Recrudesce o conflito entre índios Cinta-Larga e garimpeiros

ISA – Os Cinta-Larga estão cansados. Durante a visita que a Comissão Parlamentar de Direitos Humanos fez à aldeia Roosevelt, em Rondônia, em 9 de outubro último, eles se queixaram aos deputados do assédio que sofrem há mais de 20 anos e da violência a que estão expostos todos os dias. Por isso, estão dispostos a lutar até o fim para não deixar que garimpeiros invadam, mais uma vez, suas terras para extrair diamantes.

Reduzidos a cerca de 1.300 pessoas, dispersas em 34 aldeias de quatro TIs (Roosevelt, Parque Aripuanã, Aripuanã e Serra Morena), os índios Cinta-Larga, que em 1968 eram aproximadamente 5 mil, estão lutando para garantir sua segurança e a de suas terras, localizadas no oeste de Mato Grosso e nordeste de Rondônia. Os garimpeiros, por sua vez, começaram uma campanha de intimidação na qual contam com a ajuda da imprensa de Rondônia, que divulga informações inverídicas, sempre com a intenção de acuar os índios. Por exemplo: na semana passada (de 13 a 17/10), noticiaram com alarde que havia mais de mil garimpeiros acampados nas imediações das terras, prontos para invadi-las.

Entretanto, o administrador regional da Funai em Cacoal (RO), Walter Blós, coordenador do Grupo Tarefa criado no final do ano passado para implementar um plano emergencial junto aos Cinta-Larga (veja quadro abaixo), informou à reportagem do ISA que depois de sobrevoar a região com alguns caciques Cinta-Larga, no dia 17/10, verificou que os garimpeiros acampados próximos das áreas indígenas não passavam de 100. Até ali, alguns poucos funcionários da Funai e os próprios índios, tomavam conta das barreiras para impedir a invasão. No sábado, 18/10, finalmente, a polícia ambiental, que havia sido retirada em setembro a mando do governador de Rondônia, Ivo Cassol, voltou por ordem do mesmo Cassol, para reforçar as barreiras.


Sindicato dos garimpeiros vai averiguar

Ao percorrer as barreiras no domingo, 19/10, Walter Blós encontrou uma comitiva de delegados do sindicato dos garimpeiros de Rondônia. Eles queriam saber quem havia autorizado a volta da polícia ambiental. “Ao saber que a ordem partira do governador, passaram, então, a determinar o que a polícia deveria ou não fazer”, conta Walter. “Que eles não deveriam deixar entrar veículos de índios, que não deveriam permitir a entrada de mantimentos etc”. O comandante lhes explicou que não poderia fazer isso porque as terras eram dos índios e eles tinham o direito de ir e vir.

De acordo com Blós, os sindicalistas filmaram, fizeram gravações e foram embora. Em seguida, ele acionou o delegado da Polícia Federal, em Pimenta Bueno, e pediu ajuda para um policiamento ostensivo nas estradas vicinais do entorno. A PF deverá entrar com os veículos e a Funai com o combustível. Walter acredita que o trabalho conjunto entre Funai, PF, polícia ambiental e índios vai acabar afugentando os garimpeiros.

No início deste ano, os índios, depois das muitas idas e vindas de 2002, conseguiram expulsar os garimpeiros. De janeiro a agosto, as terras e o garimpo ficaram sob o controle dos índios. Mas ao aproximar-se a época das chuvas, os garimpeiros ameaçam retornar.


Degradação ambiental, violência, prostituição

“Hoje, os garimpeiros são 100, mas se houver uma brecha, em 24 horas podem se tornar mil, porque há muita gente nas cidades sem nada para fazer, meio errante”, alerta o antropólogo João Dal Poz, da Universidade Federal de Mato Grosso, que trabalha com os Cinta-Larga. João explica que essa é a época do ano propícia ao garimpo, quando começam as chuvas. “Então, é um assalto programado. Eles entram no garimpo, ficam ali dois meses, retiram R$ 2 milhões e vão embora”.

Deixam atrás de si um rastro de destruição e degradação ambiental. Sem contar que a extração de diamantes atrai para a região traficantes, contrabandistas, prostituição, gerando uma situação de tensão e violência às quais os índios não querem mais se submeter. “É um crime de genocídio que está em curso por conta da violência da exploração econômica em cima do garimpo de diamante”, analisa a indigenista Maria Inês Hargreaves que acompanha o caso Cinta-Larga de perto e há muitos anos.


Todo ano é o mesmo filme

A grave situação que ronda os Cinta-Larga não é nova. Esse é um caso emblemático, que sempre é denunciado por lideranças indígenas em foros nacionais e internacionais. Quando o Relatório Brasileiro sobre Direitos Humanos Econômicos Sociais e Culturais (DhESC) foi lançado em junho de 2003, um dos casos denunciados, foi o do Povo Cinta-Larga. O relator titular para a área de meio ambiente, Jean-Pierre LeRoy, preocupado com as recentes ameaças, enviou ao ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, carta datada de 29 de setembro, em que solicitava providências daquele órgão governamental, por temer um conflito armado iminente.

No dia seguinte (30/09), o governador de Rondônia, Ivo Cassol, também enviava ao ministro da Justiça um ofício, solicitando providências para evitar “um novo conflito com derramento de sangue”. Além disso, colocava o Estado à disposição para fazer uma parceria, encaminhando proposta “para o aproveitamento econômico do diamante no Rio Roosevelt, a ser explorado, através da Companhia de Mineração de Rondônia, CMR…..”. No dia 3 de outubro, foi recebido por Bastos. De acordo com o assessor para assuntos indígenas do ministério, Claudio Beirão, o ofício não foi levado em consideração. “É uma tentativa de legalizar uma situação que é ilegal”, afirmou ele.

Nunca é demais lembrar que a mineração é proibida em terras indígenas, diferentemente da garimpagem, permitida só para os índios e que não é a mesma levada a cabo pelos garimpeiros. Seja como for, a extração ilegal de diamantes colabora com a corrupção, a lavagem de dinheiro, o tráfico de drogas e armas na região.

No dia 9 de outubro, foi promulgada a Lei nº 10.743, pela qual o Brasil tornou-se legalmente credenciado para obter a Certificação do Processo de Kimberley, mecanismo internacional de certificação de origem de diamantes brutos destinados à exportação e importação. Entretanto, o artigo 2º da lei determina que o Processo de Kimberley, na exportação, visa impedir a remessa de diamantes brutos extraídos de áreas de conflito ou de qualquer área não legalizada perante o Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM. Situação que se encaixa perfeitamente na questão dos Cinta-Larga.


Versões que não batem

Como se tudo isso não bastasse, na tarde de ontem (20/10), um pequeno avião desceu no garimpo Roosevelt. Dele, desceu o senhor José Roberto Gonzalez, que se apresentou como funcionário da Companhia de Mineração de Rondônia (CMR) e membro de uma ONG de Minas Gerais chamada Centro Mineiro para Conservação da Natureza (CMCN). Avisada pelos índios, a Funai de Cacoal foi até a área e Gonzalez foi encaminhando pela polícia ambiental à Polícia Federal em Pimenta Bueno.

Ali, de acordo com informações do delegado Fabiano Bordignon, Gonzalez foi ouvido e declarou estar no garimpo para entregar aos índios uma proposta em nome da Companhia de Mineração de Rondônia. Em seguida, foi liberado. Hoje pela manhã, o delegado estava ouvindo o piloto do avião que transportou Gonzalez até o garimpo. Já a presidente da Companhia de Mineração de Rondônia (CMR), Leandra Vivian, que também é chefe de gabinete do governador Ivo Cassol, ouvida pela reportagem do ISA, confirmou que Gonzalez era assessor para assuntos comercias da companhia, mas que desconhecia o fato de ele haver estado com os Cinta-Larga e que teria sido levado para Pimenta Bueno. “Falei com ele ontem e hoje e não fiquei sabendo disso”, afirma.

Se de um lado, esse episódio exemplifica que o caso Cinta-Larga ainda está distante de uma solução que leve em conta a lei e os direitos dos índios, de outro, mostrou também que os índios estão atentos e que a Funai está presente, acompanhando cada capítulo dessa história, com apoio da polícia ambiental de Rondônia e da Polícia Federal.


Uma força-tarefa para os Cinta-Larga

No ano passado, depois que várias tentativas de desintrusão dos garimpos Cinta-Larga falharam, um Plano Emergencial foi criado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) para criar progrmas de saúde, educação, comunicação e para fazer um diagnóstico da área. “O objetivo era um só: resgatar a dignidade dos Cinta-Larga”, relata Walter Blós, administrador da Funai em Cacoal (RO). Os recursos foram liberados em novembro. A Polícia Federal que estava na área, acabou se retirando a pedido dos índios, e em 25 de janeiro, não havia mais nenhum garimpeiro na área. De 30 de janeiro até 2 de agosto o garimpo ficou fechado.

Barreiras foram formadas por funcionários da Funai e índios para que nenhum branco entrasse. Nesse período, a Funai promoveu um fórum Cinta-Larga com a presença da Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira (Coiab), do Conselho Indigena de Roraima (CIR) e várias lideranças indígenas de outros estados da Amazônia. De sua parte, os Cinta-Larga foram a Roraima ver como funcionavam as associações indígenas. Na opinião de Walter Blós, todo esse processo ajudou as verdadeiras lideranças a se fortaleceram, se sentiram seguros e a auto-estima aumentou muito.

ISA, Inês Zanchetta, 21/10/2003.

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