empresários locais começam a explorar novos tipos de cultivo. O algodão, amplamente explorado em outras áreas do Mato Grosso, é uma das grandes promessas para o município.

Uva: uma das alternativas de produção para a economia de Água Boa. Foto: Fernando Zarur

A uva, segundo Eucides Salamoni, é uma outra opção para a região. Estudando há cinco anos uma plantação de parreiras de diversas espécies, Salamoni afirma que a exploração comercial do tipo Niágara é viável e pode gerar renda para os pequenos produtores, com terrenos de até 50 hectares. “Aqui o clima é favorável. Você pode, facilmente, ter duas colheitas por ano e obter uma produção de 25 toneladas por hectare, enquanto no Sul, a média é de 15 toneladas”.

Cotidiano na Aldeia

O dia no Posto Indígena Leonardo Villas Bôas, lugar onde estamos hospedados no Alto Xingu, começou antes do sol nascer. Ainda escuro, o cozinheiro preparava a refeição: leite, café e umas bolachas água e sal que trouxemos de Canarana. Enquanto isso, as mulheres e crianças índias tomavam banho no rio, fazendo um barulho que tornou impossível o sono.

construcao_oca_fernando.jpgÀs 7:30, quando levantamos, Aumary, irmão do cacique Aritana, da tribo Yawalapiti, já nos esperava com a Toyota. Nos preparamos, subimos na caçamba e tomamos o rumo da aldeia. Ao chegar, encontramos os homens ajudando na construção de uma maloca. Eles fazem mutirões no qual o dono da casa deve arrumar todo material, como imbira, sapê e madeira para armação, enquanto o resto dos homens da tribo ajuda na construção. No meio de toda a atividade, foi morta uma inocente jararaca que perambulava por ali, motivo de agitação e curiosidade entre as crianças da aldeia.

Com trabalho coletivo, os homens da tribo ajudam na construção de cada oca da aldeia. Foto: Fernando Zarur

Após vermos e fotografarmos o trabalho na oca, passamos o resto da manhã conversando no centro da aldeia. Este seria o local da casa dos homens, hoje, provisoriamente, substituída por uma choupana. No ano passado uma forte tempestade derrubou a casa do Piracumã, irmão do Aritana e diretor do Parque Indígena do Xingu, e a antiga casa dos homens. Normalmente, este seria um lugar reservado aos homens, onde estariam guardados máscaras, flautas e diversos instrumentos rituais proibidos para as mulheres. Do modo como está, é somente um local de reunião.

Conversamos e comemos peixe com beiju com a maioria dos chefes de família Yawalapiti. Entre eles, chamava a atenção o velho Parú, pai de Aritana, antigo cacique e rezador da tribo. Grande amigo de Orlando Villas Bôas e responsável pela reunião de sua tribo (espalhada e reduzida a somente 12 membros na década de 1940), ele é capaz de encontrar raízes que sugam veneno de qualquer cobra, de rezar para manter onça afastada e fazer peixe pular na rede durante a pesca do timbó.

Por volta do meio-dia, fomos com mais uns 15 meninos tomar banho no rio Tuatuari. Com certeza foi um dos momentos mais divertidos da viagem. Jogamos uma partida de futebol das mais confusas da história, ninguém tinha idéia de que time era, só sabíamos o lado do gol. Também descobrimos que existe uma divisão entre a praia das mulheres e a dos homens. Ontem, desavisados, tomamos banho na praia das mulheres, mas hoje fomos levados pelas crianças ao local correto.

huka_huka_fabio.jpgDuas horas depois, voltamos para a tribo. Era hora de começar o treinamento do Huka-Huka. A luta é muito semelhante ao judô e à greco-romana, envolve força e, sobretudo, muita técnica. O treino dura mais de uma hora e só permite aos participantes rápidos descansos de um ou dois minutos. Participavam alguns guerreiros que treinavam para competição com outras aldeias do Alto Xingu, e três jovens que estão passando pelo Awawoiá.

Jovens descansam durante poucos minutos entre cada combate de huka-huka. Foto: Fábio Pili

O Awawoiá é a passagem da criança para a fase adulta. O jovem Yawalapiti, entre 14 e 17 anos (a idade depende do participante), começa uma preparação para se tornar um adulto respeitado diante da tribo. Para isso, fica isolado dentro de sua casa, sem nenhum contato com mulheres, sem poder sair e participar do cotidiano tribal. A exceção é o treinamento diário de huka-huka, uma das condições para o fim da transição. Até o banho acontece à noite, quando os outros índios não usam mais o rio. O Awawoiá só termina quando o treinador do jovem o considera preparado, o que pode durar de dois a cinco anos.

PS – Fernando pede espaço para comentar que depois de vários dias tomou água gelada, em segredo, na casa do Kokoti.

Sexta-feira, 11/05/2001

A palestra no Colégio Municipal JK foi muito bacana. Falamos para uma platéia de 8a série a 3o ano sobre um pouco da história da colonização do Brasil Central e o nosso projeto. É gratificante poder mostrar um pouco do nosso trabalho e tocar num assunto tão importante para a região e que normalmente não é ensinado. Depois da palestra, um professor de história da escola disse que pretendia incluir o assunto no currículo.

palestraescola.jpgQuando acabamos o sermão, montamos o computador e os equipamentos pra mostrar como funciona a publicação na Internet. Tiramos várias fotos com a câmera digital, que sempre faz o maior sucesso. O que nos deixou sem jeito foi a sessão de autógrafos não planejada. Morremos de vergonha, mas tiramos a maior onda. 🙂

Convidados pela direção do Colégio JK, conversamos com os alunos sobre a Expedição Roncador-Xingu, respeito ao meio-ambiente e às tradições indígenas. Foto: Fernando Zarur

Em seguida, tocamos para Água Boa com dois dias de atraso. A Lúcia, nossa anfitriã, agora não vai ter mais quem queimar o cabo da panela de pressão e acabar com a dispensa. Agora um jabazinho mais que merecido: fica a dica para quem pretende conhecer o lado místico e as belezas da região, basta ligar para 0xx65 438-2028 e procurar Lúcia Kirsten.

Agradecemos também a Carol, pela ótima companhia e orientação, ao Adão, que matou trabalho pra nos levar ao garimpo, e aos entrevistados: Zé Goiás, Seu Raimundo, Sinvaldo Rodrigues, Archimedes Carpentieri, Seu Godofredo, Pe. Bartolomeo Giaccaria, Marcos Piza Pimentel e a todos que nos receberam.

A partir de agora escrevemos diretamente de Água Boa.

Padre Giaccaria, elo entre a Igreja e os índios

Seguindo a tradição de catequização da igreja Católica, a ordem dos Salesianos atua no Mato Grosso desde 1894. Alguns dos primeiros religiosos que estiveram na região sofreram fins trágicos, como os padres João Funcks e Pedro Socilotte, massacrados pelos Xavantes. Apesar disso, as missões continuaram no início do século XX, contatando povos como os Bororos, Carajás e empreendendo seguidas tentativas de atração dos Xavantes. Padre Hipólito Chovelon, Mestre Francisco Fernandes e Padre Pedro Sbardellotto, são alguns dos que visitaram o território desde o final da década de 1930.

padregiaccaria.jpgO Padre Bartolomeo Giaccaria, italiano naturalizado brasileiro, continua esse trabalho, com mais de 45 anos de experiência entre os Xavantes. Pós-graduado em antropologia pela Universidade de Brasília em 1980, o pároco é autor de diversos livros como “Xavante, Povo Autêntico”, “Jerônimo Xavante Conta”, além de cartilhas e projetos de educação envolvendo os índios e suas tradições. Entre suas publicações mais conhecidas, está o primeiro dicionário Xavante-Português, uma iniciativa pioneira escrita em 1958.

“O maior absurdo é que várias das plantas nativas que utilizo em meu trabalho estão patenteadas pelos americanos”. Foto: Fábio Pili

Além da produção acadêmica, padre Giaccaria, 69 anos, desenvolve pesquisas com plantas medicinais, especialmente com espécies nativas do cerrado. Trabalhando num pequeno herbário montado em Nova Xavantina, ele prepara emplastos, xaropes e outros remédios naturais. “Esta foi uma maneira de contornar os problemas do abastecimento farmacêutico na região e nas aldeias”, explica o padre.

Grupo – Em que ano o senhor começou seu trabalho entre os Xavantes?

Pe. Giaccaria – Eu vim para o Brasil em 1954 e passei dois anos em Campo Grande. Só em 1956 é que vim para a Missão de Sangradouro, onde trabalhava como professor. Lá nós ensinávamos aos filhos de fazendeiros de cidades vizinhas, como Poxoréu e Barra do Garças, além dos índios bororos. Mas nesta época os bororos já estavam sumindo, eles foram todos dizimados ou aculturados. Logo depois, em 57, comecei a trabalhar com os xavantes.

Grupo – Nesta época o senhor conheceu o trabalho da Expedição Roncador-Xingu e dos Villas Bôas?

Pe. Giaccaria – Para mim eles encaravam o índio como um obstáculo ao progresso. Acho que o trabalho dos Villas Bôas era limpar a região para o desenvolvimento, eles ligavam mais para este progresso. A idéia era fazer obras como a estrada Cuiabá-Santarém. Eles também nunca permitiram a presença de padres dentro do Parque do Xingu, então não sei ao certo como é a situação dos índios lá dentro.

Grupo – Como o senhor encara a filosofia de trabalho da igreja naquela época e hoje em dia?

Pe. Giaccaria – Quando em vim para o Brasil tínhamos uma visão muito romântica e fantasiosa da região. Na época o trabalho da igreja era no sentido de integrar o índio. Hoje, nós deixamos isso de lado, mas esta é uma questão muito complexa. Não dá pra falar assim. Nosso trabalho atual é de explicar melhor o porquê das coisas. Além disso, respeitamos a maneira como eles expressam seus ritos. Nas missas usamos cantos tradicionais deles e eles mesmos se organizam para fazer um batizado, por exemplo. Existe até um índio que vai se tornar padre, o nome dele é Aquilino. Portanto, eles incorporam tudo isso. Boa parte do meu trabalho visa a preservação cultural, especialmente da língua indígena. Por isso produzi a primeira cartilha bilíngüe Xavante-Português. Neste sentido, nos esforçamos para prepará-los melhor para o contato com os civilizados. Os choques culturais são inevitáveis, mas não adianta isolá-los.

Grupo – Porque o senhor começou a trabalhar com plantas medicinais?

Pe. Giaccaria – Pela necessidade. Eu via crianças com feridas nas mãos, velhos com problemas de reumatismo e não havia muito suprimento de remédios para ajudá-los. Então, comecei a ler e estudar sobre as propriedades de cada espécie. Preparo um emplasto, por exemplo, que é bom para quase todo tipo de problemas de pele no qual uso cerca de 15 plantas como babosa, hortelão, orégano e própolis. Dessa forma, atendo a cerca de 80 aldeias com mais de 12,000 xavantes. O maior absurdo, porém, é que várias das plantas nativas que utilizo em meu trabalho estão patenteadas pelos americanos. São plantas aqui do cerrado, utilizadas pelos índios a milhares de anos, como o urucum, a sucupira e o quebra-pedra. Essas são apenas as que eu lembro agora, e eles ainda estão estudando outras sete mil plantas brasileiras.

Quarta-feira, 09/05/2001

Recebemos uma notícia que deixou o dia um pouco turbulento. Teremos que alterar o roteiro da viagem, pois o cacique Xavante da aldeia de Pimentel Barbosa, Supitó, vai estar em Brasília no dia em que entraríamos na reserva indígena. Sem problemas. Conversamos com o Guilherme Carrano, nosso apoio na Funai, e acertamos tudo.

Início da semana que vem devemos estar entrando, via Rio Kuluene, no Xingu, onde ficaremos uns 15 dias. Saindo de lá, teremos o privilégio de acompanhar a furação, o ritual de passagem dos xavantes em que os jovens têm suas orelhas furadas com osso de onça.

Pedro Ivo