Entrevista Orlando Villas Bôas

Rota Brasil Oeste – Realizada em abril de 2001, a entrevista abaixo foi uma das últimas conversas concedidas por Orlando Villas Bôas à imprensa.
Por três dias a equipe do projeto Rota Brasil Oeste colheu relatos sobre a epopéia que foi a Marcha Para o Oeste – maior movimento desbravador realizado no mundo durante o século XX. Aos 87 anos, demonstrava lucidez e memória surpreendente para a idade. Bom de papo e eloqüente, passava horas contando histórias.

Orlando Villas Boas
Sertanista Orlando Villas Boas

Orlando Villas Bôas. Foto: Fábio Pili

A narrativa começa em 1944, quando Orlando abandonou o emprego como contador da Esso em São Paulo para dedicar a vida aos sertões e comunidade indígenas do Brasil-Central. Ao lado dos irmãos Cláudio e Leonardo integravam o quadro de expedicionários se passando por sertanejos analfabetos. Na conversa, o sertanista fala sobre o início da sua vida de mais de 40 anos na selva e os problemas atuais da região.

O que era conhecido do Centro-Oeste brasileiro em 1944?

Do Araguaia até o Rio das Mortes, não tinha ninguém, além dos índios. Nenhuma expedição tinha pisado por lá ainda. Ali, depois do rio Araguaia, ainda tinham alguns sertanejos mas só até o bico da serra (Serra do Roncador). Daí veio o plano da “Marcha para o Oeste”, que o Getúlio criou. A idéia era chegar até o Araguaia e fazer um traçado dali para Manaus, este seria o roteiro da expedição. Foi quando fomos para a vanguarda da expedição. Aí partimos. No rastro nosso, esses acampamentos todos que fizemos, foram se transformando em cidades: Canarana, Água Boa, Garapu e outras. Hoje tem mais ou menos 18 cidades nessa região.

Já se esperava a presença das diversas nações indígenas encontradas no caminho?

Não, descobrimos a presença deles só quando chegamos ao Rio das Mortes e avistamos colunas de fumaça no horizonte. Os xavantes eram conhecidos, mas outros tantos não. O primeiro contato que fizemos, foi com os Kalapalo. Nós ficávamos na praia e eles na barranca do rio. A gente gritava, eles respondiam. Queríamos atravessar, eles ameaçavam com arco e flecha. Ficamos uns dois dias assim. Quando foi no terceiro dia, apareceu na margem um bruto de um índio. Ele chegou, abriu os braços e os outros se afastaram. Atravessamos o rio, subimos a barranca e caminhamos para o lado dele. Ele tremia. Quando chegamos, abraçamos ele. Chamava-se Izarari, o grande cacique, temido. Ele recebeu a gente bem e ali nós fizemos o primeiro posto e campo de aviação.

Entre as personalidades que visitaram a Expedição, está Assis Chateubriand, presidente dos Diários Associados na época. Como foi a estada dele?

A revista Cruzeiro, o Diário da Noite, toda a cadeia associada do Chateaubriand ia para lá, no Xingu. O Chateau sempre ia pra lá. Um dia ele tava tomando banho no rio, e tinha um jornal que era inimigo dele, Samuel Weiner. E um fotógrafo do Samuel Weiner tava tirando fotografias do dr. Assis nu. Aí, o foram correndo, avisando “Dr. Assis, dr. Assis! Tão tirando fotografia do senhor nu!” Ele respondeu: “O quê é que você queria, meu filho? Que eu tomasse banho de casaca?” Ele era terrível! Uma figura formidável! Uma ocasião, ele apareceu no Rio das Mortes levando o genro do Mussollini, um italiano de 2m de altura. Gino Grande. Ele tava na beira do Rio das Mortes e tinha uma canoinha. Ele subiu na canoinha e saiu remando, tava vira, não vira. Aí um sertanejo veio e falou com o dr. Assis: ” Dr. Assis, aquele italianão fornido que o sr. trouxe tá numa canoa e tá que morre!” O dr. Assis disse: “Ô, Orlando! Traduz o quê esse homem tá falando!” E eu disse: “O Gino Grande tá numa canoa perigosa, e é capaz de virar e morrer no Rio das Mortes.” Ele disse “então deixa, deixa! Dino Grande morrendo no Rio das Mortes sob os auspícios dos Diários Associados!” O Assis era uma figura!

Como era a relação de vocês com um dos primeiro chefes da expedição, o coronel Vanique? Porque ele renunciou à chefia?

Ele gostava muito do Rio de Janeiro, não é? Não tinha tino para o mato, nunca entrou no mato. Certa vez estava num teco-teco, sobrevoando a Serra do Roncador. Nós embaixo com 12 homens, e o aviãozinho sobrevoando. Era bom o sobrevôo dele, porque ele jogava um bilhete, dizendo, por exemplo: “Na frente tem um alagado muito grande. Desviem para a direita.” A gente estava fazendo um picadão de 400 km. Ele meteu a cara fora do avião e deixou cair o óculos. E ele então jogou um bilhete pra nós. O avião dava uma rajada de motor para avisar que vinha recado, vinha bilhete. E o bilhete dizia assim: “Perdi meus óculos. Caiu aí. Procurem meus óculos.” Tinham uns 10 trabalhadores, e eu falei: “Procura o óculos do coronel.” Todo mundo fazia de conta que estava procurando. Procurar uns óculos, imagine? Então, veio um segundo bilhete dele: “Mais pra cá.” (risos)

Algumas correntes de antropólogos criticam um pouco a Marcha, o jeito como foi feito o contato com o índio. Como você vê isso?

O índio foi um acidente na marcha da expedição, pois, quando chegamos lá, não sabíamos de nada. Os aviões da FAB sobrevoaram a frente e viram que a área do Roncador era toda ocupada por índios. Índios arredios, que nos atacaram, fizeram miséria conosco. Sem nossa participação, essas cidades surgiram da mesma forma, só que num processo de luta. E fizemos isso em paz. A política mais acertada que nós fizemos foi manter o índio dentro da sua cultura. Hoje, o xinguano fala português. Dentro da comunidade, porém, só usa a língua deles. E lá nós temos 12 idiomas diferentes.

Qual a contribuição das sociedades indígenas ao Brasil e o mundo?

Basta dizer o seguinte: nós vivemos com eles 40 e tantos anos, e nunca vi índios discutindo. Eu nunca vi uma mãe puxar a orelha da filhinha, e nem o pai dar um coque no filho. O velho é o dono da história, o índio é o dono da aldeia, a criança é a dona do mundo! A coisa mais importante de uma aldeia indígena é a criança. Nós perdemos essa noção. A criança hoje, na sociedade em geral, é uma realidade incômoda. Para o índio não. No cerimonial todos eles participam, não tem privilégio. Eles nos dão uma lição de comportamento social que já perdemos e não vamos conquistar mais!

Veja Também:

O fascínio de uma das regiões mais inexploradas do mundo e as visitas ilustres à expedição.

Os momentos de tensão durante os anos da Marcha para o Oeste.

Orlando e sua esposa, Marina Villas Bôas, contam um pouco sobre a família do índio brasileiro, a situação da mulher e da criança na tribo.

Os primeiros passos da Expedição Roncador-Xingu.

Documentário

Ouça o documentário produzido para o Rota Brasil Oeste sobre o trabalho dos irmãos Villas Bôas e a Marcha para o Oeste.

Formato Windows Media: Parte 1 | Parte 2 | Parte 3

Formato Real Audio: Parte 1 | Parte 2 | Parte 3

Bruno Radicchi, Fábio Pili, Fernando Zarur, Pedro Ivo Alcântara

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